Essa não é a primeira vez que o Papo de Cinema conversa com Gabriel Martins. E provavelmente não será a última. Sócio da produtora mineira Filmes de Plástico, fizemos uma entrevista com ele no lançamento de seu longa anterior, No Coração do Mundo (2019), e também participou de uma live conosco após ter sido indicado ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro por seu trabalho neste filme e também como montador de Temporada (2018), de André Novais Oliveira, seu colega. Agora, no entanto, está lançando Marte Um, e com um gosto especial: é a primeira vez em que assina sozinho a direção de um projeto. E um bastante pessoal, como afirma no nosso bate-papo a seguir. Exibido no Festival de Sundance e premiado em Los Angeles, São Francisco e também em Gramado, essa história sobre uma família que precisa lidar com sonhos e resistências tem comovido muita gente. Já em cartaz nos cinemas brasileiros, é ainda um dos pré-selecionados pela Academia Brasileira de Cinema como representante nacional no Oscar 2023. Ou seja, é certamente um dos títulos imperdíveis desse ano.
Os trabalhos da Filmes de Plástico são sempre muito colaborativos. Marte Um, no entanto, é o primeiro que você assina sozinho. O que o levou a contar essa história?
Foi algo natural. Afinal, partimos de um roteiro que tinha muito a ver comigo. É um projeto que construí a partir da minha história. Cada filme nosso nasceu de circunstâncias muito específicas. O André (Novais Oliveira, também sócio da Filmes de Plástico) fez mais de um longa que só ele assina, e aqui aconteceu a mesma coisa: Marte Um é, de fato, um projeto pessoal. A produtora sempre me deu suporte, desde o processo criativo, com sugestões o tempo todo. Mas é um filme que surge a partir de coisas pessoais que precisava dizer sobre a minha jornada, minha família. Coisas que vi na vida e que nessa primeira oportunidade de realizar um longa com direção solo me permitiu fazer investigações mais profundas. Com a minha perspectiva. O No Coração do Mundo (2019) também é pessoal, mas fala da minha relação com o Maurílio e como nós dois vemos a cidade onde moramos, nosso bairro.
Marte Um é um filme autobiográfico, portanto?
Acho que, em certo sentido, a dimensão do sonho do Deivinho é algo que compartilho no sentido em que eu era um garoto que, com sete anos de idade, sonhava em fazer cinema. E que morava em um bairro que sequer tinha sala de cinema por perto. Era muito distante para mim. Como Marte é distante para o Deivinho. Pra mim, naquele momento, cinema era Hollywood, e não tinha a menor ideia em como atingir isso. Então, tem, sim, elementos que talvez não digam diretamente a respeito da configuração da família, ou pelo que eles passam, mas tem muito da minha relação com o meu pai, como o alcoolismo afetou a minha família e diversas histórias que cresci vendo ao meu redor. Wellington, por exemplo, é o nome de um tio. Tem uma coisa que trago e que parte de um lado pessoal.
Marte Um faz um comentário sobre a situação política atual do país, sobre a ascensão de um governo de extrema direita.
Esse é um filme que nasceu em 2014, em virtude da Copa do Mundo. Vem de um momento que vivíamos no Brasil. É algo que interpreto como uma crise de identidade. São pessoas que estão começando a aprender a viver com as diferenças, a entender que nem todo mundo é igual. Tivemos afirmações políticas muito fortes nesses últimos anos. A cultura do cancelamento, o Brasil dando errado, o mundo acabando. A gente é pessimista, a gente é otimista. Sinto que o Marte Um, de alguma forma, quer responder a um certo estado de letargia que a gente acabou se encontrando diante de tanto cinismo, de tanto individualismo, e de uma tragédia social que foi a política que esse governo veicula. Sinto que a gente acorda, todo dia pela manhã, e quando lê as notícias não só daqui, mas de tudo que é lugar, o que sentimos é ódio. Há um sentimento forte de revolta permanente.
Entendo, porém essa é uma relação subliminar. O filme não é didático. Como foi escolher o tom desse discurso?
Queria, com esse filme, provocar algo diferente. Nessa história há personagens que erram, claro. Com opiniões diferentes, como nós, como qualquer ser humano. Existe conflito, existe catarse, mas por trás há um sentimento possível, uma tentativa de afeto, junto com o enfrentamento. Não se trata de algo ingênuo. Não é nada do tipo “vamos todos dar as mãos e cirandar e o mundo vai ser feliz no dia seguinte”. Não é isso. Estamos enfrentando as mesmas dificuldades, mas elas podem nos tornar mais fortes. Podem nos dar combustível para enxergar mais longe. Até mesmo outros planetas. E vermos a nós mesmos como parte de um organismo maior. Esse tom político tem a ver, também, com uma forma de traduzir esses personagens como um veículo para comunicar uma coisa maior, que vai além de questões de momento, seja 2018, 2014 ou 2022.
