Desde 2016, o cinema brasileiro vem enfrentando uma crise institucional agravada pelas diretrizes do atual governo. Entre as ameaças de suspensão de mecanismos de fomento e censura prévia a produções cuja temática desagrade o atual presidente, o cinema nacional se vê ameaçado, ironicamente no momento em que atinge seus resultados mais expressivos internacionalmente. Bacurau (2019) venceu o prêmio do júri no último Festival de Cannes, Democracia em Vertigem (2019) foi indicado ao Oscar e dezenove produções brasileiras foram selecionadas no Festival de Berlim – um recorde absoluto.
A situação particular é agravada pelo fechamento de praticamente todos os cinemas do país, devido à pandemia de Covid-19. Para compreender melhor as circunstâncias da crise, o Papo de Cinema conversou com Marcelo Ikeda, pesquisador em políticas públicas para o audiovisual, tendo trabalhado na Ancine (2002 – 2010) e na UFC enquanto professor. Ele conhece o setor tanto pelos bastidores quanto pela linha de produção artística, por ser também diretor e roteirista. Ikeda é autor de diversos livros sobre o cinema contemporâneo, além de trabalhar como crítico de cinema. Neste bate-papo, o pesquisador fala sobre políticas de fomento, censura, polarização política, serviços de streaming versus salas de cinema e produções religiosas, além de comparar o momento atual com as políticas de Collor e dos militares durante a ditadura.
Como enxerga o papel dos serviços de streaming durante o fechamento provisório das salas de cinema? Acredita que a multiplicação destes serviços seja benéfica ao cinema e ao espectador?
Sou um grande defensor das salas de cinema. Acredito que elas desempenhem um papel fundamental para a fruição mais adequada de um filme. Muitas vezes, o filme foi concebido para ser exibido numa sala de cinema, onde existem condições de projeção de imagem e de som, além do isolamento e da imersão, ideais para a recepção. Ao mesmo tempo, não sou radical no que diz respeito à sala de cinema. Acredito que o vídeo doméstico, a televisão e o streaming são substitutos que, apesar de não serem ideais, às vezes representam a única possibilidade concreta de ter acesso a vários filmes. Eu não tive a oportunidade de ver muitos filmes fundamentais à minha formação em Cinematecas, e sim em vídeos, na Internet, baixando um link, ou então na televisão. Esses mercados ancilares são importantes para a fruição de um filme. Vejo como favorável a ideia dos serviços de streaming para colocar o audiovisual de modo cada vez mais disponível às pessoas. Através da Internet, a minha geração teve acesso a filmes muitos raros que, se dependessem do cinema, jamais seriam vistos.
No entanto, o problema do streaming se encontra na extrema concentração do mercado. Este mercado tem se configurado de modo a reproduzir os vícios da indústria oligopolística do cinema. Assim como o cinema é concentrado nas majors, que dominam a estrutura de distribuição e dificultam para outros filmes que não conseguem acesso às salas de cinema – visto que 80% dos cinemas só exibem quatro ou cinco filmes -, no streaming, onde a princípio haveria um cardápio e uma oferta muito maior, existe na verdade uma concentração num único player, a Netflix. Assim, as mesmas séries e filmes que recebem visibilidade muito grande na mídia durante o lançamento acabam concentrando a atenção de boa parte dos espectadores. Os serviços de streaming são benéficos por um lado, mas por outro lado, representam riscos quando há concentração grande num player. Agora, neste momento de fechamento das salas, fico muito feliz de ver a iniciativa de diversos realizadores, junto da Spcine e outros players, disponibilizando temporariamente seus filmes que não se encontram nas plataformas hegemônicas. Esta iniciativa amplia o cardápio ao espectador.
Tem acompanhado o plano de grandes países europeus para proteger economicamente seus cinemas, mesmo fechados? Acredita que se apliquem ao Brasil?
