Quando iniciou os estudos em cinema, Mariana Souza não tinha a intenção de seguir o caminho acadêmico. Conforme selecionava os temas de estudo, no entanto, percebeu o direcionamento natural para questões relacionadas a gênero e sexualidade, visando compreender de que modo os corpos negros e LGBTs ocupam espaços de criação e de olhar dentro das artes. Em pleno mês do orgulho LGBT, o Papo de Cinema conversa em exclusividade com a pesquisadora pernambucana para entender como se comporta o cinema brasileiro em relação às imagens de indivíduos negros e LGBTs:
De que maneira tem orientado os seus estudos para questões de gênero e sexualidade?
A minha relação de cinema e a pesquisa veio da graduação. Sempre gostei de pesquisar, mas isso não era um processo consciente. Desde 2017, tenho pesquisado muito gênero e sexualidade. Percebi que isso era algo que já buscava, enquanto mulher negra e lésbica. Para a nossa geração, a visibilidade é inerente ao crescimento. Crescemos em frente ao computador, ao celular, consumindo imagens. Enquanto acadêmica, vinha desenvolvendo uma pesquisa que ainda não identificava como sendo sobre gênero e sexualidade. Tenho tentado articular a pesquisa sobre uma lógica que se aplique ao compartilhamento. Trabalho em paralelo com curadoria, na busca por outras maneiras de retratar as imagens do nosso imaginário, e ver o que se adequa melhor ao que o nosso olhar está buscando, enquanto espectadora negra. Publiquei textos para a Abraccine, o CCBB, e trabalhei em festivais de cinema.
Como tem percebido a qualidade da representação LGBT no cinema brasileiro?
O que eu sempre percebi era que a presença desses corpos estava relacionada ao lugar internacional, à produção em moldes norte-americanos. No Brasil, consagrava-se a comédia estereotipada, focada na bicha ou a sapatona butch, ambas servindo como alívio cômico. Penso em personagens como o Juninho Play (de Vai que Cola), baseado no mix do maloqueiro com a sapatão preta e favelada. Você faz uma mescla disso e coloca o corpo no lugar de alívio cômico, sem subjetividade alguma. O audiovisual brasileiro por muito tempo se preocupou apenas com isso, pensando em lugar hegemônico de acesso e difusão. Percebo uma abertura muito maior partindo de autorias LGBTs e racializadas. Esses artistas têm transformado a maneira como as imagens se articulam. Em especial, a pauta da negritude tem vindo à tona, entre muitas aspas, por reivindicação de um amadurecimento da pauta histórica. Estamos caminhando, a passos muito lentos, rumo a novas conquistas. Em paralelo, percebo o interesse branco e hegemônico de reproduzir isso em suas imagens, se apropriar disso e até dominar os debates a respeito. Mesmo assim existem os agentes, os corpos negros e LGBTs, e pessoas racializadas em geral, construindo novos imaginários.
A imagem do indivíduo LGBT se faz diferente nos curtas-metragens?
Dentro do cinema, a produção de gênero está bem mais visível nos curtas-metragens. Neste caso, também vejo a branquitude hegemônica se apropriando dos debates de maneira distorcida. Os projetos movidos por esses indivíduos trazem alguma virada narrativa para cair num lugar esvaziado, estereotipado, ou oferecendo o corpo-simulacro que está ali apenas para representar alguma coisa: é o corpo que deveria representar o LGBT, o indígena etc. Precisamos falar também de como o dinheiro chega na mão desses agentes, como ele circula. É sintomático que a produção de pessoas negras seja mais expressiva em trabalhos micro, como os curtas-metragens e videoclipes, ao invés dos longas-metragens que circulam internacionalmente. Isso é sintoma do trabalho de apropriação. É essencial se debruçar sobre o funcionamento desta articulação.
Os gays ainda são muito mais representados neste cinema do que lésbicas, travestis e transexuais?
É importante lembrar que certos indivíduos possuem mais acesso aos meios de produção do que outros. Com certeza, o homem branco gay tem mais acesso e representatividade dentro desse sistema de representações e imagens. No ano passado, fiz um levantamento de festivais LGBTs no Brasil. Em 2018, o Mix Brasil não trouxe nenhum longa-metragem de temática lésbica na mostra competitiva, entre dez filmes no total. Entre os curtas-metragens, continha apenas dois filmes de temática lésbica entre os dez selecionados. Por isso, existe um processo para furar esta bolha. Ainda se organiza um festival de diversidade que reproduz a desigualdade estrutural. As referências existentes sobre filmes gays são muito mais expressivas do que filmes sobre travestis, transexuais e lésbicas. Em paralelo, as narrativas lésbicas se concentram num lugar trágico, priorizando a impossibilidade de concretização do desejo. Quando se estuda o prazer narrativo, a mulher não está no lugar de quem realiza o desejo, nem de quem é olhado. Este olhar é reforçado pela conclusão narrativa trágica, seja ela simbólica, seja ela anulada no sentido de frustrar toda a expectativa, por ser mera ilusão de quem estava assistindo.
É fundamental que o cinema LGBT seja feito por indivíduos LGBT?
