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Marina Person :: “O cinema brasileiro, por incrível que pareça, sempre dá um jeito de sair da crise”

Publicado por
Bruno Carmelo

Marina Person tem uma participação muito abrangente dentro do audiovisual brasileiro. Formada em Cinema pela ECA – USP, atua como apresentadora e repórter de cinema desde os anos 1990, e também se destacou como diretora (Califórnia, 2015) e atriz (Robôs, 2005, Canção da Volta, 2016).

Às vésperas de estrear seu novo curso de cinema online e gratuito, sobre Stanley Kubrick (a partir de terça-feira, 22/06, com informações na bio do Instagram @marinaperson), Person conversou em exclusividade com o Papo de Cinema. Ela avalia a situação atual da nossa cinematografia, em pleno Dia do Cinema Brasileiro:

 

Marina Person

 

Como avalia a situação do cinema brasileiro neste período de reabertura do circuito exibidor?
A situação do cinema brasileiro é muito triste. É claro que existe o fator pandemia, que atrapalhou todo mundo que vive de cinema ou depende da venda de ingressos, incluindo os exibidores e as salas de cinema. Mas do ponto de vista do produtor do audiovisual, o que se tem hoje no Brasil é uma situação insustentável. Antes do golpe de 2016, o setor do audiovisual era saudável, se sustentando economicamente. Apenas em impostos, ele devolvia dividendos à União. Além disso, empregava muitas pessoas em diversos setores – tanto no audiovisual quanto em serviços de transporte, alimentação, além de camareira, figurinista, maquiador, cabeleireiro etc.
A gente sabe que, quando um filme passa por uma cidade pequena, por exemplo, a economia se aquece. Surge a necessidade de hospedagem, e o fato de ter mais pessoas circulando implica mais dinheiro em caixa. Esse é um fator. Mas de forma geral, o audiovisual como um todo, incluindo cinema, série e novelas, sempre beneficia os lugares por onde passa, além dos habitantes, através da geração de empregos e dos impostos. Dito isso, algo que já foi prejudicado no governo Temer, e virou uma tragédia no governo Bolsonaro, foi o fato de os artistas terem se tornado inimigos do governo. Neste sentido, ele não está errado: pessoas progressistas, como a maioria dos artistas, combatem o autoritarismo e o retrocesso que este governo prega.

 

De que maneira o streaming tem estimulado ou acolhido a produção brasileira?
O cinema brasileiro independente, sobretudo, está muito prejudicado. A opção que muitas pessoas encontraram foi virar prestador de serviço para os streamings. O problema é que, uma vez encerrada a produção, você não tem como se sustentar com isso. O produtor perde o direito de propriedade intelectual e financeiro daquele produto, que passa a pertencer apenas às grandes plataformas de streaming. É um modelo questionável, nesse sentido. Nada contra ser prestador de serviços, é uma ótima ideia de ganhar a vida, mas se fizer apenas isso, a longo prazo, pode ser menos interessante no sentido artístico, porque você precisa se submeter ao que os serviços de streaming querem. Para os autores e produtores independentes, isso é muito ruim. Você fica dependendo da demanda do que um ou outro streaming quer, e em geral, eles querem é fazer público, então você acaba tendo o mesmo tipo de produto: grandes comédias, ou séries com grande apelo de público, e assim o cinema de autor desaparece.

 

Marina Person e João Miguel em Canção da Volta

 

