Thomas Hardiman é um dos novos nomes que tem dado o que falar no mais recente cinema britânico. Antes de trabalhar com direção, atuou no cinema e na televisão em diversas áreas: assistente de direção, produção, roteiro, direção de arte e montagem. Os dez primeiros anos de sua carreira foram ocupados com a realização de curtas-metragens, dos quais se destacam títulos como Radical Hardcore (2015) e Pitch Black Panacea (2020), que foram exibidos em diversos festivais ao redor do mundo. Sua estreia em longa-metragem se deu com um misto de drama, comédia e suspense: Medusa Deluxe (2022), cuja première foi no Festival de Locarno, na Suíça, para depois passar por Londres, Sitges, Estocolmo, Roterdã, Manchester, Minneapolis, Jeonju, Atlanta e até na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Premiado no British Independent Film Awards e no Festival de Guadalajara, trata-se de um típico whodunit, ou seja, uma história de assassinato e de “quem matou?” ambientada nos bastidores de um concurso de cabeleireiros! Aproveitando o lançamento nos cinemas brasileiros, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com o diretor, que falou mais sobre suas influências e sobre sua relação com o cinema sul-americano. Confira!
Olá, Thomas. Prazer falar contigo. Antes de mais nada, o que o motivou a escolher os bastidores de um concurso de cabelos para ambientar sua história?
Acho que, antes de qualquer coisa, você precisa se divertir. Você, enquanto contador de histórias, quer envolver as pessoas. Então pensei que esse fosse um ambiente ao mesmo tempo inesperado, mas também divertido. Com grande potencial emocional. Eu, particularmente, adoro o universo dos cabeleireiros. Passei muito tempo em salões de beleza, quando criança, acompanhando a minha mãe.
Sério mesmo? Como se deu isso? Foi algo que desde pequeno você gostava?
Exato, sempre fiz questão de acompanhá-la, pois era exótico, cheio de cores, e muito engraçado. São figuras icônicas que surgem das mãos destes artistas. Venho de uma grande família irlandesa, e há muitas histórias que vão surgindo a todo instante cada vez que todo mundo se encontra – e que lugar melhor para essas mulheres começarem a falar sem parar do que num salão de beleza? O ambiente que conhecia da minha casa era o mesmo que encontrava nessas visitas com a minha mãe. Ao mesmo tempo, porém, queria que houvesse essa aura de mistério, para quebrar as expectativas. Queria que não fosse uma versão clássica de um conto de suspense, que a audiência se deparasse com algo novo e inesperado. Por isso imaginei que os bastidores de um concurso de beleza pudesse proporcionar essa estranheza e, ao mesmo tempo, familiaridade. Ou seja, de um lado buscamos uma certa leveza e entretenimento, mas, por outro, havia essa intenção de ir além dos limites já conhecidos.
Então quer dizer que, com exceção do caso do assassinato, todo o resto que é visto em cena lhe era bastante familiar, certo?
Sim, de uma certa forma, com certeza. Passei muito tempo durante a minha infância e adolescência em lugares como esses vistos no filme. Revistas como Vogue, Elle, Cosmopolitan sempre me fascinaram. Quando cheguei em Londres, e descobri publicações específicas sobre moda e estilos de cabelos, foi um novo deslumbre. Foi quando comecei a apreciar de verdade essas criações como manifestações artísticas, quase como numa visita a uma galeria. Você pode ter o mesmo nível de criatividade na cabeça de alguém quanto aquele disponível em uma exposição de quadros ou esculturas. Acho que isso é algo que tentamos deixar claro nesse filme, mostrar que cabeleireiros são pessoas especiais, e é preciso dar-lhes tempo para que a arte deles floresça.
Medusa Deluxe assume um formato ambicioso de plano-sequência desde a sua cena inicial até os créditos finais. Como foi se preparar para isso? Quanto tempo levaram as filmagens e como foram os ensaios?
