Categorias: Entrevistas

Mambo Man: Guiado pela Música :: “Cuba é um país mais democrático do que os Estados Unidos de Trump”, afirma Mo Fini

Publicado por
Bruno Carmelo

Em 25 de fevereiro, chega ao streaming o drama Mambo Man: Guiado pela Música (2020), uma rara produção cubana disponível ao espectador brasileiro. O filme é comandado por um artista com tanta experiência musical quanto cinematográfica: Mo Fini, produtor musical que decidiu prestar uma homenagem aos artistas do leste de Cuba. Junto de Edesio Alejandro, ele comanda o filme sobre um país pobre, porém acolhedor.

A história real se baseia na vida de Juan Carlos, conhecido como JC (Héctor Noas), um produtor musical que sofre dificuldades econômicas na ilha. No entanto, jamais planeja abandonar o país, a exemplo de alguns conterrâneos. Quando descobre a possibilidade de ganhar dinheiro através da compra de joias preciosas, ele arrisca todas as suas economias no plano arriscado. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Mo Fini sobre o projeto:

 

O diretor Mo Fini nas locações de Mambo Man: Guiado pela Música. Foto: Divulgação

 

JC é inspirado num amigo seu. O filme é autobiográfico?
Eu tenho feito idas e vindas a Cuba há quase 30 anos. Sou produtor musical, e viajo muito para lá na produção de CDs. Uma das pessoas com quem eu sempre trabalho é Juan Carlos, o JC, que viveu no leste de Cuba, em Bayamo. Sempre que vou para lá, fico na casa dele e fazemos gravações juntos. Às vezes a gente se esquece como a vida pode ser difícil: todo o dia ele viaja longe para organizar shows, para pagar os funcionários. O carro sempre quebra, ele não consegue pagar a gasolina. Enquanto eu assistia a essa rotina, pensei que talvez estes problemas pudessem refletir a vida de muitas pessoas. Fiquei motivado a escrever o roteiro, pelo menos sobre as partes que ele me autorizou a contar! Sempre verificava as histórias com ele antes de colocar no papel. Partimos daí.

 

Você tem experiência em documentários. Por que preferiu contar esta história através da ficção?
Quando fazemos documentários, usamos as pessoas reais para serem personagens do filme, mas JC não gostava da ideia de aparecer em frente à câmera. Eu precisei encontrar outra pessoa para o papel, porque JC é muito reservado e tímido. Além disso, um documentário implicaria mergulhar na vida cotidiana dele, entrar na casa dele. A fazenda que usamos para o filme pertence ao JC de fato, mas o documentário precisaria ser mais envolvido na vida pessoal dele, e isso não seria possível neste caso. A ficção me daria maior liberdade de criação.

 

Héctor Noas e Camila Chile. Foto: Divulgação

 

Que características Héctor Noas trouxe ao personagem?
Para mim, era claro que o ator precisava ser cubano, porque os conflitos do filme são intimamente cubanos. Comecei a fazer pesquisas com atores e atrizes locais. Cheguei a uma dezena de nomes, mas Héctor tinha uma personalidade própria muito próxima daquela de JC. Mostrei um vídeo do JC para ele, e ele imediatamente passou a atuar como o personagem. Então eu o levei para Bayamo, onde se hospedou na casa de JC, conviveu com ele, comeu a comida dele. Ele disse: “Vou absorver JC e mudar por completo. Não serei mais Héctor”. De fato, ele imergiu na rotina, não saía do personagem nunca.

 

Como JC e os músicos reagiram a esta composição fictícia?
O filme foi exibido nos cinemas de Havana, mas a exibição em Bayamo foi impossibilitada pela pandemia de coronavírus. Meu sonho era fazer uma sessão a céu aberto com todos numa praça pública, enquanto os músicos do filme tocariam ao vivo para a população local. Mas depois de uma semana em Cuba, eu tive meu visto de turista suspenso pelo governo por causa do vírus. Precisei ficar durante uma semana num hotel, até me colocarem num voo para a França. Então a sequência das exibições não pôde acontecer. Exceto por um pequeno grupo de pessoas que viajaram de Bayamo até Havana, entre músicos e técnicos do filme, os demais não puderam assistir. Além disso, a Internet é muito ruim em Cuba, e caríssima. Custaria entre 20 e 25 dólares para um cubano assistir ao filme na Internet, num país onde um médico ganha 20 dólares por mês. É inviável. Assim que as restrições terminarem, quero voltar para Cuba e fazer a exibição pública em Bayamo.