Tenho acompanhado um pouco os países europeus. Estou morando em Londres, e aqui na Inglaterra, todos os cinemas foram fechados. Boa parte dos países europeus fechou todas as salas de cinema. No aspecto da exibição, que é uma ponta bem comercial da cadeia produtiva, o cinema entra com os programas de outros setores econômicos, como eventos, que foram fechados. Os empresários não têm mais receita para manter suas salas. No caso do Brasil, vejo uma situação ainda mais difícil, porque não existe um direcionamento claro da política brasileira no que diz respeito ao fechamento dos espaços, e por quanto tempo. Em Londres, Boris Johnson estipulou um fechamento de três semanas. Ou seja, houve um prazo que poderia ser reavaliado depois. No Brasil, não existe previsão clara, o que gera uma confusão. O presidente fala uma coisa, o ministro fala outra. Não existe ideia clara da extensão da paralisação das atividades econômicas. Ao mesmo tempo, não existe plano econômico claro quanto às possíveis compensações tanto às empresas quantos aos trabalhadores afetados pela paralisação. Tudo está em aberto.
De que maneira o adiamento ou suspensão dos festivais de cinema em 2020 afeta a visibilidade da produção brasileira?
A produção brasileira sofre dificuldades de várias formas. Primeiro, pela indefinição da própria Ancine. Desde o governo Bolsonaro, temos uma indefinição quanto à política para o audiovisual brasileiro. Não se sabe se a Ancine vai ser mantida ou não, quais serão seus diretores, com qual perfil, e qual perfil político será implementado por eles, caso de fato entrem. Não se sabe se o Fundo Setorial vai permanecer, e com quais linhas. A indefinição é muito grande, e os investimentos estão todos paralisados. O audiovisual já se encontrava num estágio pré-falimentar, mesmo antes da pandemia, por conta destas indefinições quanto à política pública. A pandemia agravou ainda mais, como se fosse a gota d’água num cenário muito complicado.
Os festivais de cinema são um elemento desta crise. Eles já encontravam dificuldades grandes para serem realizados. Muitos festivais tiveram seus investimentos cortados pelo novo governo, e precisaram ser adiados, cancelados ou mantidos com estrutura muito menor do que nos anos anteriores. Com a pandemia, houve a necessidade de suspensão ou adiamento dos festivais, o que é grave. Eles representam um espaço importante de discussão, reflexão e visibilidade de um cinema brasileiro, especialmente de vertente autoral, que não depende diretamente do circuito exibidor brasileiro, que é muito concentrado. Isso vai ter um impacto direto no nosso momento artístico. Paradoxalmente, atravessamos uma fase muito fértil. Os filmes demoram muito tempo a ficarem prontos. O reflexo desta crise de financiamento vai ser sentido daqui a dois, três anos, quando não houver mais filmes brasileiros ficando prontos. Agora, temos uma safra de filmes brasileiros prontos, frutos das políticas anteriores. Você vê agora, nos festivais de Roterdã e Berlim, o grande destaque do cinema brasileiro. Este conjunto de filmes nacionais seria visto nos festivais nacionais agora. Com a suspensão, não se sabe ao certo quando serão vistos, debatidos e discutidos aqui no Brasil.
A classe artística tem se posicionado contra a gestão cultural do atual governo, garantindo que a produção vai continuar mesmo sem os mecanismo de incentivos atuais. Como enxerga este posicionamento?
Primeiro, não se sabe exatamente até que ponto os mecanismos de financiamento vão continuar. Resta a indefinição, desde o ano passado, como em vários setores do governo. Tivemos vários Secretários de Cultura, vários candidatos a diretores da Ancine que foram anunciados e caíram antes de sequer assumirem. No ano passado, os investimentos foram reduzidos, e portanto temos a perspectiva clara de descontinuidade. Resta saber como a classe artística vai reagir a isso. De um lado, isso é muito grave porque o audiovisual em todo o mundo precisa de estímulos estatais para sobreviver. Isso existe na França, na Alemanha, na Coreia do Sul. Sem isso, esses países testemunham uma invasão discriminada dos blockbusters estrangeiros e das majors. Hoje, 80% das salas de cinema no Brasil, e um percentual significativo das salas de cinema do mundo, tem ocupação pelas majors, com quatro ou cinco filmes. Caminhamos para uma homogeneização e uma redução do número de lançamentos. É claro que isso é uma tragédia, porque precisamos de instrumentos de políticas públicas para estimular o audiovisual em cada país – até porque o audiovisual gera emprego, gera renda, e constitui um setor estratégico, não apenas em termos de cultura, mas de potencial econômico.
