Francisco Gaspar é um dos nomes mais ativos do cinema nacional nas duas últimas décadas, por mais que nem sempre seja reconhecido. Isso se deve muito a sua versatilidade, que leva o ator paraense – porém, morador de São Paulo há mais de quarenta anos (“só sotaque paulista é que não tenho”, afirma) – a encarnar os mais diversos tipos e figuras na tela grande. Parceiro frequente nas obras do diretor Marcos DeBrito, atuou sob o comando de grandes cineastas, como Bruno Barreto, Halder Gomes, Rodrigo Aragão e Jeferson De, além de ter marcado presença também no exterior, tendo filmado na América Latina e até na Europa. Mesmo com um currículo desses, está sempre disposto a voltar às origens. É o que faz no independente Ménage, produção filmada em 2017 que somente agora chega aos cinemas. O longa, dirigido pelo jovem Luan Cardoso, é quase uma radiografia dos ‘podres poderes’ que comandam o país, a partir de um episódio bastante íntimo: três homens, uma garota de programa e uma noite em um motel. Foi sobre esse personagem que o ator conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Oi, Francisco. Bom, pra começar, queria que falasse um pouco sobre quem é o Roberto, teu personagem em Ménage.
O Roberto, na verdade, não é mera coincidência. É um cara que existe. Estamos convivendo com esse Roberto. É um desses administradores desse Brasil. Mesmo tendo construído esse personagem junto com o diretor e meus colegas em 2017, naquela época ainda não tínhamos esses ‘grandes talentos’ que estão hoje no poder. Afinal, estava no roteiro. Quando chegou até mim, já havia essa ideia por trás. Acredito, portanto, que tenha sido um pouco premonitório, pois cinco anos depois ainda seguimos convivendo com essas criaturas.
Em 2017 já havia ocorrido o golpe que tirou a Dilma Rousseff do poder, mas ainda não se tinha a consolidação desse movimento, com a eleição do inominável que só ocorreria no ano seguinte.
Exatamente. Estamos convivendo com esses bueiros até hoje. O Roberto é uma figura distante de qualquer cidadão que tenha consciência da vida, e principalmente, da vida do outro. É distante de mim, obviamente. Tem absolutamente nada a ver comigo.
Como surgiu esse convite para participar de Ménage e o que te motivou a fazer parte do filme?
São duas perguntas, então vamos por partes. Primeiro, havia trabalhado com a Ana Souto em ocasiões anteriores. Ela é co-roteirista do filme, e foi quem lembrou de me convidar. É também diretora de teatro, atriz, enfim, um nome presente. A Ana que me apresentou o Luan Cardoso. Na ocasião estava estreando o A Estrada 47 (2013). Quando li o roteiro, a primeira coisa que pensei foi: “tenho que fazer esse personagem de qualquer jeito”. Era um texto que me interessava dizer. Tenho isso comigo do que quero ser voz. Ainda tenho esse poder, de decidir o que quero que seja dito por mim. Porque às vezes você não tem como escolher, e em outros casos a palavra certa não chega até você. Me sinto muito honrado por ter dado pele a esse ser tão do submundo.
O que o Roberto tem a ver com outros tipos que criou na sua carreira?
Você acompanha a minha carreira há algum tempo. Então, sabe que ele se alinha com essa textura de personagens complexos. E por que me interessa dizer as coisas que o Roberto e os companheiros dele falam? Quero dizer a esses homens, que convivemos desde a nossa infância ou adolescência, e que seguem no poder em 2022, que não podem ser assim. Não devem tratar as mulheres desse jeito. Ou o trabalhador, o homem que vive do suor do seu esforço. Que é preciso ser gente, ser humano. Uma arma que tenho na mão para que isso se manifeste é o cinema. Ou o teatro, ou a televisão. E a literatura, pois também escrevo. Mas como o cinema tem essa abrangência maior, o pinto com essas cores. “Para de ser assim, olhe como é asqueroso ser tão nojento, tão abjeto”. Isso é o que me interesse enquanto artista. Dizer isso da forma mais colorida possível. Às vezes pode ser um pouco over, mas talvez porque seja necessário que o vejam desse jeito para que, enfim, possam se olhar.
