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Depois de ter sua première mundial no Festival de Berlim 2018, Marighella (2018) viveu um verdadeiro calvário até chegar às telonas. Primeiro, sofreu uma pesada campanha de difamações na internet – com gente dizendo que ele horrível (sem ter visto) e uma horda de odiadores virtuais jogando suas avaliações lá em baixo em sites especializados. O ator Wagner Moura (aqui estreando na direção) não foi menos acusado de vários impropérios, entre eles o de ter se aproveitado de dinheiro público para fazer um filme sobre um bandido. Carlos Marighella, um dos principais nomes da resistência armada à Ditadura Civil-Militar que nos desgovernou por mais de 20 anos, é um personagem controverso, sem dúvida. Mas, não se pode negar seu brilhantismo como pensador e tampouco a sua imensa paixão por um país repleto de “patriotas” que não fariam 10% do que ele fez por essa nação. Mas, a via crucis de Marighella não seria apenas virtual. Sucessivas datas marcadas para o lançamento tiveram de ser desmarcadas por inúmeros motivos. Alguns chegaram a levantar a hipótese de que o governo federal estava fazendo força para o filme não existir na telona – e talvez essa suposição não esteja nada longe da verdade. Fato é que Marighella chega aos cinemas no auge do esgotamento do bolsonarismo, essa doença que, se tudo der certo, será extirpada do Brasil como um câncer curado sem metástase. Conversamos com Wagner Moura um pouco antes da pré-estreia do filme no Rio de Janeiro e o resultado você confere com exclusividade agora.

 

Como você sintetizaria seu sentimento depois de passados três anos da exibição de Berlim e de tanta coisa que aconteceu para o filme finalmente chegar às telonas do Brasil?
Se disser para você que não houve momentos de muita frustração e tristeza, eu estaria mentindo. Mas, por outro lado, sempre houve uma serenidade muito grande. A gente fez um filme. Os ataques e a violência contra o Marighella, a censura, tudo isso tem muito mais a ver com o que está acontecendo atualmente no Brasil do que com o filme que eu fiz.  Na época do Tropa de Elite (2007) também teve polêmica, discussão, mas o governo federal não atacava o filme. Então, é pesado ter um governo empenhado em destruir seu filme, bicho. Então, isso estressa, machuca e sobretudo dá tristeza pelo que acontece no nosso país. Mas, sempre tive confiança e determinação. Eu dizia: “eu vou estrear o filme nos cinemas do Brasil”. Teve uma época em que muita gente me aconselhou a estrear no streaming, mas eu disse que não queria, pois era fundamental estrear no cinema.

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Então você nem cogitou estrear diretamente no streaming?
Não. Primeiro, porque Marighella é um filme para ser visto no cinema. O streaming tem uma coisa. A alguns filmes eu assisto assim numa boa. Já outros, eu desligo porque evidentemente não são para ver no streaming. E Marighella é um filme de cinema, tem duas horas e quarenta, não é para ser visto com o laptop na barriga. Segundo, porque eu não iria capitular diante dessa escrotidão. Muita gente não queria que eu estreasse meu filme no cinema, então resolvi brigar até o fim para meu filme estrear no cinema. Abrimos mão do dinheiro do Fundo Setorial do Audiovisual, passamos a pandemia e agora estamos estreando.

 

E seu filme está alinhado a certa tendência do cinema brasileiro recente de refletir sobre a ditadura a partir de uma lógica e de uma ótica também geracional. Isso é algo consciente ou entrou meio que inconscientemente como algo importante do filme?
Tem várias coisas aí. Fato: Marighella era um cara de 55 anos rodeado de moleques. É um fato histórico. A outra coisa sobre isso é que a geração combatente da ditadura é muito próxima da minha, é gente com apenas 20 ou 30 anos a mais do que eu e, ao mesmo tempo, é uma geração completamente diferente. Sempre tive muita curiosidade de entender como era ser um jovem naquela época. Essa galera que ia para a clandestinidade, era torturada e morria. Minha geração não sofreu isso, foi meio atordoada, amortecida pela ditadura. A relação de Marighella com Carlinhos é o coração do filme. Quando digo que fiz um filme de amor, é porque na verdade eu só sei fazer filmes de amor, de gente que ama. A única razão para você fazer um filme é para falar de gente. Não fiz um filme para falar da ditadura, mas das pessoas envolvidas nessa luta. O tempo inteiro alguém está fazendo um sacrifício pelos outros ou por uma ideia. E o sacrifício pressupõe amor.

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Wagner Moura durante a apresentação de Marighella em Berlim

Gostaria que você falasse da sua relação com o montador do filme, o Lucas Gonzaga, pois me parece que a sinergia entre vocês foi essencial para a impressão de tensão e energia no filme.
Passei mais de um ano com o Lucas. Ele é meu irmão. Aliás, a relação com todos no filme sempre foi muito fraterna. Só sei trabalhar assim. Escolhi as pessoas não apenas por seus talentos, mas porque queria estar com elas. Para mim, o Lucas é o melhor montador do Brasil. E ele, assim como o Adrian Teijido (diretor de fotografia) e todos os mais casca grossas da equipe foram muito generosos comigo. Eles estavam imbuídos da energia de querer contar também a história de Marighella. Todos tiveram grande paciência comigo. E o processo com o Lucas foi longo, ele teve realmente paciência. Montamos o filme em Los Angeles, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Salvador. O Lucas vivia com a minha família.

 

E para ti, quais são as dores e as delícias de ser um ator dirigindo esse grupo notável de atores?
Só delícia, cara. No começo, pensei: “olha o problema em que estou me metendo. Filme histórico, de ação, com um bocado de personagens”. Mas, quando eu estava no set foi só tesão, alegria. É um filme dirigido por um ator, de fato. A minha câmera está sempre dentro da ação, ela não está olhando de fora. Quando estava dirigindo, estava lá com eles. Era tudo muito energético, que é como gosto de trabalhar enquanto ator. Dirigi como gosto de ser dirigido. Adoro quando os caras vão comigo, a relação com a câmera. Isso gera uma eletricidade. Não tem muita marca. Se eu puder matar uma cena em dois planos, maravilha. Só filmo mais se precisar. Aí você não desgasta os atores. Você não quer cortar o fluxo dos atores com discussões sobre lentes, iluminações e afins.

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Se o filme tivesse estreado em 2018/2019, chegaria às telonas num estágio diferente do Brasil, num estágio diferente disso que chamados de bolsonarismo. Ele chega em 2021, pós-pandemia, quando boa parte das pessoas se deu conta de muita coisa. Então, de alguma maneira que seja, você acha que valeu a pena a espera, para o filme chegar agora?
É o que é. O filme estreia na hora que tem de estrear. Não diria que há prós e contras. É doloroso ver seu filme não estrear por má vontade, por oposição de um governo. É anacrônico, é absurdo. Mas, é agora. Agora é outro momento. Podemos pensar nesse momento específico. Mas, se estreasse em 2019 a gente iria igualmente para o confronto. É agora? Então é agora. É muito bonito porque estamos recebendo um abraço caloroso das pessoas nas pré-estreias. Os movimentos sociais têm ido em peso às sessões. E o filme é também sobre essa galera que está agora no front de batalha, lutando contra esse governo. Aí o filme cumpre um papel bonito.   

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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