Diretor e roteirista de Mal Nosso (2019), Samuel Galli teve de cortar um dobrado para ver seu filme estreando em boa parte do território brasileiro. Isso, porque o produziu de forma completamente independente, sem recorrer a leis de incentivo, patrocínio ou crowfunding, se valendo apenas de recursos próprios e dos demais produtores – mesmo, segundo palavras dele, sendo “cem por cento favorável ao incentivo público”. Todavia, o esforço está sendo recompensado, afinal de contas o longa-metragem, que conta a história de um homem com poderes mediúnicos, atormentado por um demônio que pretende destruir a alma de sua filha, já foi exibido em mais de 30 festivais internacionais, como o de Moscou. Agora, que finalmente o filme estreou no circuito comercial brazuca, Galli está tendo contato com a opinião dos críticos e do público local. Ele nos atendeu gentilmente por telefone para esta breve conversa sobre Mal Nosso, que englobou desde particularidades da produção à sua opinião acerca do mercado do horror. Confira.
Qual a sua relação com o horror? Foi o tipo de adolescente que ficava até tarde para ver produções sangrentas e aterrorizantes nas madrugadas da TV?
Desde moleque gosto de filmes de horror. Me lembro, inclusive, que um tio tinha uma fita VHS de Evil Dead (Uma Noite Alucinante, 1981). Assisti aos filmes de terror com meus amigos, bem coisa de adolescente, mesmo. O horror tem isso de ser proibido quando você é jovem, o que o torna ainda mais desejável. Nasci em 1980, então meus ídolos eram Freddy Krueger, Pinhead e Jason. Sempre fui um apaixonado por horror.
Quais foram as inspirações, especificamente, para a criação da mitologia do filme?
Engraçado, pois no roteiro não procurei me inspirar em nada. Sou espiritualista, gosto da doutrina espirita, então queria fazer algo que abordasse ela. Ao mesmo tempo, é um filme sobre sacrifício. Ficamos sabendo diariamente de notícias acerca de coisas brutais e, às vezes, há razões e pormenores que não podemos imaginar. Às vezes, claro. Não escrevi o roteiro de forma tradicional. Comecei criando cenas, depois juntei numa estrutura própria. O primeiro ato é longo, não usei a fórmula das produções comerciais. Não faria sentido realizar um filme convencional com pouco dinheiro, pois resultaria numa cópia barata. Eu desejava que em cada frame houvesse um elemento incômodo.
Em Mal Nosso o som também é muito importante. Como foi o processo dessa construção?
Queria apenas sintetizador. Há ali alguns toques à lá John Carpenter, com aquele baixo pesado. Tem uma sequência em que a música é uma mistura entre David Bowie e Cauby Peixoto, ainda com um saxofone no meio para dar uma “quebrada”. Tem música de uma banda gótica finlandesa famosa na trilha. Contei com a grande competência dos irmãos Garbato, eles foram essenciais. Queria começar o filme de maneira um pouco mais tradicional, e, gradativamente, ir “quebrando” isso com a trilha sonora. Meu desejo era que o final soasse quase como um videoclipe, muito musical e com toques dramáticos. Também gostaria de destacar o trabalho do Rodrigo Aragão, responsável pela maquiagem do filme, um parceiro igualmente fundamental.
No exterior existe um mercado muito aquecido voltado aos filmes de horror. No Brasil, parece que, vagarosamente, quebram-se certos preconceitos. Como você percebe isso?
Sou de Ribeirão Preto, estava totalmente fora desse meio, era completamente ignorante quanto à cena do terror brasileira. Fizemos esse filme na raça, sem conhecer ninguém. A gente era completamente inocente. Rodamos e montamos em 2015, fizemos a pós-produção em 2016 só com gente fera. Nesse caminho fui descobrindo as pessoas e como funciona o mercado. Minha tática sempre foi mandar o filme para fora, pois tinha consciência da necessidade de um selo de qualidade do exterior para ter chances aqui. Não tive respaldo de produtora grande, rodamos em Ribeirão com equipamentos comprados aos poucos. Sou obcecado por equipamentos, então sempre busco alternativas quando quero um efeito.
O que você acha do chamado pós-horror, e mesmo dessa vontade de desvincular obras com maior sofisticação do gênero?
Quando você tem muito contato com o filme, enquanto realizador, acaba perdendo um pouco a noção do que ele é. Nosso longa-metragem tem muita cena violenta e, em dado momento, comecei a me indagar se não tinha realizado involuntariamente um drama. Talvez seja isso. Mas o pós-horror é uma evolução de uma parte do horror, algo que está acontecendo agora, mas que pode morrer daqui a 10 anos e aí, quem sabe, volta o slasher com tudo. O Mal Nosso é um filme de transição, que tem influências do terror que admirei desde moleque.
(Entrevista concedida por telefone em março de 2019)
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