Nascida no dia 15 de fevereiro de 1969, Marina Izaura Jeha Person – ou apenas Marina Person, como o Brasil inteiro a conhece – revela sua origem e ligação com o mundo do cinema já no nome – é filha do grande Luís Sérgio Person, diretor de clássicos como São Paulo Sociedade Anônima (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967). Ele morreu, em um acidente de trânsito, quando ela era ainda uma criança – tinha apenas 7 anos – mas foi o suficiente para deixar uma herança que a perseguiria por toda a vida. Tanto que Marina estreou no cenário cultural como apresentadora do programa Cine MTV. Em 2004 participou do seu primeiro filme, em uma ponta como atriz em Bens Confiscados, do saudoso Carlos Reichenbach. Durante a década seguinte ela seguiria atuando, mas nada com muito destaque – seu interesse maior parecia estar atrás das câmeras. Foi lá onde ela acertou as contas com o pai com o documentário Person (2007), que revia a carreira e a obra paterna, e também foi a função que lhe permitiu estrear como contadora de histórias com a comédia dramática Califórnia (2015). Depois de estrear no Festival do Rio e ser exibido comercialmente com sucesso no final do ano passado, o filme agora participa do Rio Festival de Gênero e Sexualidade no Cinema, uma exposição garantida pelo personagem de Caio Blat, que faz o tio homossexual da protagonista. E foi sobre esse trabalho – e sobre outros que estão por vir – que conversamos com a realizadora. Confira!
O quanto da Marina está na Estela, a protagonista de Califórnia?
Bom, ela é a minha cara (risos). Procuramos meninas de todos os tipos, mas a Clara Gallo, quando veio fazer o teste, era muito diferente dessa que está no filme. Usava dreadlocks, pra ter uma ideia! Mas aos poucos foi ficando parecida comigo, mudamos o cabelo, cuidamos do visual… foi algo instintivo (risos). Foi só aí que percebi que era eu mesma quando tinha a idade dela, nós duas estávamos muito parecidas, porém com a separação de algumas décadas! Mas enfim, muitas coisas no filme tem toques autobiográficos. E eu me vejo tanto na Estela quanto no JM, o personagem do Caio Horowicz. Por exemplo, eu era louca pelo David Bowie! Torcia para que a MTV fosse exibida aqui! Ficava sábado à tarde inteiro ligada na TV Gazeta esperando passar um videoclipe, só para poder gravar em uma fita VHS! E esses personagens fazem a mesma coisa! Mas, a despeito disso, o filme não é autobiográfico. Tem, sim, algumas situações que são exatamente as mesmas que aconteceram comigo, mas são apenas episódios, menores no contexto geral. Tipo ir em lojas de discos, ficar pendurada no telefone com amigas, coisas, afinal, que todo mundo fazia naquela época. Mas a trama não é um relato do que eu vivi. O JM gostar de pop punk, tem um gosto musical ligado ao que se fazia na Inglaterra daquela época, e isso era super eu. Também fui ler O Estrangeiro por causa da música do The Cure! O JM é meio isso, tudo que eu achava de perfeito de um homem coloquei nele! É o meu ideal! Ou seja, é uma mistura de coisas que experimentei com outras que eu sonhava conhecer.
Por que escolher essa história para a sua estreia como realizadora de ficção?
A inspiração original pra fazer o filme veio da minha vontade de falar da minha geração, de como era ser jovem no Brasil no início dos anos 1980, com o país se abrindo, saindo da Ditadura, com o movimento das Diretas Já, a vontade de poder votar pra presidente. Foi uma coisa muito marcante. E tinha a questão da AIDS, a minha foi a primeira geração que iniciou a vida sexual junto com a epidemia. Lembro de ser pré-adolescente e ler matérias sobre a ‘peste do amor’, ‘o câncer gay’, e ficar pensando nisso! Nem havia perdido a virgindade ainda e já tinha esse peso por cima! Marcou todos que passaram por aqueles anos. E crescemos com esse fantasma, com uma imagem cruel, que ficou marcada em como agíamos, como nos relacionávamos. Foi um período muito confuso, e parece que tem gente que está perdida até hoje.
