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Mascarados :: “Fazemos um filme sobre o desaparecimento do trabalho enquanto nosso trabalho também está desaparecendo”, explicam os diretores

Publicado por
Bruno Carmelo

Depois de apresentarem o documentário Taego Awã (2016) na Mostra de Cinema de Tiradentes, os irmãos Marcela Borela e Henrique Borela retornaram para a 23ª edição com uma ficção: Mascarados (2020), retrato dos trabalhadores das pedreiras de Pirenópolis (GO) que escapam à crise financeira em festas anuais onde desfilam mascarados.

O filme, nosso preferido da Mostra Aurora – a principal mostra competitiva de Tiradentes, reservada a diretores com até três filmes no currículo -, apresenta imagens deslumbrantes, além de efetuar um retrato potente da crise dos operários em meio ao desmonte das leis trabalhistas. Para isso, a dupla retratou trabalhadores reais – Marcilei, Ganchão, Juninho, Vinícius – dentro do processo da ficção. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com os diretores sobre o projeto:

 

A diretora Marcela Borela (ao centro) durante o debate de Mascarados em Tiradentes. Foto: Netun Lima / Universo Produção

 

Como veem o papel das máscaras nesta história?
Marcela Borela: Há uma preparação para as festas, por isso as máscaras aparecem aos poucos no filme. Em determinada época do ano, o fazedor de máscaras começa a prepará-las porque surgem as encomendas. A ideia foi fazer com que a festa permeasse todo o filme, porque é o que sentimos naquele local: as pessoas esperam o ano inteiro para o evento, e ficam escolhendo o seu mascarado. Existem os grupos de mascarados: os catulés, que usam máscaras de panos, os índios, que usam cocares, tem a máscara clássica de papel machê com outra máscara de pano por baixo. Existe uma infinidade de máscaras, inclusive incorporando elementos da cultura pop, como a máscara de La Casa de Papel, que estava muito popular em 2018, quando filmamos. A liberdade do mascarado constitui um momento quando a rebeldia pode acontecer dentro de uma sociedade ainda muito marcada pelo colonialismo. Pirenópolis é uma cidade barroco-colonial, ligada ao ciclo do ouro. Então a presença das máscaras se torna uma maneira de expandir aquele momento para todo o processo social. O personagem do Divino interpreta um fazedor de máscaras que detém esse conhecimento e vive disso, produzindo máscaras. Ele é o artesão de uma cultura específica.

Por que optam por não explicar no filme todos estes códigos relacionados à seleção e ao uso das máscaras?
Marcela Borela: A gente vem muito do documentário. Nosso filme anterior foi um documentário, mas dessa vez a gente queria realmente criar uma ficção em cima daquele contexto. Para isso, precisamos abandonar algumas características descritivas. O filme combina o regime direto, observacional, com a intervenção mais direta da ficção. A gente achava que, para os dois coexistirem, era preciso abdicar de informações documentais. Os dados que se pode querer saber sobre a festa do Divino Santo de Pirenópolis estão bem documentadas, inclusive em vídeos institucionais e no goiano Cavalhadas de Pirenópolis, um filme de 1977 do José Petrillo, que ganhou o prêmio de melhor curta-metragem no festival de Brasília. A gente queria falar de uma experiência mais subjetiva, e menos externa.

Henrique Borela: No processo de pesquisa, filmamos com Marcos e a família dele, além de Dona Neide, Marcelei etc., através de um processo de encenação e improvisação de onde surgiram algumas cenas do filme. Todos os dias a gente ia até eles, abria a câmera e começava a filmar. O Ganchão trabalhava até umas 15h, então chegava e nós íamos para filmá-lo. Também filmamos outro personagem, Seu Sebastião, o artesão das máscaras. A gente queria muito que ele fizesse o filme, enquanto não-ator, mas ele não topou. A certa altura, ele pediu para a gente não filmar mais – ele se cansou do filme. A gente pedia para ele repetir ações, o que é uma dinâmica comum do cinema, mas ele não gostava disso. O Ganchão tinha dificuldade em repetir, mas fazia isso. Obviamente, eles foram pagos como atores por esse trabalho, e o Ganchão valorizava esse contrato enquanto trabalho. Mas o Seu Sebastião não quis participar, mesmo sendo pago.

Marcela Borela: Mas ele aceitou que a gente filmasse na casa dele. Aquela é a casa do Seu Sebastião, com as máscaras feitas de verdade por ele. O Divino só assumiu a persona, mas a mão confeccionando as máscaras é a mão do Sebastião, porque o Divino não tem a habilidade para confeccionar. Além disso, incorporamos algo dele ao filme, porque Seu Sebastião é multiartista. Na casa dele também funciona um estúdio onde ele grava jingles, presta serviço para rádios e aluga para festas. Ele é um pioneiro do Surround System em Pirenópolis.

Henrique Borela: O estúdio onde o Divino toca é o estúdio real do Seu Sebastião.