O Roberto é um personagem que vai provocar fortes reações no espectador. Você prefere tipos assim, controversos?
Parto sempre de uma observação do externo. Mas tenho que encontrá-lo dentro de mim, mesmo não sendo ele. É difícil chegar nesse lugar. Nessa concretude. Ele parte dessa pesquisa, que começa com o que me deram como argumento. Durante a busca, por vezes pode ser que encontre algo que não estava no roteiro, mas que, mesmo assim, some muito. Pode ser doloroso, mas também prazeroso. Nós artistas, precisamos encontrar o prazer. Digo que tenho sorte em encontrar personagens diferentes uns dos outros. Fiz figuras meigas, como o Piauí do A Estrada 47. Por outro lado, trabalhei muito com o Marcos DeBrito – já fizemos três trabalhos: o curta Overdose Digital (2007) e os longas Condado Macabro (2015) e As Almas que Dançam no Escuro (2021) – e todos absolutamente diferentes de mim. Ao mesmo tempo, tem muito do Francisco Gaspar ali.
É preciso maturidade pra reconhecer também essa lado sombrio, digamos.
Sim, com certeza. Claro que essas sombras, em algum momento da minha vida, convivi com elas. Será que aquele Roberto não é o meu irmão, uma pessoa que possivelmente agisse daquele modo? E tudo o que fiz foi ter filtrado de outra forma? Temos que saber como jogar, até para que os espectadores consigam identificar esses tipos. É ficção, mas nem tudo é inventado. Antes de mais nada, é preciso coragem pra lidar com essas criaturas e fazer virar poesia. Mesmo no cinema brutal, no registro cru, gosto de poesia. Tenho medo do cinema que quer apenas mostrar, chocar. Não é o tipo de desenho que me interessa. Foi uma premissa que deixei em evidência desde o momento em que o Luan e a Ana me apresentaram o roteiro. “Só quero fazer esse filme se trabalharmos como denúncia, e não como apologia”. Obviamente, todos concordaram. Se não tivesse essa co-roteirista, o envolvimento dessa mulher, creio que não teria feito esse filme. Porque não iria ficar um diretor e mais três machos, fazendo tudo o que a gente faz em cena, sem contar com o olhar de uma mulher.
Ménage é o primeiro longa do diretor Luan Cardoso, que é um cara que está começando. Já a Ana possui mais experiência. Como foi lidar com esses dois olhares?
A Ana não esteve nenhuma vez no set comigo. Nem como atriz, pois não temos cenas juntos. Mas é uma mulher sensível, forte, pela qual tenho muita admiração, tanto pelo trabalho artístico, como pela atuação política. E que escreve bem. Há essa paixão entre nós, entre a atriz, a escritora, e eu. Com o Luan foi uma grande descoberta. Ele tinha apenas 22 anos quando dirigiu esse filme. Não tivemos tempo para preparação. Fizemos leituras de mesa, os protagonistas e o diretor, mas não chegamos, por exemplo, a reunir o elenco inteiro. Esse projeto nem chega a ser de baixo orçamento, não sei nem definir. É um filme 30 centavos. Aliás, faço muitos longas e curtas nesse perfil. São obras que nos permitem falar e fazer o que gostamos. No sentido de uma liberdade do que dizer. Claro que, se depois rolar algum investimento, coisas podem ser cortadas. Mas fizemos antes.
Você é um cara presente na cena independente nacional. Como analisa esse cenário e os novos realizadores que estão surgindo?
O Condado Macabro, que filmamos em 2012, foi o primeiro que fiz nessa leva independente. De lá pra cá, se passaram dez anos. Não faço apologia que se deve fazer cinema sem dinheiro. De forma alguma. Todos os que fiz, foi sempre com prazer, mas também com sofrimento. Principalmente para o diretor, que abraça o projeto e depois passa anos fazendo, tentando montar. Acho absolutamente incrível que as mulheres estejam ganhando espaço. Quando comecei, o cenário era diferente. Hoje, já vê mais mulheres do que homens. E isso é incrível. Primeiro, que a mulher é muito diferente do homem, na forma de tratar, de lidar. O olhar é outro. Há a importância de ouvir essa voz, da representatividade. É preciso ter mulheres falando delas, e às vezes falando dos homens também. É muito legal. E vale para todos, para os povos originários, para os LGBTQIA+, para as periferias. Isso, pra mim, não tem preço. Mas não é fácil. Longe disso, aliás.
