São quase vinte anos de carreira e mais de trinta produções em seu currículo. Matheus Nachtergaele é um dos atores mais requisitados do cinema nacional e com uma trajetória iluminada, cheia de personagens inesquecíveis em produções premiadas, era chegada a hora de uma grande homenagem. Ela viria em formato de troféu e de livro no 22º Festival de Cinema de Vitória, que deu ao ator um presente emocionante por seu conjunto da obra. Sua filmografia, inclusive, se encontra em construção constante, com novo capítulo sendo escrito em Big Jato (2015), premiado com cinco Candangos no Festival de Brasília de Cinema Brasileiro, incluindo o prêmio de ator a Nachtergaele. Nesta entrevista concedida com exclusividade, o eterno João Grilo fala sobre homenagens, seu relacionamento com grandes diretores, seu kikito em Gramado e o desafio de interpretar Zé do Caixão.
Como você recebe um prêmio como este, concedido pelo Festival de Vitória? É um final de ciclo ou um aviso de que existe muito ainda para fazer?
Os prêmios e as homenagens que a gente recebe servem para te confirmar que as pessoas continuam emocionadas com o que você faz. Nunca encarei a homenagem como o final de um ciclo. Ao contrário. Aproveitei o momento para olhar o trabalho todo. Foi editado por ocasião da homenagem um livro com meu trabalho, com depoimentos de amigos, diretores, colegas. Um texto jornalístico sobre a minha trajetória. Aproveitei isso para fazer uma reflexão do trabalho já feito. E com alegria, tomar fôlego para seguir. Eu sou relativamente jovem. E, de certa maneira, claro que me surpreende uma homenagem desse porte. Já fui homenageado em outros festivais, mas acho que essa vez foi a maior, com livro e tudo. E eu sempre procuro aproveitar para me abastecer de alegria, para criar uma reflexão do que eu já fiz. Eu sou muito crítico. Custo a ficar totalmente encantado. Não fico bobo, não. Acho bonito. Fico alegre. Mas sabendo que o trabalho está só no começo.
Você me parece um ator que aprende muito com cada nova experiência e com cada diretor que você trabalha. Vamos falar um pouco de alguns deles, começando com o Cláudio Assis, com quem você fez três produções, dentre elas a mais recente, Big Jato. O que você aprendeu com ele e o que vocês trocam quando fazem um trabalho juntos?
Nós somos amigos, amigos na vida. E acertamos e erramos muito juntos. Acho que o que aprendi com o Cláudio é que faz parte do trabalho artístico denunciar algum incômodo. Denunciar algum defeito grave da alma humana. É um cinema, neste sentido, muito radical. Quando eu estou com o Cláudio eu me jogo sem medo nessa crítica à sociedade brasileira. E com alegria, porque a gente faz muita farra. Procuramos mostrar como as coisas podem estar tão erradas em um mundo que poderia estar tão bom.
Outro diretor com quem você trabalhou bastante foi Jorge Furtado, quem lhe deu ótimos papéis na tevê. Quais foram os aprendizados?
A delicadeza. O Jorge é um dos homens mais cultos e delicados com quem eu já trabalhei. Eu aprendi muito com ele. Porque além de ser um ótimo diretor, um ótimo artista, ele também é um cara que adora dar cultura de presente. O Jorge nunca para de te dar um livro que ele achou bacana e que você possa gostar. De apresentar uma banda, uma música nova, que você não conhecia e ele acha que você possa gostar. Ele é um manancial de cultura. É incrível. Ele não para de te dar presentes. Eu aprendi com Jorge, além de coisas concretas, essa delicadeza. Ele está na vida de uma maneira delicada. Ele é um cara pela vida. Muito bacana.
Delicado e crítico, como podemos ver.
Muito crítico. Mas delicado. Educado. Porque o Jorge quer um mundo educado. Um mundo gentil. Para que a gente viva bem. E ele tem que fazer isso dessa forma. O Cláudio faz de outro jeito. O Cláudio faz gritando contra o que ele acha que está errado. São parceiros muito definitivos, muito amados por mim.
E Guel Arraes?
O Guel, além de ser um oásis da televisão brasileira, também é um homem cultíssimo. Cabra macho para caramba. O Guel me deu talvez um dos maiores presentes que a vida me deu que foi o João Grilo de Auto Da Compadecida. O Guel, sabendo ou não, me botou pra dentro do coração dos brasileiros de maneira definitiva. A mim, ao Selton Mello e a todo mundo do elenco. Nos tornamos protagonistas da mais importante peça do teatro brasileiro, representando personagens de um dos maiores autores da dramaturgia e da literatura brasileira, que é o Ariano Suassuna, e na televisão, que é o veículo mais forte para mostrar o nosso trabalho. O Guel, além da parceria sempre maravilhosa, me deu esse presente. Quase uma dívida eterna que eu tenho com ele.
Estive no Festival de Gramado e me surpreendi em vê-lo em um curta-metragem, inclusive que lhe deu seu primeiro kikito como ator nesta categoria. Como foi que você se envolveu com o curta e o que você pode dizer desse seu prêmio inédito?
