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Masakazu Sugita e o Desejo da Minha Alma

Publicado por
Rodrigo de Oliveira

Nascido em 1981, no Japão, o cineasta Masakazu Sugita estreou na direção de longas-metragens com o belo drama O Desejo da Minha Alma, em 2014. Contando a triste história de duas crianças que ficam órfãs após um grande terremoto no Japão, Sugita capturou a atenção no Festival de Berlim, de onde saiu com menção especial do Júri naquele mesmo ano. Depois de ter sido exibido na Alemanha e em seu país de origem, o filme estreou no Brasil, em maio de 2015, com a presença do diretor japonês nas primeiras exibições em São Paulo. Conversamos via e-mail com Masakazu Sugita a respeito de seu trabalho em O Desejo da Minha Alma e a íntegra deste papo você confere logo abaixo.

 

O povo japonês sofreu grandes perdas com o terremoto de 2011. Ainda que o filme não deixe claro ser o mesmo evento, é justo dizer que a jornada emocional por que passam os personagens é algo que muitos viveram no seu país. Você sentiu uma maior responsabilidade ao tocar neste assunto tão sensível para tantos?
Em 1995, presenciei diretamente o Grande Terremoto da região de Hanshin. Tudo que acontecia na frente dos meus olhos eram coisas que jamais havia vivido antes, e estava além da minha imaginação. Não caía a ficha de que tratava-se de algo real, que estava acontecendo. Na minha volta, havia várias pessoas que perderam entes queridos, ou casas e objetos importantes, mas eu, ainda criança, só fui capaz de ficar olhando, estático. E em 2011, aconteceu o Grande Terremoto do Leste do Japão. Como eu vivia em Tóquio, não sofri as conseqüências do terremoto de forma direta, mas ao ligar a televisão, vi as imagens daquele tsunami escuro engolindo cidades inteiras. Estava vendo imagens de algo que estava acontecendo exatamente naquele instante. Mais uma vez, só fui capaz de ficar olhando as imagens, estático. Mais uma vez tive uma forte sensação de impotência, e um sentimento de culpa em não poder fazer nada. Acredito que esta sensação não foi só minha, mas uma sensação que assolou todo o Japão após o Grande Terremoto do Leste Japonês. Como nós conseguiríamos continuar vivendo carregando este sentimento de culpa, que veio de forma inesperada? Pensei que se eu focasse nesta questão no enredo, o público poderia se identificar melhor com o filme como uma vivência do próprio espectador, e não uma história do passado de alguém de um lugar longínquo. Naturalmente senti insegurança e uma grande responsabilidade em produzir este filme numa época que o grande abalo causado pelo terremoto de 2011 ainda não havia sido contornado. Porém, qualquer tipo de expressão está acompanhado obrigatoriamente de responsabilidade. Nós tínhamos uma pequena convicção de que haveria pessoas que estariam esperando por este filme. Então tomamos a decisão de produzi-lo.

 

As atuações das duas crianças, Ayane Ohmori e Riku Ohishi, impressionam. Como foi o processo para encontrá-las e como se deu a direção. Foi mais difícil ou mais fácil por se tratarem de crianças?
Na medida em que escrevia o roteiro, o nível de exigência desejado para as crianças acabou se tornando algo cada vez mais elevado. Havia uma preocupação, mas preferimos aceitar este desafio, ao invés de nos contentarmos com uma história plana, que não nos traria complicações. A Ayane Ohmori, que interpretou Haruna já havia participado de filmes e telenovelas desde pequena, e eu já havia colocado ela na minha lista de favoritas para o papel de Haruna. Ela leu o script do filme e disse que gostaria muito de viver este papel. Assim, decidimos rapidamente por sua escolha para o papel. Acredito que foi um encontro que aconteceu porque deveria acontecer. Já o Riku Ohishi, que fez o papel de Shota, nós o encontramos num processo seletivo. Desde o primeiro momento que nos encontramos, ele nos recebeu com aquele sorriso inocente, e mostrou ser uma criança amigável, que não suspeita de ninguém. Era o Shota em sua essência. Graças a ele, este filme ganhou novas colorações. Os outros participantes também são maravilhosos, mas acredito que este filme só foi possível graças a esta Haruna e a este Shota. Não foi uma tarefa fácil dirigir um filme com crianças como protagonistas. Ainda mais numa gravação com uma agenda extremamente apertada como neste filme. Eles realmente se empenharam bastante.