O seu pai foi um grande cineasta brasileiro. O quanto você acredita ter sido influenciada por ele no seu estilo de filmar?
Olha, a gente é um pouco fruto das nossas referencias como um todo, é difícil separar. Mas algo que entendi do meu pai, que aprendi vendo, conversando com minha mãe e com pessoas próximas com ele, é que apesar dele ter feito um cinema social, engajado, ele tinha uma coisa com o público. Havia essa preocupação. No teatro, muito a gente vê na plateia, a reação é na hora. No cinema é diferente. Então, acho que essa parte de você conseguir se comunicar com o público é importante, saber conversar com o espectador tem o seu valor. E por mais que a gente queira falar sobre coisas mais difíceis, tem que descobrir como estabelecer esse diálogo. Penso que isso é o mais legal de tudo, ouvir e ser ouvida.
Apresentadora, atriz, cineasta… qual dessas atividades lhe dá mais prazer?
Atualmente, o cinema. Saí da TV Cultura há algum tempo, já. Agora estou com o Califórnia, que foi um trabalho que me deu muito prazer, mas também tenho vários projetos na produtora. Programas de tv, temos o Marinando, no meu canal no YouTube. Tem também o filme como atriz, o Canção da Volta, que deve ser lançado ainda neste ano. A direção é do Gustavo Rosa de Moura, o João Miguel faz o meu marido. É a história de um cara que é casado com essa mulher, que é uma suicida. Foi uma mudança radical no meu estilo de trabalho. A trama começa com ela voltando pra casa. Foi uma ousadia, uma experiência radical, pois geralmente penso nas atrizes como as minhas amigas, não me vejo como uma! Atrizes pegam um roteiro, uma peça, e conseguem dar vida para a história, é o trabalho delas. Já eu preciso de muito esforço, tenho que estudar, exijo muita paciência de todo mundo. Apresentação, seja na televisão, ou em um evento, é fácil, estou acostumada, mas atuação não. Preciso batalhar bastante. Tenho muita admiração pelos atores, e agora ainda mais.
Califórnia tem um elenco de peso entre os coadjuvantes, mas os protagonistas são novatos. Como você fez para encontrar esse equilíbrio?
Desde o começo, a ideia era que os principais personagens fossem adolescentes. Isso exigiu da pré-produção muito tempo. Afinal, uma preocupação que eu tinha, e isso por ter se tratado de um projeto pequeno, quase sem dinheiro, é que só poderia encontrar esses caras quando fosse pra filmar, pois tinham que ter a idade dos personagens, talvez poucos meses mais velhos, pois tinham as cenas de sexo, com drogas. Ou seja, precisavam ter no mínimo 18 anos, até por questões legais, por causa desse tipo de conteúdo, mas não mais do que isso. Eles não podiam esperar, entende? Então, comecei a fazer testes em outubro, com a intenção de filmar em fevereiro do ano seguinte, com pouca antecedência. Era um contexto complicado, eu sei, mas ainda assim tive muita sorte em encontrar esses dois. Para ter uma ideia, testei mais de 300 pessoas até encontrar a Clara e o Caio! Mas claro, não fiz tudo sozinho, tive a ajuda incrível da Renata Kalman e do pessoal da Elenco Digital, que foram fundamentais para esse processo de seleção dos atores, do casting mesmo. Eles já tinham muitos jovens, adolescentes, no banco de dados deles, e alguns basta você olhar e descarta de imediato, pois tinha em mente mais ou menos o perfil que estava procurando. Depois, era preciso preparar esses garotos, pois sabia que eram novatos, sem experiência. Por isso teve muito ensaio, primeiro com a Clara e as meninas, pois elas nunca haviam feito nada no cinema. Tive que chamar um preparador de elenco, foram seis semanas fazendo exercícios, jogos com elas, para que se soltassem em buscassem os personagens dentro delas. Quando achava que estava legal, entramos com os ensaios mais gerais, com todo mundo junto. Isso aconteceu três semanas antes de começar a filmar. Elas preparavam todos os dias, das 9h da manhã às 5h da tarde. Esse tempo juntos possibilitou uma interação prévia entre todos os atores muito forte. Quando chegou a hora de dizer ‘ação’, era a Estela, o JM que estava ali, não mais a Clara ou o Caio, por exemplo. Foi isso que buscamos.
