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Conversar, mesmo que brevemente, com um cineasta do calibre de Robert Guédiguian é um privilégio. Primeiro, por estar diante de um dos principais artistas franceses, um que desenvolveu a sua prolífica carreira ao largo dos nomes mundialmente célebres de uma das cinematografias mais famosas do mundo. Guédiguian é expoente de um cinema político que busca constantemente diálogo com o público, um humanista por excelência que injeta em histórias aparentemente simples discussões profundas sobre a intimidade contra o pano de fundo da coletividade. Seus filmes são repletos de afetuosidade e de posições políticas bastante claras e irrevogáveis (ainda que haja espaços generosos para contradições, o que dá tridimensionalidade aos seus personagens). O segundo privilégio é poder conversar com um pensador articulado sobre a realidade, alguém que desde muito cedo militou na esquerda francesa por justiça social. Em Mali Twist (2022), seu mais novo longa-metragem, que chega no dia 24 de novembros aos cinemas pela Imovison, ele conta uma história de amores interditados e controvérsias no Mali imediatamente pós-independência do colonialismo francês. O Papo de Cinema conversou com Robert Guédiguian no Rio de Janeiro, quando de sua passagem para apresentar Mali Twist no Festival do Rio 2022. O resultado você confere logo abaixo.

 

Por que você escolheu ambientar essa história, especificamente, no Mali pós-independência?
Na origem desse projeto estavam as fotografias de Malick Sidibé, um grande fotógrafo. Quando visitei a sua exposição em Paris, na França, me peguei rapidamente seduzido e fascinado por todos esses rapazes e por todas essas moças dançando e se divertindo. Fui pesquisar para saber em que contexto aquilo aconteceu. Percebi que efetivamente era uma festa revolucionária, uma festa da independência e da emancipação do país. Era a sua juventude em festa, celebrando a liberdade. Pensei então que fazer um filme sobre isso era uma forma de lançar luz sobre um grande momento de emancipação. No nosso momento atual vivemos uma onda de regressões generalizadas, então acredito que temos de buscar no passado os grandes episódios contrários ao que vivemos na nossa contemporaneidade. É preciso ponderar sobre vitórias e derrotas do passado para ver se encontramos saídas.

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Foto: Julien Jaulin/hanslucas

Uma coisa que me parece fundamental no filme é o diagnóstico de que o capitalismo está umbilicalmente associado ao patriarcado…
Sim, com certeza. O Mali nos permite refletir sobre uma questão que vai ao encontro disso: será que pode haver uma revolução socialista sem haver uma revolução cultural? É preciso revolucionar os valores, as relações entre homens e mulheres, os elos familiares. Acredito que a resposta para essa pergunta seja não, não é possível uma coisa sem a outra. Acredito que para a revolução ter sucesso ela precisa ser total, então deve afetar não apenas a vida material, que precisa ser melhorada, evidentemente, pois é preciso pensar que a vida precisa ser mais agradável, o cotidiano precisa ser mais prazeroso. Associo a revolução à festa. Uma revolução que não dança não é uma revolução.

Gostaria que você falasse sobre esse ímpeto da juventude, que às vezes acena aos excessos, mas que também é compreendido como fundamental às revoluções no seu filme.
É exatamente por isso que desejei fazer o filme. Queria capturar essas exigências da juventude que perdemos um pouco à medida que envelhecemos. A juventude é mais inteira, apaixonada e utópica. E essa força é necessária, por isso é preciso cuidado para não perdê-la. Quando envelhecemos nos tornamos mais realistas, vivemos com algumas nuances que antes não prevíamos e isso não é necessariamente bom. Temos de continuar a sonhar, fazer a associação constante entre o pensamento e a crença. Não podemos apenas refletir, é preciso manter essa vitalidade.