O sentimento de perda é algo que todos sentimos em momento ou outro da vida. No caso dos protagonistas, surge em idade tenra. Como foi construir essa jornada emocional com os jovens atores? Tudo já estava no roteiro ou algo foi construído junto deles?
Acredito que um ponto crucial para a produção deste filme foi o quanto conseguiríamos nos aproximar do sentimento das crianças, e como enxergaríamos o mundo no mesmo plano de visão deles. O importante não era que eles falassem ou se movimentassem conforme o roteiro que escrevi. Procurei respeitar os movimentos que emergiam dos sentimentos deles próprios. Procuramos voltar nossa máxima atenção se as falas e ações das crianças estavam sintonizadas com o movimento de seus sentimentos. Naturalmente, isso exigiu mais tempo para as filmagens, mas eu não gostaria de exibir imagens de crianças que atuam convenientemente conforme o desejo dos adultos. Outro ponto que gostaria de destacar é que para esta produção, conseguimos reunir uma equipe que posso chamar de síntese dos encontros que tive em minha carreira. O set de filmagem, que contava com profissionais de minha confiança, era um ambiente totalmente harmonioso. Isso foi um fator fundamental para este filme, permitindo que as filmagens avançassem sem criar estresses desnecessários nas crianças. Acredito que foi graças a isso que conseguimos captar diversos momentos maravilhosos, que só aconteceriam por milagre. Gostaria que o maior número de pessoas possível pudesse assistir estes momentos que considero como que se tivessem um toque de milagre.

 

Além da dissolução de uma família, o filme trabalha com uma nova configuração familiar, na qual tios, avós ou amigos próximos acabam tendo de tomar conta de outras crianças. Com isso também surge ciúmes da criança que já fazia parte daquela família. Aqui não existem vilões, mas humanos que sentem a mudança. Como foi pensar esta parte da história e tomar este cuidado em manter os personagens críveis?
Neste filme, não há personagens que claramente podem ser identificados como de má índole. Cada personagem se relaciona com Haruna e Shota conforme suas intenções de bondade. Não há dúvidas de que a bondade é algo maravilhoso. Porém, se não estivermos atentos, uma atitude que realizamos com a melhor das intenções pode, por vezes, ferir os sentimentos do próximo, ou mesmo encurralá-lo. Quando o alvo destas atitudes são crianças, pode acabar sendo ainda mais desastroso. Quando agimos com boas intenções, penso que é extremamente importante refletirmos se estamos priorizando os nossos próprios sentimentos, ou se estamos priorizando o sentimento do próximo. Para a caracterização das personagens que estavam na função de acolher Haruna e Shota, valorizamos como cada uma enfrentaria a situação de acolher as crianças, e como elas expressariam as boas intenções.

 

Como foi a recepção do filme no seu país de origem? E como espera que seja assistido em outros locais. Já tem a resposta de outros mercados?
Enquanto realizávamos a promoção do filme antes de entrar em cartaz no Japão, vários dos principais jornais do país deram destaque ao filme, e muitos críticos de cinema apoiaram calorosamente este filme. Foi uma recepção atípica em se tratando de um filme independente. Mas a grande força para a divulgação do filme foi a divulgação de boca em boca, após a exibição voltada às crianças, acompanhadas de seus pais. Graças a opinião das crianças e seus pais, este filme tornou-se conhecido para o público das mais variadas faixas etárias. A reação do público quando o filme estava em cartaz também foi muito boa. Começamos com apenas um cinema, mas, aos poucos, fomos aumentando o número de locais de exibição. Fico muito contente se o público puder assistir a este filme dando ouvidos às vozes dos sentimentos das crianças, que não podem ser verbalizadas. Espero que possa tocar o sentimento do público, por pouco que seja, não como uma história que acontece com alguém num lugar longínquo, mas como uma história que pode acontecer com qualquer um de nós. É uma honra ter o Brasil como primeiro local de exibição aberta depois do Japão. A recepção dos brasileiros é muito calorosa, e a experiência de sentir in loco a reação do público tornou se um tesouro precioso para mim. Expresso minha profunda gratidão a Supo Mungam Films e a todos que colaboraram para que o filme pudesse ser exibido no Brasil. Daqui pra frente, penso em levar o filme para um número cada vez maior de pessoas do mundo todo. Gostaria que se tornasse um filme amado por muito tempo por pessoas de todo o mundo, não apenas no Japão.

(Entrevista feita por e-mail em maio de 2015)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul. Jornalista, produz e apresenta o programa de cinema Moviola, transmitido pela Rádio Unisinos FM 103.3. É também editor do blog Paradoxo.

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