O filme inteiro foi filmado em nove dias. E, sim, foi duro e bastante difícil de ser realizado. Tivemos que ensaiar por várias semanas antes das filmagens em si. Foi uma experiência incrível. Sabe, estávamos unidos no mesmo intento de realizar algo ambicioso, mas, ao mesmo tempo, simples, pois dependia apenas de nós. Estávamos correndo na mesma direção. Em termos de ser um único plano-sequência… bom, você sabe, tudo começou com Alfred Hitchcock. Não sei se você assistiu ao filme Chantagem e Confissão (Blackmail, 1929)? É o primeiro longa falado dele. Tem uma sequência na qual a câmera vem do fundo das escadas e vai até o topo, lá em cima, que me deixou deslumbrado. Você pode imaginar, procurei por muitas referências, sou interessado por esse tipo de pesquisa, mas nada me deixou mais perplexo do que aquilo que Hitchcock conseguia fazer.
É possível afirmar que Alfred Hitchcock foi uma grande influência na realização de Medusa Deluxe?
Ele era o mestre do suspense, em criar esse tipo de tensão. Ele estava sempre tentando fazer com que a câmera se mexesse menos, mas focada por mais tempo. Independente se era na rua, em tomadas externas, ou nos sets, em ambientes controlados. Era o modus operandi dele, e agora, olhando em retrospecto, fica fácil entender como os filmes dele funcionavam. Como conseguia fazer aquelas tomadas tão longas e tão perfeitas? Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), é o meu Hitchcock favorito, quando ele se torna realmente sublime. Também gosto muito de Os Pássaros (The Birds, 1963), pois é absolutamente bizarro (risos). Era um cineasta incrível. Mas a razão pela qual gosto tanto de Janela Indiscreta é pelo modo como controla todos aqueles cenários. Sei que ficou famoso também por recriar ambientes em locações, mas os sets desenvolvidos para esse filme são feitos de tal maneira a se retirar o máximo possível de cada um. Tudo é milimetricamente perfeito. É mais ou menos o que tentei alcançar com o Medusa Deluxe, confesso. Queria estar ao lado daqueles personagens, e que tudo que fosse visto em cena tivesse algum sentido.
Imagino que Martin Scorsese também tenha sido uma referência, não?
Ah, com certeza. Aquela cena inicial – bom, não é bem a abertura, mas quando o protagonista se mostra crescido e maduro, pronto para enfrentar aquele submundo – de Os Bons Companheiros (1990) é artisticamente perfeita. Uma das tomadas mais incríveis de todos os tempos. O Show Deve Continuar (1979), do Bob Fosse, foi outra influência, obviamente. O Namoradinho (1971), do Ken Russell, também. Mas como fugir de Robert Altman? É curioso pois, quando penso em uma história, o que mais me interessa de imediato são os personagens, e como eles se comportam enquanto pessoas, indivíduos. A maneira como se realiza uma comédia de elenco, é, por outro lado, algo que sempre me chamou atenção também. É importante ter essa coragem de assumir os riscos. Títulos que ele fez, como O Jogador (1992) ou Assassinato em Gosford Park (2001) são de deixar qualquer um boquiaberto. Era um verdadeiro gênio. Nashville (1975) é provável que tenha sido, no final das contas, a minha maior referência. Eu simplesmente amo.
Gostaria que você falasse um pouco sobre o título: como lhe veio esse nome, Medusa Deluxe?