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Assim como em outros filmes, o progressismo é encarado também em suas contradições. Como um artista de esquerda, você acredita ser necessário para um pensamento de esquerda escapar dos dogmas e voltar a pensar mais ativamente no cotidiano prático das pessoas?
Sim, perfeitamente. Acredito que a esquerda não fez isso suficientemente. Entretanto, os primeiros pensadores do operariado do século 19 falavam da liberdade, das mulheres, se opunham verdadeiramente à ideia da família burguesa, tinham de certa maneira essa dimensão de realidade. Isso foi um confronto real do movimento operário que durou durante um século, um século e meio. Mas essas ideias estavam sempre subordinadas à revolução no plano material, às relações sociais de produção. Nacionalizamos a economia e depois tudo está resolvido? Não é assim. Como você bem disse antes, é necessário encarar as chagas do patriarcado. É urgente discutir o racismo. O capitalismo é o pai do monoteísmo, então a religião também precisa ser questionada. Enfim, temos de nos preocupar com essas questões. Busquei sempre me preocupar com isso e com as questões de classe social. Temos o conjunto do movimento operário que privilegiou as relações de classe sobre todas as outras durante um bom tempo. E essas preocupações não deveriam ser hierarquizadas. É preciso mudar todas as relações de poder e dominação. Temos de pensar nisso se desejamos o retorno a um caminho real de progresso humano.

É “viagem” da minha parte ou no seu filme a imagem do jovem casal transitando numa motocicleta pelo Mali remete ao clássico senegalês A Viagem da Hiena, de Djibril Diop Mambéty?
Não existe uma relação consciente. Mas, em compensação, meu assistente no Mali começou muito jovem e colaborou com Mambéty, certamente uma grande referência para todo o cinema africano. Em todo caso, não foi uma referência direta. Diria que essa questão foi, na verdade, quase autobiográfica. Digo isso porque essa motocicleta que aparece no filme é minha, a mesma que comprei quando tinha 16 anos em Marselha. Levei ela para a África justamente porque era um dado afetivo que remetia mais ou menos a mesma época vivida pelos personagens.

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Num momento em que o cinema fica cada vez mais simplista, em que as narrativas hegemônicas fogem de ambiguidades, qual é o espaço que você ainda vê na atualidade para o cinema político?
Acredito que há um espaço, mas é preciso que os cineastas pensem no público. Eles têm de fazer histórias de amor, de conflitos geracionais, ou seja, é necessário oferecer também ao público uma experiência prazerosa. Em geral, o cinema político se esquece de que, antes de mais nada, cinema é espetáculo. Citando Moliére, a principal de todas as artes é dar prazer. Então não é vergonhoso fazer um filme que gere prazer, pelo contrário, senão as pessoas vão simplesmente parar de ir aos cinemas. Ou os filmes ficarão restritos a um público específico e isso não é bom. Fazer um cinema político e chegar ao grande público é possível. Difícil, mas possível. É necessário pelo menos desejar isso.

E como você tem percebido nos últimos anos a ascensão de extremas-direitas mundo afora?
Isso realmente é a coisa que mais me assusta ultimamente. O mundo inteiro está desejando chefes, um pai, um Führer, ou seja, um símbolo extremo do patriarcado. Para mim isso é incompreensível, como se estivéssemos rebobinando a História e voltássemos aos anos 1930. É espantoso. Acredito que seja uma forma de loucura. É uma infelicidade que esses loucos conduzam os ignorantes, como está em Rei Lear, do William Shakespeare. É exatamente o que está acontecendo. O nível intelectual desses dirigentes é baixo, chega a ser assustador. São pessoas que falam mal, grosseiras, vulgares, idiotas. Isso é grave. Precisamos construir e manter alternativas felizes, alegres, livres e que também contemplem a noção da divisão. Talvez essa ascensão do que eu nem sei bem como chamar, desses ditadores, desses pequenos chefes, é devida ao aumento das desigualdades, mais fortes atualmente do que há 40 anos. O liberalismo, o neocapitalismo aumentou de tal forma as desigualdades no interior de cada país, mas também entre os países, que isso gera guerras. Estou muito assustado com isso tudo, mas também combativo.

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Qual é a sua posição quando algum apocalíptico afirma que o cinema morreu?
Não, o cinema nunca irá morrer, assim como o teatro não morreu. Em compensação, o cinema pode se tornar menos popular do que era, virar um programa elitista, como o teatro pode ser muitas vezes. O cinema começou como uma arte popular e isso realmente está ameaçado. Mas, enfim, essa experiência compartilhada diante de uma tela enorme numa sala escura sempre vai acontecer. Talvez tenhamos num futuro próximo metade das salas de cinema que temos hoje, mas essa experiência provavelmente é definitiva, algo adquirido no tecido cultural das sociedades.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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