No Festival de Berlim 2022, três filmes brasileiros saíram premiados, entre os quatro que concorriam a troféus (os dois outros foram exibidos em mostras não competitivas). Entre os vitoriosos se encontra Manhã de Domingo (2022), curta-metragem carioca recompensado com o Urso de Prata (Prêmio do Júri), e elaborado por jovens artistas egressos da UFF. O diretor Bruno Ribeiro apresenta a história de Gabriela (Raquel Paixão), pianista que se prepara para um recital importante enquanto reflete sobre a perda da mãe. Numa manhã de domingo, a música a leva para uma viagem simbólica e afetiva pelo interior do Rio de Janeiro.
O cineasta, a atriz principal e a produtora Laís Diel estiveram presentes em Berlim, com os recursos de uma vaquinha, para divulgar este trabalho. Nós conversamos com o trio durante o primeiro dia do evento, antes da sessão de estreia e do prêmio que viriam a ganhar. Abaixo, você descobre o resultado desse bate-papo:
O que o título significa para vocês?
Bruno Ribeiro: Por mais que a gente não quisesse cravar uma interpretação sobre o filme, criamos algumas premissas para facilitar o diálogo entre nós. Uma delas era de que a trajetória da personagem se passaria dentro de um sonho. Isso não fica evidente no filme, mas não se trata apenas de um sonho – seria um terreno híbrido entre sonho e realidade. Dessa forma, imaginamos que esse tempo do filme, de um dia, aproximadamente, pertenceria à temporalidade de uma manhã. Seria um sonho, numa manhã de domingo. Essa é outra questão: para a gente, domingo era um dia interessante para localizar o filme. A gente poderia falar muito sobre sensações que esse dia evoca, por ser o dia de maior suspensão. Ele representa o fim desse período de lazer e descanso, e de alguns rituais específicos (pela visão da religiosidade cristã), enquanto representa uma passagem ao começo da semana, à rotina. Essa suspensão combinava com o tom onírico do filme.
Raquel, como entrou no projeto e desenvolveu essa personagem?
Raquel Paixão: Bom, eu sou pianista. Trabalhar atuando foi uma novidade para mim. Quando Bruno e Tuanny Medeiros me procuraram e apresentaram a ideia, eles disseram que a personagem seria uma pianista negra. Nessas primeiras conversas, o roteiro ainda não estava fechado. Teve um trabalho de preparação de elenco fundamental para eu conseguir atuar. Além de tocar piano, a Gabriela tem outras ações. Ela fala, caminha, nada – ela é ligada ao movimento. Tivemos muitos encontros e conversas com o Leonardo Castro, que contracena comigo na cena de abertura. A gente se encontrou várias vezes.
Bruno Ribeiro: O trabalho com o elenco partiu muito dessa primeira cena. Era importante elaborar esse casal e a dinâmica entre eles, para entender o que viria na dinâmica com os outros personagens. Também teve o fato de a Raquel vir do interior do Rio de Janeiro, o que era um ponto de contato. Quando a gente se conheceu, conversamos sobre as origens de cada um, e dentro dessa trajetória da personagem, o local de onde veio é muito importante. A mudança do interior para a capital era uma trajetória comum na equipe. O que isso significa para a gente hoje, nas nossas decisões artísticas? Como nosso corpo se relaciona com o espaço em que está?
Gosto das relações de gênero neste curta. No cinema em geral, vemos homens controlando a ação, e no final da cena, encontram o belo corpo de uma mulher nua na cama. Aqui, é o contrário.
Raquel Paixão: O filme propõe refletir sobre como o corpo feminino tem sido visto no cinema, sobretudo o corpo negro feminino. Ela reflete como estas imagens podem vir a ser: o desejo pode ser protagonizado por uma mulher. É interessante que o cinema comece a mostrar isso.
Bruno Ribeiro: Também conversamos bastante a respeito. Quando você aborda a sexualidade de um corpo negro no cinema, sempre existe o risco de cair no lugar da hipersexualização. Nas nossas conversas com o Leonardo, discutimos muito como o afeto seria indefinido dentro do relacionamento. Era claro que haveria intimidade entre eles, mas não definimos o status desse relacionamento. No processo de preparação, entendemos que a sexualidade desempenhava um papel fundamental naquela relação. Não falo puramente do desejo e do tesão, e sim de vários sentimentos dentro da personagem. Ela tem um receio, por conta do sonho que a perturba. Por isso, busca o contato por necessidade de carinho, de proximidade.
A música é fundamental no filme, é claro, mas o silêncio também desempenha um papel crucial. Como escolheram quais músicas seriam tocadas, e como dosaram com o silêncio?
