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Masha :: “A música é uma forma de preservar algo da inocência roubada”, diz Anastasiya Palchikova

Publicado por
Marcelo Müller

Masha (2020) é um dos grandes destaques da segunda edição do Festival de Cinema Russo no Brasil. A trama do longa-metragem mostra uma menina que nasceu no seio de uma família de criminosos e contraventores. Ora ela aproveita esse medo imposto por padrinhos, tios e primos, ora é duramente afetada por uma lógica que inevitavelmente abrevia a sua inocência. E essa produção é autobiográfica, diz respeito à infância da cineasta Anastasiya Palchikova, com a qual conversamos remotamente sobre o filme com a ajuda de uma intérprete que facilitou muito o trânsito entre o idioma russo e o português. Perguntamos a ela sobre a dificuldade de trabalhar com um material tão íntimo, os pressupostos da escolha do elenco – principalmente da protagonista mirim – e a respeito de como ela oferece uma perspectiva feminina para uma história que já foi contada inúmeras vezes do ponto de vista masculino. Portanto, chega mais e confere o nosso bate-papo exclusivo com a atriz e cineasta russa Anastasiya Palchikova sobre Masha, filme disponível online e gratuitamente no Brasil

 

Este é um filme baseado em experiências pessoais. Quais são os principais desafios de trabalhar a partir de memórias e sensações tão íntimas e que devem ser traduzidas em sons e imagens para um espectador que não tem a sua familiaridade com aquele universo?
Antes de mais nada, gostaria de agradecer pela entrevista e dizer que gosto muito de ouvir o idioma de vocês, é uma beleza. Para mim já é suficiente escutar, mesmo sem entender (risos). Agora sim, respondendo à sua pergunta, lidar com essas experiências foi a parte mais complicada do trabalho. Quando fiz o primeiro tratamento do roteiro, voltei a sentir tudo isso, chorei, por mais que soubesse da necessidade de distanciamento. Aos poucos consegui me distanciar e ter uma visão mais objetiva. Mas, foi complicado trabalhar a partir de minhas memórias, sem dúvida.

 

Costumamos ver nos cinemas a criminalidade como um âmbito masculino. E com esse filme você traz outra perspectiva, a da menina paparicada que chega a exercer o poder de intimidação da família, mas que está crescendo e decide não perpetuar isso. Te interessava, a priori, essa perspectiva feminina?
Não necessariamente, pois para mim foi um processo muito íntimo. Quando eu pensei num futuro filme, queria faze-lo mais objetivo e detalhado. Minha ideia era mostrar a menina como parte desse mundo. No decorrer do trabalho, entendi que o mais importante era comentar o que ela sentia diante de tudo aquilo. Então, eu expressava tudo como lembrava, tentando traduzir essas sensações. Compreendi que não era preciso esmiuçar as motivações, pois essa história já foi contada milhares de vezes. O que diferenciava as coisas nesse filme eram as impressões pessoais.

 

O tema da inocência roubada é muito forte e aqui ele acontece nas entrelinhas. E o antídoto (a salvação) acaba sendo a arte. Dá para dizer que Masha é um testemunho pessoal em forma de filme sobre o poder curativo e salvador da arte diante num mundo dado a brutalidades?
Abordar esse tema da inocência roubada foi difícil. E falando especificamente da arte como alternativa, eu não tinha isso muito claro quando criei o filme. A intenção não era realmente mostrar a música como rota de fuga desse mundo cruel. Mas, de alguma forma isso aconteceu. Quando assisti ao filme montado, entendi que realmente ele se prestava a isso. A música não é apenas uma saída, mas uma forma de preservar algo dessa inocência roubada.

Você acha que há uma distância grande entre a concepção do filme e o resultado? Você diria que a contribuição do restante da equipe mais modificou algumas coisas originalmente planejadas ou tornou elas ainda mais consistentes?
Vou comentar em partes (risos). A influência do restante do pessoal da equipe foi intensa. Por exemplo, falando do ponto de vista das decisões artísticas. Quando eu estava escolhendo os atores para o elenco, não tentava encontrar necessariamente figuras que se parecessem com as pessoas que os inspiraram. Tentei fazer uma mistura. Levei em consideração as características do elenco e a partir disso mudei algumas coisas no roteiro. O mais interessante é que mudei o final do filme. O final planejado inicialmente era diferente. Não vou comentar mais, para não fazer spoilers (risos). Quando vi a atriz que viveu a Masha adulta, entendi que o encerramento teria de ser diferente. Então, sim, essa contribuição foi grande e modificou algumas coisas essenciais.

 

Gostaria que você falasse um pouco dessa reconstituição dos anos 1990, uma década que evidentemente é muito pessoal para você. Como foi esse processo de pesquisa?
Eu diria que a Masha e eu somos da primeira geração que cresceu livre, pois não precisávamos pensar muito sobre conseguir determinada peça de roupa, sapatos, discos e afins. Apenas depois de assistir ao filme entendi melhor certos aspectos disso. Por exemplo, a Masha escuta jazz, mas a mãe dela precisaria comprar esses discos de vinil de modo meio ilegal um pouco antes daquela época. O filme é também sobre a primeira geração livre da Rússia. A geração que teve acesso ao mundo, que não experimentou tantas proibições. Com isso já começava a aparecer esse capitalismo e muita criminalidade. Acho que consegui deixar esse passado para trás. Eu queria, desde o início, mostrar como as pessoas de nossa geração conseguiram isso. É uma reflexão que cabe bem na Rússia da atualidade. Estou entendendo que alguns conseguiram, sim, mas não o país em geral. Voltamos para um círculo parecido.

 

Como seu deu a escolha da Polina Gukhman para viver boa parte da trajetória de Masha? Quais eram os atributos que você buscava desde o início numa protagonista?
Passei muito tempo procurando a menina certa. A Polina foi ideal, eu diria até perfeita. Ela é muito vivaz, fazia caretas em qualquer momento (risos). Ela sempre estava emanando essa vida de maneira muito orgânica, além de ser uma atriz muito boa do ponto de vista da técnica.

O filme está chegando por aqui durante a segunda edição do Festival de Cinema Russo no Brasil. O que você acha dessas iniciativas de popularizar o cinema russo mundo afora?
Claro que enxergo esse festival com muitos bons olhos. O filme já foi exibido em vários países, mas eu queria muito que ele fosse projetado no Brasil. Acredito que russos e brasileiros têm algumas características muito parecidas. Então, eu tinha muita curiosidade de saber como os brasileiros reagiriam ao meu filme.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.