Os anos 1980 que você resgata no filme tem alguns elementos marcantes daquela época, mas é uma composição mais sutil. Esta foi uma intenção assumida?
Na verdade, o roteiro tinha muito mais situações que marcavam a época em que a história se passava, mas o próprio filme que pediu essa sutileza, tanto pela sensibilidade da trama como por questões mais práticas – às vezes não tinha dinheiro mesmo! Daí fomos cortando tudo que não era essencial. Não queria que fosse um Almanaque dos anos 1980, com tantas referências que abafasse o que precisava ser contado, que se tornasse um jogo de procurar! Por isso tive que lidar com a minha própria ansiedade de colocar tudo, pois amo aquela época! Só que não dava, fui percebendo que ficava muito excessivo. E mesmo assim ainda tem muita referência! Já é muito rico, mas descobrimos que como pano de fundo funcionava melhor, sem ficar tão óbvio. Dá pra identificar, porém sem precisar esfregar na cara no público.
Califórnia conversa também com o público LGBT, tendo concorrido ao Prêmio Felix no Festival do Rio e participado do Mix Brasil, em São Paulo, e do Rio Festival de Gênero e Sexualidade no Cinema, no Rio de Janeiro. O que você acha desse tipo de atenção que o filme tem despertado?
Acho que, sobretudo, o público de festivais de gênero respondem por algo muito importante, que é a Diversidade Cultural. O personagem do JM é um pouco esquisito, fora do padrão, tem isso da liberdade sexual com ele. E isso tá super ligado ao Q do LGBTQ, é um pouco Queer, não se define, e nem quer, não precisa. Tem gente que o vê um pouco andrógino, misterioso, pois exala sua liberdade sexual, mas sem um foco específico. Ele está mais fora da caixinha. Acho que essa identificação se dá mais por aí e menos pela figura do tio, que era homossexual nos anos 1980. Ou talvez seja uma combinação desses dois pontos. Mas já me falaram, me chamaram atenção, e não foi algo que premeditei, que a própria Estela tem sua androginia, não é uma figura feminina no seu estereótipo. E achei muito legal descobrir isso junto com o público, pois é verdade, ela tem certa liberdade de gênero, é mais unissex, usa camisetas largas, e foi algo completamente espontâneo, que surgiu naturalmente. Acho super legal essa percepção, mas não foi algo intencional quando fazia o filme. Se me perguntam “pra quem você fez o filme?”, a minha resposta óbvia será “pra mim”! Espero que as pessoas gostem, claro. Mas se o fiz para o público adolescente? Não, não é para o adolescente, é sobre adolescente. Não tem como saber quem vai gostar. Fiz o filme pra mim. Acho importante contar com esse público, pois não estou aqui para pregar nada, não quero doutrinar ninguém, mas tem, claro, esse viés de mostrar um comportamento mais aberto e que pode ser encarado com frieza pelas normas mais tradicionais. Mas é um reflexo, entende? Os guias da Estela são as pessoas que estão meio fora do padrão, é o tio fora da familia, o JM fora da escola. E ela vai atrás.
Como você tem percebido a aceitação do público em geral por todas essas exibições pelas quais o filme tem passado?
O público da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e do Festival do Rio são diferentes, são mais abertos às novidades, e o retorno que tivemos foi muito legal, com respostas ótimas. O projeto da Mostra no Festival da Juventude, com jovens da periferia, foi incrível. E os adolescentes falavam no meio da história, comentavam o que acontecia, se engajaram mesmo. Não foi nada passivo, eles reclamaram do que não gostaram, aplaudiram no final, foi emocionante. Foram sessões muito quentes, e quando fomos premiados como melhor filme brasileiro tem um frio na barriga, muita emoção. Mas o mercado de exibição no Brasil é muito cruel, só tem espaço para os estrangeiros, o que produzimos por aqui precisa brigar com gigantes, é muito difícil. Mas tenho paciência, e aos poucos a gente chega lá!
(Entrevista feita por telefone direto de São Paulo)
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