Ao mesmo tempo, isso revela a necessidade de criar mecanismos complementares. Um setor produtivo, como o audiovisual, não pode ficar totalmente dependente do Estado. Os mecanismos criados desde as leis de incentivo fiscais, nos anos 1990, com a trajetória muito exitosa da política pública brasileira, incluindo a Lei do Audiovisual, a Lei Rouanet, a Ancine e o Fundo Setorial do Audiovisual, produzem ao mesmo tempo uma excessiva dependência do Estado. Os instrumentos de política pública foram muito desenvolvidos para o lado do fomento, e pouco no que diz respeito à regulação do mercado, para que ele fosse aberto e competitivo o suficiente para a atividade se mantivesse sem depender tanto do Estado. Ainda que a política pública seja fundamental, é preciso haver outros mecanismos para a atividade audiovisual brasileira. Este momento de crise se presta a uma reavaliação: as políticas públicas foram muito bem-sucedidas no lado do fomento, mas deixaram muito a desejar na regulação do mercado audiovisual. A crise aponta para esse diagnóstico.
Que formas de financiamento poderiam suprir as necessidades de novas produções brasileiras em momento de crise da Ancine, do FSA e da Lei Rouanet?
Além dos recursos federais da Ancine, existem recursos estaduais e municipais. O Brasil tem uma longa trajetória de polos regionais, que poderiam responder em detrimento dos recursos federais. Mas não existem apenas recursos públicos: há possibilidades de coproduções internacionais, com fundos de outros países, além de iniciativas do mercado. Existem players entrando neste mercado, como a Netflix. O próprio mercado traz algumas alternativas que podem funcionar como substitutos à ideia de que todos os recursos precisam vir da mesma fonte.
O momento em que nos encontramos agora, em termos de financiamento e distribuição do cinema brasileiro, encontra paralelo em outro momento histórico? Como nosso cinema se comportou durante a ditadura militar?
Talvez se possa traçar um paralelo com o governo Collor. Em 1990, esse governo também de inspiração liberal, em certa afinidade com as medidas atuais do Paulo Guedes, acabou com a Embrafilme e os órgãos que incentivavam o cinema brasileiro. O cinema e demais atividades culturais passaram a ser uma questão de mercado. Caso a paralisação da Ancine continue de fato, podemos voltar à época Collor, quando o cinema brasileiro teve uma participação de mercado muito pequena. Mesmo assim, acredito que a gente não volte exatamente àqueles tempos devido ao digital. Na época, tudo era feito em 35mm, com custos altos de produção, equipamentos e serviços de laboratórios. Hoje, temos a possibilidade, com modelos colaborativos de produção, de realizar filmes mais baratos. A produção hoje não vai cair a zero como no governo Collor, mesmo que acabem os incentivos de Estado.
Na época da ditadura militar existia a Embrafilme. O cinema brasileiro se manteve forte durante a ditadura, inclusive em termos de participação de mercado. A ditadura militar brasileira tinha um viés nacionalista, com a ideia de fortalecer as empresas nacionais. Agora, temos um governo de inclinação liberal. Na ditadura, não havia inclinação liberal, pelo contrário: havia um viés intervencionista nacionalista, ao invés de cosmopolita. O cinema brasileiro, até em termos de ocupação de mercado, através de políticas agressivas da Embrafilme como a cota de tela, o prêmio adicional de renda e a atuação de fiscalização do Concine, se desenvolveu muito no mercado. A censura, na época da Embrafilme, existia depois de o filme ficar pronto. Os filmes eram produzidos, em dissonância com a ideologia da ditadura militar, mas na hora da exibição havia o gargalo.
A mudança, no governo Bolsonaro, veio com a interferência direta do presidente, dizendo que alguns projetos iam para o lixo, porque não teriam o perfil ideológico concebido por ele como adequado. Esse é outro fator: a censura não se dá na exibição, e sim na produção, com uma interferência em projetos em vias de serem aprovados por editais. Os critérios dos editais não são mais elaborados por comissões, através de especialistas do mercado audiovisual ou de servidores da Ancine. A parte de parâmetros técnicos, específicos do setor, é abandonada em nome de uma interferência externa, com filtros políticos e ideológicos. Não são mais filtros intrínsecos à atividade, e sim filtros ideológicos que interferem diretamente nos resultados destes editais, para determinar quais filmes podem ou não ser feitos. Trata-se de uma intervenção política com critérios totalmente apartados de um conhecimento técnico específico sobre a atividade audiovisual, que é muito complexa.