Marcela Borela: Sim, o Divino é músico também. Além de ser ator, ele é uma figura importantíssima do cineclubismo de Goiás. Ele faz os filmes dele, escreve livros, toca em bar enquanto músico, e vende os roteiros dele. Ambos tinham essas várias artes em comum. Divino então grava as próprias músicas, como ele faz de fato.

 

O diretor Henrique Borela (ao centro) durante o debate de Mascarados em Tiradentes. Foto: Netun Lima / Universo Produção

 

Como chegaram ao espaço da pedreira, fundamental à trama, e de que maneira decidiram filmá-lo?
Henrique Borela: A gente nasceu em Araguari, e depois fomos para Goiânia. Pirenópolis fica muito perto de Goiânia, e lembra muito Tiradentes pelo ciclo do ouro – guardadas as proporções, é claro, porque isso foi muito mais intenso em Minas Gerais. Vendo o trabalho das pedras no chão de Tiradentes, dá para deduzir que existe alguma pedreira próxima, ou já existiu, de onde foram tiradas essas pedras onde estamos pisando. Elas foram provavelmente tiradas por homens como nossos personagens. Pirenópolis também é bastante turística, como Tiradentes. Então, fomos para a cidade como turistas inicialmente. Percebemos a invisibilidade dos trabalhadores: você vê a pedreira encravada no horizonte, ao fundo da paisagem, mas você não vê os trabalhadores. Eles estão na periferia, em Bonfim, que inclusive é muito maior do que a cidade inteira. É um bairro operário gigantesco. Queríamos que o filme fosse uma possibilidade de encontro com os trabalhadores. Para isso, era preciso fazer uma etnografia. Você não encontra esses trabalhadores num bar, eles não se misturam com o centro histórico. Para encontrá-los, é preciso sentar num boteco no Bonfim e começar a conversar com eles.

Marcela Borela: Nove anos atrás, eu fui morar em Pirenópolis. Eu estava escrevendo a minha dissertação de mestrado, e queria sair de São Paulo para morar no meio do mato. Fui morar na serra, na zona rural de Pirenópolis. Para chegar em casa, eu passava pela pedreira, e isso começou a me despertar perguntas: “Cadê os trabalhadores? Que lugar é esse?”. A fratura está lá. Mesmo os turistas ambientais, que vão pelas cachoeiras, por exemplo, não exploram esta realidade. Quanto mais pesquisamos, mais descobrimos que se tratava de um lugar protegido. Não se tocava naquele assunto. Uma amiga, a Serena, se tornou a nossa produtora local, e nos levou à família de Dona Neide, Ganchão e Marcilei. Aí o filme aconteceu. Quando os conhecemos e testamos possibilidades, sendo bem recebidos por eles, o projeto se desenvolveu. Foram os trabalhadores que nos levaram à pedreira, e não o contrário. Eles acabaram sendo receptivos à ideia do filme, com todas as limitações do universo deles. Não existe uma expropriação, porque eles não saem de lá. Tivemos que lidar com isso: às vezes combinávamos de filmar, mas naquele dia o Marcilei conseguiu um trabalho carregando material, e teve que privilegiar este outro trabalho. Tivemos que nos adaptar a eles, enquanto eles se adaptavam um pouco ao filme.

Fizeram algum tipo de atualização no roteiro para retratar as novas condições de exploração trabalhista do Brasil atual?
Henrique Borela: Quando a gente aborda a questão do trabalho, ela necessariamente se relaciona com o tempo presente. Vamos olhar para este filme, e para outros daqui a 30 anos, a partir de um momento histórico específico. Obviamente, estamos numa época de desmonte do trabalho. O Ganchão diz algo no filme: “Depois de 13 anos trabalhando sem carteira assinada, vou sair da pedreira sem nenhum tipo de benefício”. Essa é a realidade dele, mas reverbera o que vivemos hoje.

Marcela Borela: Até quem tinha carteira assinada está perdendo isso, então imagina uma pessoa como o Ganchão, que nunca teve a carteira? Ele enfatiza uma camada ainda mais complexa ao momento que estamos vivendo.

Henrique Borela: Talvez para a gente, classe média que teve acesso à educação, assinar uma carteira não seja algo tão valoroso. Mas imagina um sujeito com um trabalho expropriado? Inclusive, Marcilei e Marcos não vieram apresentar o filme em Tiradentes porque conseguiram um trabalho com carteira assinada neste momento. É claro que isso foi excepcional, porque a regra hoje é a informalidade.

Marcela Borela: Ficamos tristes por eles não poderem estar aqui, mas ao mesmo tempo, estamos felizes que eles estejam trabalhando com um mínimo de direitos. Na pedreira, eles comentavam muito sobre a questão da carteira assinada. O tipo de regime de trabalho é fundamental para eles.

Henrique Borela: Não sei se você reparou, mas num dos primeiros planos do filme, um senhor usa uma camiseta escrita “Pedreiro autônomo”. Ele é o profissional mais velho da pedreira, há 53 anos, e assumiu um discurso diferente. Ele quer ser autônomo, não quer ter patrão. Um amigo sociólogo me diz que chegamos ao momento em que se tornou impossível saber se é bom ou ruim ter patrão. O momento é tão contraditório que hoje até parece bom ter patrão. O que está acontecendo? Sempre foi péssimo ter patrão.