 

Edesio Alejandro e Mo Fini com o verdadeiro JC (à direita). Foto: Divulgação

 

De que maneira quis representar o impacto do embargo econômico dos Estados Unidos?
Eu queria abordar questões políticas, mas em segundo plano. Se eu fosse político demais, o filme seria censurado em Cuba, então precisei tomar muito cuidado. Na minha opinião pessoal, é uma grande burrice os Estados Unidos colocarem embargo numa pequena ilha sem exército, que não representa perigo para nenhum lugar do mundo. Possivelmente, Cuba é um país mais democrático dos que os Estados Unidos de Trump. Como sempre, os norte-americanos quiseram impor sua visão de mundo e seu estilo de vida aos outros. Esta é uma história muito triste. Seria melhor para os americanos deixarem a pequena ilha de 10 milhões de pessoas fazer o que bem entende e comprar o que quiser. Se você viaja para Cuba hoje e vai ao supermercado, pode encontrar Coca-Cola, Pepsi, todas as marcas de arroz americano. É complexo: antes quem tinha dinheiro poderia ir até o Panamá, comprar um monte de Coca-Cola e voltar para Cuba. O mundo em que vivemos hoje é um pesadelo que não tem o menor sentido, pelo menos para mim enquanto viajante. Por que não podemos viver todos como vizinhos? As agressões e restrições são absurdas: hoje as crianças cubanas sofrem, as pessoas não têm comida. Para quê? A sociedade ocidental está cheia de comida sendo desperdiçada, indo para o lixo, enquanto alguns têm o suficiente para jogar fora.

 

Sendo estrangeiro, como percebe a imagem de Cuba fora do país?
Este filme já ganhou uns 50 prêmios, e recebeu mais de 70 indicações. Conforme eu lia as críticas, percebia que a reação mais comum era de surpresa. Os textos diziam: “Não sabia que Cuba era assim. Não sabia que era um lugar tão bonito e simples, e que as pessoas estavam contentes com o pouco que têm”. O filme se tornou uma inspiração para as pessoas compreenderem de que maneira o país sobreviveu a tantas dificuldades. Muitas pessoas me disseram que agora pretendem ir a Cuba para conhecer o país. Mambo Man gerou um elemento de identificação e curiosidade. Por enquanto, a grande maioria das críticas foi positiva. Apenas os cubanos radicados nos Estados Unidos, que detestam seu país, quiseram limitar o debate à política, mas essa não era a minha intenção. Respondi: “Desculpa, mas não estou aqui para mudar Cuba. Estou aqui para viver em Cuba. Não nasci para criar o mundo, apenas para viver no mundo, e com o mundo”.

 

Mambo Man: Guiado pela Música. Foto: Divulgação

 

Que papel a música desempenha na história?
Tentamos usar o máximo de pessoas que vivem em Bayamo. Os fazendeiros do filme de fato trabalham naquela fazenda. Historicamente, a música cubana começou no leste, na parte de Santiago e Bayamo, onde eu estava. A Bachata e todos os outros gêneros que conhecemos hoje se originaram lá, e depois, como um rio, foram desaguar nas outras partes do país, incluindo Havana e o resto do mundo. O mesmo vale para o Buena Vista Social Club. Por isso, quis usar o máximo de músicos locais. Cuba hoje tem uma diluição muito grande entre os gêneros musicais, misturando Bachata, Reggaeton, Bolero, Rock’n’roll. Mas a música do filme é muito pura. Em Bayamo, qualquer casa perto das fazendas tem algum violão com apenas duas ou três cordas, porque eles não têm dinheiro para comprar seis cordas. Sempre tem alguém sentado na varanda, tocando músicas populares em duas cordas. Tivemos algumas canções compostas para o filme, e outras já existentes. Algumas já faziam parte da minha empresa, enquanto produtor musical, o que me permitiu poupar bastante dinheiro. Quase toda a geração mais velha vem de Santiago e Bayamo. Por isso era importante o filme se concentrar naquela área.

 

Todos os artistas consagrados aceitaram o convite para o filme?
Eles adoraram. Era como um sonho. Hoje todos estão no Facebook divulgando a música e fazendo propaganda do filme. Eu os tratei como minha família: eles são músicos consagrados, mas antes disso, são meus amigos. Quando vou a Bayamo, visitamos as mesmas fazendas. Um deles traz um leitão para assar, os outros trazem os instrumentos, e passamos o dia inteira tocando música juntos enquanto comemos e bebemos rum. Conheço muitos deles desde 1991, eles me acompanharam tanto quanto eu acompanhei suas vidas. No final, temos uma ligação quase familiar.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)