Inseriria Marighella entre os casos recentes de censura à produção brasileira?
Talvez seja interessante os jornalistas investigarem algo que eu não entendo. Marighella (2019) foi exibido no Festival de Berlim no ano passado, há mais de doze meses. Salvo engano, ele não teve nenhuma exibição pública no Brasil, nem em festivais, nem no circuito comercial. A Ancine não pode proibir nenhum filme de ser lançado comercialmente. Este filme não teve o lançamento proibido por alguma ação do governo federal, nem por motivo de censura. Por que ele não foi lançado? Por decisão do distribuidor e do produtor. Acredito que deveria ser perguntado de forma mais concreta por que o distribuidor resolveu segurar este filme. Conhecendo os mecanismos de incentivo e a Ancine, o máximo que eu poderia dizer é que, para lançar um filme, você precisa ter recebido todos os recursos relativos à distribuição do filme, ou à produção. Talvez o filme esteja aguardando uma última parcela do fomento à produção ou distribuição para ser lançado. Aí talvez haja alguma ingerência da Ancine para liberar esta última parcela, e os distribuidores e produtores não queiram falar isso com receio de que, tornado esta questão pública, a Ancine não libere mesmo.
Mas isso são especulações. Como o filme já está pronto, eu não entendo como ainda não foi lançado comercialmente. Hoje, especificamente, ele não poderia ser lançado porque as salas estão fechadas. Mas por que não era lançado e exibido antes disso, em festivais, nas salas, numa praça pública? O discurso do diretor, Wagner Moura, é sempre muito claro e raivoso contra certo sistema estabelecido. Por que a distribuição do filme não coloca na prática este discurso? Certamente, não é nenhuma ação direta do governo federal. Se houver alguma represália ou ameaça, os produtores, quem quer que seja, precisam colocar isso à público para que a própria sociedade tenha instrumentos para reagir. Não consigo ver elementos para justificar que, um ano depois de sua première mundial, esse filme ainda não tenha sido exibido no Brasil.
Antes da pandemia, o cinema brasileiro já sofria queda nas bilheterias, mesmo para as comédias populares estreladas por humoristas famosos – com a exceção notável de Minha Mãe É uma Peça 3. Esse declínio seria decorrente da campanha difamatória contra artistas? À crise econômica? Que justificativas podem ser dadas para este cenário?
Fico me questionando se realmente há uma queda nas bilheterias. É difícil analisar o comportamento do mercado brasileiro nos últimos anos. Os filmes produzidos pela Record, como Os Dez Mandamentos (2016) e Nada a Perder (2017), tiveram um processo inédito em relação ao mundo, porque o número de ingressos vendidos não corresponde ao número de espectadores. Ingressos eram vendidos para a própria Igreja, mas isso não correspondia ao número de pessoas que de fato iriam ver os filmes. Se você utilizar as estatísticas a partir dos ingressos vendidos, pode ter uma percepção distorcida do mercado. Isso gera um desequilíbrio na comparação com outros anos em que não tiveram filmes como estes sendo lançados. Seria preciso pesquisar mais estes números para de fato constatar se existe uma queda nas bilheterias.
A estrutura própria do mercado cinematográfico brasileiro é sempre pautada por três ou quatro blockbusters que sustentam os números de bilheteria. Raramente chegamos a cinco filmes que superam três milhões de espectadores. Em 2019, foi a vez de Minha Mãe É uma Peça 3, que foi bem acima da curva, com 10 milhões de espectadores. Em outro ano, foi Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro (2010), e assim sucessivamente. A dificuldade do mercado exibidor se encontra no abismo muito grande entre os poucos filmes que superam a marca de 3 milhões de espectadores, e o conjunto enorme de filmes sendo lançados precariamente, que às vezes mal atinge mil espectadores. Tenho dúvida quanto à hipótese de que a campanha difamatória contra os artistas tenha provocado uma queda nas bilheterias. A princípio, eu diria que não.