Com tantos blockbusters esperando lançamento em salas, o cinema brasileiro deve sofrer ainda mais para encontrar espaço em salas, certo?
Quando os cinemas voltarem, o cinema brasileiro vai entrar no último lugar da fila em relação aos blockbusters. Isso é óbvio. Vai demorar muito tempo para a gente recuperar espaço. Se não houver uma grande consciência por parte do próprio público, e uma demanda para ver filmes brasileiros nas telas, ou uma grande resistência por parte até dos exibidores, existem chances de o cinema brasileiro desaparecer. É curioso, porque historicamente, o cinema brasileiro sofre uma sina. Ele é feito de ciclos: tivemos o ciclo de Cataguases, ciclo da Vera Cruz, ciclo da Atlântida, ciclo da Embrafilme, e agora temos o ciclo da Ancine, que tudo indica que se encerrou. Este era um ciclo virtuoso, que vinha desde os anos 1990. O marco foi o festival de Cannes de 2019, quando tivemos dois filmes premiados. Parece que esse ciclo se encerrou.
Agora temos algo residual.
Existem produtores, diretores e diretoras brasileiros que estão conseguindo lançar seus filmes no mercado internacional e em festivais de cinema. Mas se a coisa continuar como está hoje – e nem falo da pandemia, apenas da situação da Ancine paralisada e seus servidores trabalhando com a corda no pescoço –, o cinema vai mais uma vez morrer. Teremos um ciclo que se encerra, e vamos ver o que acontece quando ele conseguir nascer novamente. O que vemos agora é uma espécie de fundo do poço. Vamos sair disso, porque o cinema brasileiro, por incrível que pareça, sempre dá um jeito de sair da crise, de um jeito ou de outro. Existe uma força de talento e de espírito patriota, no melhor sentido do termo, para dizer que queremos ter a nossa identidade representada nas telas. O povo brasileiro e as pessoas que gostam do nosso país e admiram a nossa cultura querem ver isso representado nas artes, na música, na dança e em qualquer campo de criação. Nesse sentido a gente precisa ter outro nível de consciência para ultrapassar essa grande tormenta.

 

Marina Person e o elenco de Califórnia

 

A classe artística tem respondido à altura aos ataques do governo?
O ataque tem sido tão cruel que todos os atos de resistência têm, na minha percepção, o caráter do tocador de violino do Titanic. A gente sabe que o barco está afundando, mas não vamos aceitar isso sem lutar. O que mais tem funcionado é a judicialização mesmo. Os atos simbólicos, como abaixo-assinados e protestos em frente à Cinemateca são coisas pequenas. Na minha percepção, a grande forra do audiovisual brasileiro virá com as obras que vão aparecer mais tarde, colocando em seu devido lugar os governantes, os dirigentes do governo federal – não apenas Bolsonaro, mas sua família, o que renderia uma excelente peça ou filme. É tão absurdo o que acontece, é tão mesquinho, descaradamente autoritário e abjeto que é muito fácil fazer uma obra detonando a família.
Aliás, não apenas a família Bolsonaro: existe a Damares Alves. Se a gente não conhecesse a ministra, e a colocassem como personagem de um filme, diriam que é exagerado demais. Ela está tão abaixo da realidade, e fora de qualquer linha do razoável, que a gente pensaria que jamais uma pessoa dessas ocuparia um cargo no governo. Ricardo Salles, o antiministro, que deveria proteger as nossas florestas e o meio ambiente, age contra isso. São quase personagens de uma ficção do absurdo. O grande troco virá através da própria ficção, infelizmente inspirada na nossa realidade atual. Um exemplo bem evidente é Bacurau (2019). A ironia é que o Juliano e o Kleber começaram a escrever o roteiro dez anos antes de o filme ser lançado, ainda em 2009. Eles até dizem que parece que a realidade alcançou o filme. Projetos como Bacurau vão por essa tendência. Muitas séries de televisão virão, e percebo o streaming fazendo isso.

 

Em termos de representatividade, como percebe a inclusão de vozes negras, femininas e LGBT no audiovisual brasileiro?
Isso melhorou bastante, no mundo inteiro. O Brasil piorou muito por um lado, com muitos retrocessos políticos, sociais, na cultura e na ciência. Por outro lado, a consciência social está vindo das novas gerações com muita força. Temos trabalhado muito para isso: acabei de participar de um Grupo de Trabalho de ações afirmativas. A gente vai colocar pela APACI (Associação Paulista dos Cineastas) como sugestão para os novos editais. A ideia é nunca mais fazer editais em que a gente não preste atenção às cotas para mulheres, pessoas negras, indígenas, pessoas trans etc. Isso tem mudado, mas sinto que as mudanças virão mais profundamente a longo prazo.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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