Desde o início da pandemia você tem se mantido ativo, tendo se envolvido em mais de uma dezena de projetos, entre longas, curtas e séries. Como é seguir fazendo arte quando o país inteiro parece conspirar contra?
Não sei teorizar isso. Na verdade, muito do que tem aí foi feito antes da pandemia. Tipo o Ménage, filmado em 2017. O do Marcos DeBrito foi dois meses antes. O do Joel Zito Araujo (O Pai da Rita, 2021), filmamos um mês antes da pandemia começar. Entre 2019 e 2021, tive quatorze projetos pra estrear, mesmo participações menores. Vejo tudo igual, todos são meus filhos. Tenho carinho, afeto. Como sobreviver a isso que está acontecendo no Brasil de hoje? Difícil explicar. Tem que ter paixão. Assim como posso escolher o que quero dizer, às vezes consigo escolher o projeto que quero estar. E às vezes tem aqueles que não me escolhem, e tá tudo bem. Faz parte do jogo. Quando comecei a fazer cinema, em 2001, era tudo mais difícil. Venho do teatro, mas sempre fui cinéfilo. Não fiz escola de cinema, nem graduação em teatro. Nunca pensei em ir para a tela de cinema. Foi tudo natural.
Ménage foi filmado há alguns anos, mas somente agora está chegando aos cinemas. O Brasil mudou muito nesse período. Como acredita que o público irá recebê-lo?
Parece um roteiro mal-escrito. De fato, o Brasil de 2014 pra cá, se fosse na ficção, ninguém iria acreditar. Ia ver e falar: “tá errado. Isso não cola”. Quando filmamos, estávamos sabendo dessa loucura que viríamos a ter. Te digo com sinceridade: infelizmente, o Ménage está mais atual. Gostaria que fosse o contrário, que tivéssemos passado por isso e fosse um filme velho, vencido. Vai ser dolorido ver aquele retrato pintado com cores tão fortes. É um Brasil que vivemos até hoje, com essas porradas, dores e enganos. Não gosto disso, não. Seria melhor se já tivéssemos passado, e fosse só uma ficção. Uma lembrança de como foi, mas que não é mais. Espero que daqui a 5 anos a gente olhe e pense assim. Acho que o cinema tem também esse papel. Pega o Terra em Transe (1967), do Glauber Rocha, e pense: “o que esse povo tava vivendo?!?”. São obras que me arrepiam. Como esses homens e aquelas mulheres viam o Brasil daquela época? Claro que o Ménage não tem a mesma grandiosidade, de forma alguma estou comparando os dois. Mas também tem sua responsabilidade enquanto retrato de uma época.
Vocês três voltaram a trabalhar juntos, certo?
Sim. Fizemos um outro filme após o Ménage, que é o Deságua (2021). Na verdade, é a junção de doze videoclipes, e a Ana Souto fez um roteiro para conectá-los. Eu participo de quatro. É também megapolitizado. Tem uma trama, uma coisa muito louca. Acho até que é o primeiro caso de um elepê que virou longa. É um álbum do Mombojó, mas é também cinema. Tem o impeachment da Dilma, o discurso da derrota do Haddad. E feito nas mesmas condições, com zero orçamento, mas muita paixão.
O Brasil precisa redescobrir seus artistas.
Tudo está dizendo ‘não’ para a arte no Brasil de hoje. Não vá fazer porque não vai dar certo, porque não tem dinheiro. Precisamos mais do que vontade. É uma forma de resistência num grau de insanidade. Não tá fácil. E tá assim pra quase 90% dos meus colegas. Claro que tem gente que tá tranquila, e segue fazendo seus trabalhos, mas essa não é a minha realidade e nem da grande maioria, companheiros de teatro e de cinema. Preciso ter esse brilho no olho, essa pulsação. Tenho histórias para contar. E se o ator não tiver um certo grau de insanidade, não consegue acontecer. É preciso acreditar. Tem que se jogar. Ménage foi uma prova grande disso.
(Entrevista feita via zoom em março de 2022)
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