Veja tanto a repercussão de Minha Mãe É uma Peça 3, que atingiu todos os tipos de público, quanto a repercussão de Bacurau. Não houve boicote por conta das posições do diretor no Festival de Cannes com Aquarius (2016), nem por conta do teor do novo filme, pelo contrário: este tipo de polêmica favorece a bilheteria, porque gera mais mídia e divulgação para o filme. Bacurau atingiu 700 mil espectadores, um resultado bastante expressivo para este tipo de filme. A Vida Invisível (2019), de Karim Aïnouz, passou de 100 mil espectadores, um número também muito bom na configuração do mercado brasileiro. A princípio, não acredito que a campanha difamatória contra artistas tenha impacto nas bilheterias.
Como percebe a tentativa de expansão de um cinema popular de direita, financiado por igrejas evangélicas ou grupos de direita como o MBL? O que têm representado estes projetos, economicamente e culturalmente, de seu ponto de vista?
Considero importante que filmes populares de direita, filmes de igrejas evangélica e filmes do MBL sejam produzidos. Eles podem ou não ter valor artístico, mas representam o anseio e a ideologia de uma parcela da população brasileira que está longe de ser desprezível. Esses filmes funcionam, e vão funcionar daqui a alguns anos, como um retrato para que a gente compreenda melhor os paradoxos da sociedade em que vivemos. O audiovisual, a cultura e a arte têm este aspecto: para além da avaliação artística, que varia muito – algumas obras foram consideradas de baixo valor em sua época, e foram revalorizadas hoje -, representam um anseio legítimo desta parcela da população brasileira. Ela também pode manifestar seu ponto de vista e sua visão de mundo. O confronto também se traduz num embate entre imagens, e não apenas dos discursos políticos e dos votos. Esta é uma disputa por estéticas, por imagens. Estes filmes nos fariam ter uma compreensão melhor do momento que vivemos, com todos os seus paradoxos e suas dificuldades.
Acredita que a crítica de cinema tenha respondido à altura ao cenário de crise? Que papel acredita que ela deva desempenhar neste momento?
Acredito que não. Isso vale não apenas para os críticos, mas para os próprios artistas. Vejo que os filmes sendo produzidos neste momento se manifestam de forma institucionalizada, com pouca autonomia. Acredito muito no papel do artista, do crítico e do intelectual enquanto aquele que possui independência, e portanto coragem de se posicionar diante das coisas. Muitas vezes, isso não significa ratificar antinomias e dualidades. Vivemos um momento de muitas dualidades colocadas tanto pela estrutura política brasileira, de uma suposta direita e a esquerda, quanto pela atuação das pautas identitárias, definindo homens, mulheres, brancos, negros. As discussões em torno do momento político e cultural brasileiro poderiam ser muito mais amplas do que aquelas realizadas agora. Falta coragem a vários artistas, intelectuais e críticos para ampliar o campo do debate.
Vejo muitas vezes a crítica sendo instrumentalizada pela discussão política que estamos vivendo, como se o crítico tivesse que gostar do filme A ou B por conta de sua posição político-partidária, e não uma reflexão sobre as formas com que este filme aponta para uma discussão mais ampla de seu debate político. Não só a crítica de cinema: a Academia, a universidade, os pensadores e artistas do teatro, dança e literatura precisam compreender as contradições do nosso momento histórico de forma mais ampla e complexa do que um simples Fla-Flu, de uma luta do bem contra o mal.
Para isso, fico pensando muito num filme como Terra em Transe (1967), produzido e lançado num momento crítico, político e institucional brasileiro. Glauber Rocha teve a coragem de lançar um filme audacioso, corajoso, sem fugir da polêmica, mas sem fomentar a polêmica pela polêmica, lançando elementos ambíguos, complexos, para poder compreender aquele momento histórico. Hoje, mais de cinquenta anos depois de ter sido realizado, Terra em Transe ainda desperta várias inquietações, pensamentos sobre o que foram os anos 1960, em paralelo com o momento atual que vivemos. Se nos anos 1960 tivemos um espetáculo de teatro como O Rei da Vela e um filme como Terra em Transe, quais seriam as obras desta natureza nos nossos tempos? Democracia em Vertigem, Bacurau? Seriam estes os filmes com a potência de colocar as questões do nosso tempo? Acredito que não. A crítica poderia ter um papel mais provocador em refletir sobre os paradoxos deste momento.