Foi inédito e foi muito legal. Eu fiquei muito feliz. O Tiago Vieira é o diretor deste curta chamado Quando Parei de me Preocupar com Canalhas. Um menino jovem, deve ter no máximo 30 anos. Ele é de Goiás, mora em São Paulo, e é um batalhador. Como todo cineasta está aí batalhando, fazendo seus curtas, para um dia chegar no longa. Ele me procurou para que eu ajudasse numa campanha para arrecadar verbas para o projeto. Eu, pra poder fazer a campanha – e eu fiquei a fim de fazer – li o roteiro, que era baseado num quadrinho do Caco Galhardo, meu amigo. Eu adorei e me ofereci para fazer. Eu realmente faço pouco curta, por um motivo de tempo mesmo. Por estar sempre muito envolvido com outros trabalhos, é difícil eu topar fazer um curta. Não é por grana, não. O próprio Tiago disse: “poxa, como é que eu vou te pagar?” Eu disse: “Me hospede direitinho, me alimente direitinho e vamos lá”. Porque além de eu ter gostado dele e do roteiro que ele fez, da adaptação, achei que o curta falava de algo que era bom falar. Que é essa coisa de como falamos bobagem sobre política e de como a discussão política não tem profundidade no Brasil. As discussões políticas são emocionadas e ignorantes. Nesse momento a gente está, sem querer, participando de um golpe para se retirar um presidente da república e, com isso, traindo uma democracia há pouco tempo alcançada por causa de notícias que a gente nem sabe se são verdadeiras. Claro que a gente é contra a corrupção, em qualquer governo de qualquer partido. Mas o que está acontecendo aqui são as pessoas querendo voltar a um certo poder e querem utilizar a nossa ingenuidade e a nossa emoção para que participemos de um movimento meio descabeçado para se tirar uma pessoa que não tem porque ser retirada. Temos que, junto com a Dilma, e sim, através de manifestações e de uma participação, acabar com essa corrupção que é uma vergonha. As coisas básicas do Brasil não se resolvem porque essa gente fica mandando nosso dinheiro para fora do país, entendeu? As pessoas são donas de um estado inteiro no Brasil. Como assim, gente? Não se resolvem as coisas básicas e fica nessa coisa. Não sei quantos milhões foram roubados. Isso não pode. Mas não foi por causa dela. É porque isso foi sempre assim aqui e isso não dá para acontecer mais. Achei que o curta, de certa forma, fala disso. Fiquei a fim de fazer porque eu não sei falar de política. Então achei que seria uma maneira de falar um pouco sobre isso através de um trabalho. E fiquei superpimpão de a gente em Gramado ter ido bem e de as pessoas terem gostado do filme. Foi um barato.
Seu próximo trabalho é a série sobre o Zé do Caixão e no seu filme anterior, Trinta, você vivia o Joãozinho Trinta. Para você é diferente interpretar um personagem fictício em comparação a uma pessoa que vive ou já viveu?
É diferente. É claro que em um certo momento, quando o diretor diz ação, o que você tem ali é um personagem e uma cena para fazer, da maneira como cada ator faz. Mas a construção é outra. E o sentido é outro, porque é um sentido de homenagem. Então, tanto no Trinta, do Paulo Machline, quanto na série do Vitor Mafra, Zé do Caixão, eu estava homenageando alguém que eu admiro. Um artista brasileiro. Tanto o Joãozinho Trinta quanto o Mojica são artistas genuinamente nacionais, apesar de serem muito diferentes. Tem trajetórias assemelhadas, são autodidatas. De origem humilde, que com as próprias garras fizeram sua obra. Um muito maluco, que faz filmes de terror, um cara que foi pra pornochanchada, meio machista, meio polêmico. E o outro não menos polêmico, mas mais ligado ao balé clássico, à cultura europeia e que injetou isso no carnaval popular do Rio de Janeiro. Então me senti muito feliz por ser o ator escolhido para representar – ou até melhor, homenagear – esses dois caras. Em outubro, se não me engano, estreia no Space a série do Zé do Caixão e preciso agradecer a Rede Globo que me liberou para fazer isso. Eu sou contratado da TV e eles me liberaram para eu fazer este trabalho, porque era o Mojica. A gente teve uma reunião pra isso, porque sou contratado e não poderia fazer. Mas eu disse: “Pessoal, é o Zé do Caixão. É o Mojica!” E eles falaram: “tá bom, faz. Mas depois volta!” (risos)
Que bom que deixaram.
Eu devo a eles muita coisa. Vou aproveitar esse espaço para dizer isso. A Rede Globo, sabendo ou não, me permite continuar contribuindo com o cinema brasileiro, apesar de ser um funcionário deles. E de vez em quando eu vou lá, faço trabalhos que eu adoro, e quando não estou lá eles me liberaram totalmente. Do tipo: “vai, se você quer fazer é porque é legal”. Então, eu devo a eles muitas coisas e muitos projetos meus, dos quais eu participei, devem à Rede Globo a minha presença.
(entrevista realizada em Vitória, Espírito Santo, em 14 de setembro de 2015)