Sim, é fundamental, até porque não falamos apenas de criar imagens ilustrativas. Estamos falando de profissão, de trabalho. Esses profissionais precisam atuar, precisam trabalhar, tanto nas imagens sobre a sexualidade quanto em narrativas diversas. O lugar de fala precisa ser visto numa posição estratégica, para que esses indivíduos não sejam restritos a uma caixa específica, sem poder falar de outras coisas. Pensa-se que um corpo LGBT só pode falar sobre questões LGBT. Acreditam que o indígena, ou qualquer corpo racializado, só tem propriedade para falar sobre isso. Em última instância, estamos discutindo autoria e significação. Acredito na importância de podermos falar do que quisermos falar. Nos não reduzimos a uma ideia de sexualidade, nem de gênero.
Podemos falar numa estética queer particularmente brasileira?
Eu consigo identificar alguns pontos, que não constituem um determinismo, de modo algum. A especulação e o realismo fantástico têm sido saídas utilizadas pelas produções do gênero. Penso no caso do curta-metragem A Felicidade Delas (2019), por exemplo. Em paralelo, existe a questão do pós-pornô, uma apropriação da estética que seria caricata, meio alegórica. Ele tem permitido que o gênero e a sexualidade não operem como agentes de citação e de erotismo, mas de subversão do conceito e da ideia do prazer visual, a relação entre objeto e espectador. São dois caminhos que me veem à cabeça: o recurso à fantasia e o lugar da reinvenção do olhar para o corpo através do pós-pornô.
Acredita que as lutas por representatividade negra e as lutas por representatividade negra no cinema se encontrem?
Quando você me pergunta isso, eu me lembro de uma citação da Audre Lorde: “Não existe hierarquia de opressão”. Se o seu corpo passa por marcadores raciais e de gênero, você não vai sofrer essas opressões de maneiras separadas. Elas perpassam o seu corpo o tempo inteiro, ou seja, a convergência sobre essas partes existe de maneira indissociável. Precisamos compreender os indivíduos em relação às pautas que apresentam. Ao mesmo tempo que a produção LGBT aumentou, a negra aumentou também. Então é sintomático perceber quais corpos estão reivindicando espaço nessas agências.
O cinema LGBT deveria “educar” o público, sensibilizá-lo para a aceitação da diversidade?
O fazer reverbera, seja ele qual for. Quando você pensa na música, dança, literatura, isso reverbera normalmente no interlocutor. Não existe um papel predefinido, não penso no cinema como tendo a responsabilidade de produzir um efeito específico, mas sinto que as realizações reverberam, e isso volta. Essas transformações se retroalimentam, e naturalmente outras tramas vão se desenvolvendo.
Que produções LGBT te interessam mais: aquelas cuja sexualidade e gênero constituem o conflito principal, ou aquelas em que a sexualidade flui na trama sem constituir motivo de atrito?
Acredito na importância das duas formas. Como pesquisadora, entendo que essas duas questões sejam convergentes. É importante que exista um lugar onde a sexualidade constitua o tema central. Para as pessoas que estão em processo de sair do armário e se afirmar, e para a juventude que começa a viver a sua sexualidade agora, é necessário enxergar a narrativa onde o seu processo de descobrimento se torna uma parte do que você é. Ao mesmo tempo, o cinema possui maneiras de tratar a sexualidade na imagem de modo que não represente um dilema problemático. A sexualidade pode estar presente e se desenvolver sem constituir um problema, nem motivo de conflito. O mais importante é remontar as narrativas, rearquitetar o que habita o imaginário de uma configuração particular.
Quais seriam os caminhos práticos para a expansão da representatividade LGBT? Editais específicos?
A gente vive num país que, para produzir arte e cultura, ainda precisamos muito de dinheiro público, e do mecanismo de editais. Isso é fato: estamos em lugar de convocatória, de rankings. As cotas têm sido uma maneira de reparar minimamente uma estrutura excludente que sistematicamente segrega pessoas negras e LGBTs. Não podemos falar de cotas sem o sistema de fraudes de cotas, que tem acontecido massivamente nas universidades nos últimos anos. Aqui em Pernambuco, uma comissão avaliativa detecta todo ano uma quantidade impressionante de pessoas que fraudam as cotas. Percebe-se então um boicote a este lugar de existência por parte de pessoas que não deveriam usar esses recursos. O caso de editais específicos é importante, e eles são bem-vindos quando acontecem, especificamente de iniciativas privadas.
Enquanto pessoas racializadas, nós usufruímos desses editais, mas a estrutura social precisa entender que existe uma dívida histórica com esses indivíduos. Há certa branquitude colonizadora que não quer deixar pessoas racializadas colocarem a mão em recursos para realizar projetos. Não queremos sempre trabalhar para uma equipe de brancos, constituindo a exceção. Este processo precisa ser analisado, porque a dívida histórica é cumulativa, mas as cotas não são. A dívida é muito maior do que a colonização quer admitir que ela seja. Há um processo muito longo para que as coisas se rearticulem. O problema das fraudes, por exemplo, é grande demais para ser tratado superficialmente. Ele se torna sintoma de um lugar permanente de falta. Nós disputamos oportunidades raras demais em relação à necessidade histórica existente.