 

Mascarados

 

Apesar da situação de opressão e injustiça, o filme é melancólico. Ele parece valorizar mais a sensação de impotência do que a raiva dos personagens.
Marcela Borela: Isso ocorre muito em função do modo como o filme foi feito. É curioso porque ali só acontece o que poderia acontecer. Cada personagem só reage da maneira que seria plausível para a sua subjetividade. Por mais que a gente escrevesse uma cena, ela era feita para o Marcilei, que tinha se tornado nosso amigo. O Lei se deixa levar: ele está na fronteira, dialoga com o universo das pedreiras e dos mascarados, mas também está sendo rondado pela polícia. Ele está zanzando. Já o Ganchão é um cara contido. Ele é voltado à família, é uma pessoa quieta que deseja estabilidade. O Vinícius chegou a este universo e está tentando aproveitar a oportunidade para se inserir socialmente. Ele se depara então com uma realidade que o Lei e o Ganchão já conheciam. O Juninho tem um trabalho temporário, mas é um cara sozinho, sem família. Ele faz dos amigos a família dele. Cada um encontra, portanto, a sua saída: o Vinícius tem uma saída delirante, o Juninho decide roubar uma carga e fazer uma grana, para resolver temporariamente a injustiça de não receber os direitos trabalhistas dele. Eles são livres em suas soluções. A demissão é um momento de confusão: é uma daquelas fases da vida em que todos percebem as coisas mudando, mas não sabem para onde. Cada um salva a própria pele.

Henrique Borela: Eu entendo que você fale sobre essa melancolia. Esta é a sua interpretação, mas a gente não vê essa melancolia no filme. É verdade que existe uma contemplação, porque a câmera está focada no olhar dos personagens. Mas a gente não sente essa resignação, nem a melancolia. Para a gente, fica mais forte a tensão deles, como uma pausa de pensamento. Cada um dá seu jeito. Por isso a gente jamais poderia escrever uma cena em que o Ganchão decide se rebelar e queimar a prefeitura. Ele jamais faria isso.

Marcela Borela: Os diálogos e as reações vêm deles mesmos, que estão constantemente cocriando com a gente.

Henrique Borela: Isso decorre do nosso dispositivo. A gente chegava e lançava uma situação a eles: “O Capivara invadiu a prefeitura com os Mascarados. Comentem”. Então eles fazem esta situação várias vezes, até chegarem num ponto interessante ao filme. Sempre oferecíamos uma situação fora de campo, para ver a reação deles. O Marcilei dizia, por exemplo, “Precisamos ir pra lá dar uma força, senão a festa vai acabar”.

Marcela Borela: Já o Ganchão dizia: “Você está louco? Não vou me meter nisso”. O Vinícius está hospedado na casa do homem que faz as máscaras, então enxerga a festa por outro ângulo, e o Juninho só quer curtir, quer ser um mascarado como os outros.

Henrique Borela: A contradição do Juninho é interessante. Ele se revolta junto da coletividade, mesmo sem pertencer àquela região. Ele se envolve politicamente com o universo dos mascarados, mas na hora que a crise estoura, ele resolve o problema só dele. Um homem coletivo, lutando por um bem coletivo, que depois passa a sobreviver sozinho.

Marcela Borela: Ao mesmo tempo, é curioso que a gente faça esse filme sobre o desaparecimento de um tipo de trabalho enquanto o nosso trabalho também está desaparecendo. O modo como a nossa geração organizou o fazer cinematográfico até agora acabou. Estamos no processo de ver desaparecer as formas que aprendemos, precisando nos reinventar. Estamos exatamente neste momento de confusão: nós perdemos e continuamos perdendo, mas não nos conformamos com o fato de não fazer cinema. Vamos fazer sim, só não sabemos como. Vamos sobreviver, nunca vamos deixar de filmar só porque a Ancine acabou. É misterioso o modo como o filme fica embrenhado na vida. Essa é a questão menos consciente na maneira como filmamos. Outra coisa que percebemos quando terminamos o filme que nossos dois longas, apesar de serem totalmente diferentes, são o retrato de uma família. Taego Awã aborda uma família que ancora todo o fazer. Nós dois somos uma família filmando outra família, e isso não se altera. A expectativa de vínculo é esta.

Henrique Borela: Este movimento de pessoas que filmam a própria família é muito curioso. O Bruno Risas está aí (com Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu), o filme do Getúlio Ribeiro (Vermelha), de Goiás também, é focado nas famílias deles. No nosso caso, a nossa mãe morreu em 2015, e fomos filmar outras mães. Em Taego e Mascarados, filmamos mães.

Marcela Borela: Elas acabam tendo uma relação materna com a gente, e a gente, com elas. A propósito, Neide é o nome da nossa avó, e a Dona Neide do filme nos ajudou para tudo. Os meninos não usam celular, e foi ela que resolvia tudo, coordenando com ele. Foi quase uma produtora.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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