Se o filme nasceu em 2014, o quanto as eleições de 2018 e o governo que veio depois afetaram a história original?
A única vontade que tinha, desde o primeiro roteiro, é que fosse contextualizado na época das filmagens. Independente do que estivesse acontecendo, com eleições, antes ou depois, se o candidato vencedor fosse outro, teria que estar inserido nesse cenário. Pois precisaria refletir a ideia “esse é um filme sobre o Brasil de agora”. Não quero falar sobre o Brasil de 2050, mas também não sobre o de 2000. É o Brasil, nesse caso, de 2018 a 2019. Essa contextualização era importante por uma questão cultural. Vai invadindo o filme pela televisão, pelo rádio, num foguete, numa aula de Direito. São coisas que situam o Brasil. Na prática, precisava ficar claro em poucas cenas. Ainda assim, existia uma essência que não se alterou. O roteiro, e o que a história comunica, é atemporal. É um conflito sobre poder sonhar e ter obstáculos nesse caminho até alcançá-los. De se entender diante de conflitos humanos. Isso se manteve do primeiro tratamento do roteiro até o corte final, mesmo tendo abandonado várias coisas na montagem. Outras, inclusive, estão no filme, como a posse do presidente, que ainda não havia acontecido quando filmamos. Existia essa espaço para que a cultura do momento fosse incorporada para que houvesse possibilidade de localização, no tempo e no espaço.
Gostaria de falar um pouco sobre o elenco. Como foi a escolha desses atores e como foi o seu trabalho com eles?
É um processo que partiu de um convívio pré-existente. A Rejane Faria e o Carlos Francisco, que interpretam os pais, são atores com quem trabalhamos em outras ocasiões. Fizemos curtas, participaram dos longas. Ou seja, são parte da família. Pessoas próximas, tanto de mim, como da Filmes de Plástico. Só que, por outro lado, quando chegam nesse filme, encontram um novo desafio, pois pela primeira vez estão como protagonistas. E abraçaram isso de uma forma intensa. Possuem uma carreira longa no teatro, donos de uma técnica impressionante. Para além dessa história de vida, que por si só é potente, são atores no sentido mais clássico da palavra. Agora, temos também novos rostos, a Camilla Damião e o Cícero Lucas, que fazem os irmãos, que trazem um frescor e uma vontade de fazer enorme. Existiu uma troca maravilhosa entre os quatro. A agitação desse menino cheio de vida contagiou os mais velhos, ao mesmo tempo em que a experiência dos veteranos foi fundamental para dar um guia aos novatos. Foi assim que a família, rapidamente, acabou se achando. Nos primeiros ensaios já alcançaram resultados praticamente iguais ao que está registrado na tela, tamanha foi a química que, naturalmente, desenvolveram entre eles.
Marte Um percorreu diversos festivais antes de sua estreia nos cinemas, sempre com ótimos resultados nas premiações. Como você avalia essa repercussão?
Fico muito feliz. Nós somos uma produção modesta, estamos fora do eixo Rio de Janeiro – São Paulo, nessa loucura que é uma distribuição no Brasil. Tudo que possa nos ajudar a atingir o maior número de pessoas, é bem-vindo. Sou uma pessoa pé no chão, prefiro ficar sem expectativa, esperando pelo que irá acontecer. Mesmo se não tivéssemos ganho nenhum prêmio, estaria feliz por todo o carinho que recebemos por onde passamos. Estive em poucos festivais. Três nos Estados Unidos, um na França, e em Gramado. E por todos os lugares fomos muito bem recebidos. O filme conseguiu transcender uma barreira de comunicação e emocionar em qualquer língua.
Acho que a palavra que mais ouvimos quando se referem a esse filme é “afeto”. É isso que Marte Um tem a dizer?
Acho que sim. É engraçado, pois essa palavra, “afeto”, teve momentos na história do cinema brasileiro que foi quase proibida. Nesse constante embate com as nossas narrativas, às vezes acontece de ultrapassarmos uma certa essência das coisas. A esse afeto dou também o nome de empatia, e de esperança. Acho que Marte Um pode ser um abraço a um espectador que está saindo de vários anos de um governo muito duro, movido a ódio, e dois anos de pandemia, que tirou tanta coisa de todo mundo. É um carinho necessário, que pede também a sua atenção. A política é um momento. Não é um afeto alienado, mas muito consciente do lugar que ocupa no mundo.
(Entrevista feita via zoom em agosto de 2022)
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