Bom, é engraçado, eu sei. Mas veja bem: os personagens estão o tempo todo percorrendo corredores, certo? E tudo o que falam e se ocupam é sobre cabelos. Ou seja, as relações com o mito da Medusa estão por todos os lados. São movimentos que intrigam, como serpentes. Há também, e não posso negar, a vontade, desde o início, de que esse fosse um drama conduzido por mulheres. É uma referência clara a minha mãe e minha família – eram sete irmãs no total! Sempre achei a lenda da Medusa bastante misógina. Veja bem, ela provavelmente era uma mulher brilhante, com a qual os homens não conseguiam lidar, então acabou amaldiçoada com essa terrível história. A partir disso, passou a ser vista como um monstro. Medusa Deluxe é sobre romper estes pré-conceitos, ir além dos limites. Queria oferecer um novo conceito a uma trama há muito conhecida. Por isso o título, queria oferecer um novo – e reinventado – olhar sobre o velho mito, em uma ambientação moderna.
Um dos destaques do filme é também o elenco. Me diga, você já escreveu os personagens com estes atores em mente?
Não, e vou ser sincero com você. Os atores só vieram depois. É muito importante que cada personagem exista na sua cabeça como algo independente. Pois, quando começamos a procurar pelos intérpretes, é uma verdadeira joia se deparar com alguém que tornará real aquilo que, até então, estava apenas na sua imaginação. Não havia nenhuma noção pré-concebida. Atores são pessoas incríveis, podem criar universos inteiros a partir de palavras no roteiro. Por isso não queria dar nada pré-determinado a eles. Deixei que cada um fizesse sua própria interpretação, e a partir deles fui me aproximando com o que tinha em mente. Só assim foi possível me surpreender com o que eles tinham a oferecer.
Medusa Deluxe tem circulado desde a primeira exibição, no ano passado, no Festival de Locarno. Como tem sido a recepção ao filme?
Tem sido incrível. Vou te dizer, não cresci pensando: “olha só, vou ser cineasta e dirigir um filme”. Nunca foi um sonho tangível. Mas hoje, olhando para trás, me considero incrivelmente sortudo por tudo o que tenho conseguido. A cada apresentação do Medusa Deluxe foi possível sentir essa excitação, o carinho das pessoas, cada experiência foi realmente única. Muito especial. Somos todos diferentes, cada um tem suas origens e influências. Veja bem, não sou um cara que gosta de filmes de horror – mas adoro O Bebê de Rosemary (1968), por exemplo. Então, cada vez que algum fã de filmes de horror chega para mim se declarando entusiasmado pelo Medusa Deluxe, é uma surpresa. Pois foi algo que agiu quase num nível subconsciente, entende? É legal, pois te faz olhar para trás e refletir sobre o que fiz. É um diálogo constante e renovado a cada oportunidade, com o público e com o próprio filme.
Você já esteve no Brasil?
Vergonhosamente, preciso admitir que não. Mas tudo o que vejo e ouço a respeito é deslumbrante, é um lugar que quero conhecer. Mas, em minha defesa, confesso que não sou uma pessoa que viaja muito. Nunca estive na Ásia, por exemplo. Porém, se algum dia conseguir ir até o Brasil, você não vai acreditar o quão feliz estarei pela oportunidade. Sei que é um país maravilhoso. Mas já estive aí perto, veja só! Passei um bom tempo no Peru, e foi um período durante o qual consegui me conectar com o cinema sul-americano de uma maneira muito interessante. Filmes do Brasil, Argentina, Chile… são obras que trabalham com a emoção dos personagens, pelo que pude perceber, e é algo lindo de se ver. Me faz pensar que talvez tenha sido influenciado por esse período que passei pela América do Sul mais do que havia imaginado até então.
Você conhece algo do cinema brasileiro?
Mas é claro, como poderia ser diferente? Vocês tem filmes incríveis por aí. Obviamente, tentei assistir aos clássicos feitos no Brasil, mas também os mais contemporâneos. Sei até que há um longa brasileiro bastante recente chamado Medusa (2021), não é mesmo? Se não me engano, foi exibido no Festival de Cannes. Não o vi ainda, mas estou curioso. Medusa é, para mim, o mais interessante de todos os mitos antigos. Cada nova visita a sua história merece ser conhecida.
(Entrevista feita via zoom entre Brasil e Inglaterra em junho de 2023)