Raquel Paixão: Música e silêncio são coisas muito próximas. O espaço de silêncio é fundamental para a música acontecer. A musicalidade do filme também se encontra na falta, na pausa. Enquanto há pausa, também há música. Pensando nas composições, algumas foram tocadas, como o Fantasia e Improviso de Chopin, e na cena do recital, a música de um compositor brasileiro. Eram apenas trechos, claro, porque se eu fosse tocar inteiro, seria preciso fazer tomadas de dez minutos, vinte minutos – o filme inteiro. A construção musical do filme nasce deste lugar onde tem tanta música quanto silêncio. Neste sentido, é um filme musical. A Fantasia de Chopin lida com o tempo enquanto tema. Ela trabalha a polirritmia, quando a mão esquerda e a mão direita fazem divisões da parte inteira do tempo diferentes, e essas partes precisam se encontrar. Isso cria uma sensação de instabilidade, que vem das escolhas do filme. Nem todas as nossas escolhas foram conscientes, porque o resultado mesmo veio depois. Gravamos muita coisa que não entrou no material final. Eu não sabia exatamente como o filme ficaria. Ninguém sabia ao certo.
Laís Diel: O silêncio veio da montagem, em especial. A gente percebeu que o curta precisava ser menos falado. Tinham diálogos demais a princípio.
Bruno Ribeiro: Isso foi muito um mérito do Vinícius Silva, nosso montador. Ele teve a sensibilidade de entender a força desses silêncios, e dos tempos do filme. Mostramos os primeiros cortes a algumas pessoas, e os retornos apontavam o receio de que o tempo estivesse dilatado demais. Havia um desconforto, mas entendemos durante o processo de montagem que era importante persistir nesse tempo. Algo estava sendo construído ali, e só seria preservado através dos tempos dilatados, mesmo que a gente não entendesse tão bem o que era. Agora, vendo na tela do cinema, talvez a gente tenha uma compreensão mais clara desses significados.
De maneira mais ampla, como enxergam o papel do curta-metragem neste momento de resistência do cinema brasileiro?
Laís Diel: Eu sou suspeita para falar. Acredito que o curta-metragem seja um formato incrível, mas pouquíssimo valorizado no Brasil. Tem um lado mais tranquilo de fazer, apesar da falta de mecanismos de fomento. No Rio de Janeiro, participamos do edital de Niterói em 2018, e em seguida teve um edital em 2019, mas depois, acabou. Nestes editais entrou o Manhã de Domingo, e o Uma Paciência Selvagem me Trouxe Até Aqui, da Érica Sarmento, por exemplo. Esse é o resultado que estamos mostrando. O curta funciona, nosso cinema funciona. Mas agora estamos entrando num hiato. Não sei o que vai sobrar de curta brasileiro para mostrar ao mundo. Em outros Estados, existem maneiras, com certeza, mas falando do nosso caso, no Rio de Janeiro, não existe mais incentivo público — só se encontrar algo na iniciativa privada. O vácuo começa a nível estadual, mas a nível federal, nem se fala. Para o governo federal, o curta-metragem nem existe. Mas Manhã de Domingo e Paciência são provas de que a política pública funciona.
Vocês fizeram uma vaquinha para vir para cá. Como avaliam o suporte estrutural a estes eventos, e o retorno obtido num festival deste?
Laís Diel: Não existe suporte. O único que a gente conseguiria, oficialmente, seria o Programa de Apoio a Festivais da Ancine. Ele tem classificações, com A, B e C. Berlim é um festival nível A, o que daria direito a passagem, cópia e legendagem, se não me engano. Mas esse mecanismo não está funcionando desde o início da pandemia. A produção já retomou, mas o apoio continua parado, com a justificativa oficial da Covid. Não há interesse político em retomar. Embaixadas e consulados também nos deram respostas negativas. Tentamos pela UFF, com os alunos e órgãos internos. Tentamos várias frentes.
Bruno Ribeiro: Felizmente, o festival foi muito solícito em nos ajudar a fazer pontes.
Laís Diel: De fato, Berlim tem muito carinho e empatia com a gente e com a nossa situação. Mas diante das negativas, decidimos fazer a vaquinha.
Bruno Ribeiro: Também contamos com o apoio do Projeto Paradiso, que entrou na reta final dessa campanha, com a vaquinha em andamento. Não foi o suficiente para cobrir tudo, até por sermos três pessoas. Mas esse apoio também foi fundamental.
Laís Diel: Sobre o retorno dessa iniciativa, ainda estamos descobrindo este processo. A ficha está caindo. Recebemos o contato de muitos festivais pelo mundo, interessados no curta-metragem.
Bruno Ribeiro: Nem conseguimos responder a todos ainda. Foi uma enxurrada de mensagens!
Raquel Paixão: O fato de nosso filme estar aqui é uma comprovação do que o cinema brasileiro é capaz de fazer, mesmo tendo pouco recursos. O orçamento foi baixo, para uma produção rodada em três municípios. É uma equipe muito jovem. Imagina quantas coisas poderiam acontecer se a gente tivesse investimento de verdade nos trabalhadores da cultura do nosso país?
Laís Diel: Essa é a minha primeira vez na Europa, e minha segunda viagem internacional. Acho que muitas pessoas no Brasil, em termos de valorização da arte, não têm a dimensão do que esse festival aqui representa. É vergonhoso que o único curta brasileiro na Berlinale Shorts não tenha nenhuma forma de apoio. O Bruno e eu somos cotistas, e nós três viemos de cidades pequenas, no interior do Estado. Somos todos estudantes de escolas públicas, e somos o resultado do quanto as políticas públicas puderam aportar.
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