Depois de estrear no festival Visions du Reel, na Suíça, Meu Corpo é Político teve uma sessão inesquecível no Olhar de Cinema deste ano. Quem estava presente no evento curitibano pôde testemunhar a ovação do público que sobreveio à exibição desse documentário sobre quatro personagens transexuais, moradores de São Paulo. Não deu outra, o filme foi agraciado com o Prêmio Olhares Brasil, conferido ao melhor longa-metragem brasileiro das mostras Competitiva, Outros Olhares e Novos Olhares. Depois disso, a realização da cineasta Alice Riff teve passagem pelas programações do BAFICI, do Torino LGBT Filme Fest e do 50º Festival de Brasília, ocasião, esta, em que tivemos esse Papo de Cinema com ela. Alice nos recebeu gentilmente para uma conversa sobre seu processo criativo, a vontade de abordar as realidades retratadas na telona e a importância de Meu Corpo é Político num momento de profundo retrocesso como o nosso. Confira!
Seu filme fala de resistência, visibilidade e ocupação de espaços. De que maneira essas questões são urgentes para você?
Este é o meu primeiro longa-metragem. Antes dele, realizei cinco curtas, todos meio que apontando à mesma coisa. No cinema, me interessa refletir sobre que histórias a gente conta, que imagens devemos produzir e como produzimos essas imagens. Há uma História hegemônica, sempre contada a partir de um único ponto de vista. A militância transexual está no caminho da visibilidade, busca ocupar espaços, mudar a forma como vinha sendo retratada, e, também, começar a retratar. Até mesmo as escolhas estéticas do filme estão condicionadas por essa intenção. Por exemplo, filmar de dia, com uma câmera instável que se movimenta na rua. Sempre acompanhamos esses personagens em casa, reclusos, ou à noite, nas ruas.
Como se deu a escolha dos personagens?
Buscávamos pessoas que representassem o que queríamos dizer, que não fossem propriamente militantes, mas que vivessem aquilo. Na verdade, todos eles são militantes, mas o que quero dizer é que tem muita gente, por conta da militância e do discurso, praticamente impermeável. Conversamos com muita gente, foi uma pesquisa importante para eu entender um monte de coisas. Já imaginava a Paula, pelo espaço que ela ocupa, como personagem. Quando conheci a Linn da Quebrada ela não era nem cantora de funk ainda, era do teatro, estava experimentando mil coisas. O Fê foi incrível porque é um homem trans, negro, que trabalha no telemarketing. Curioso, porque a maioria das pessoas trans no mercado de trabalho está no telemarketing. O Fê namorava a Giu. Isso é muito incrível. Nunca quis falar sobre sexualidade, mas acerca de gênero, identidade de gênero. Aí nós temos um casal, formado por um homem e uma mulher trans, sem a necessidade de explicar isso.
A abordagem dessa aproximação entre eles é extremamente natural, aliás, como tem de ser…
Tive muito cuidado. A pesquisa foi no sentido de entender várias coisas, mas o meu desejo era não exotizar, ou mesmo fetichizar os corpos. Várias representações de trans são exóticas. Na verdade, os personagens chegaram até ao meu filme muito mais por nossas semelhanças que por nossas diferenças. Estamos juntos, lutando. Também luto, enquanto mulher, por várias coisas, seja dentro da minha vida pessoal ou da profissional. Também disputo espaços.
Você encontrou algum tipo de resistência no universo trans por ser uma diretora cisgênero?
Sim, e acho essa resistência bastante legítima. Afinal, quantos diretores ou diretoras trans nós temos no Brasil? Pouquíssimos! Agora conheço, mas na época em que comecei a fazer o filme não conhecia um ou uma sequer. Essa luta tem de ser escancarada a todo o momento. Se alguém chegar dizendo que quer fazer um filme sobre mim, vou querer saber coisas, normal. Então, essa resistência é natural. Ademais, muita coisa ruim já foi produzida. Ficar reafirmando estereótipos não dá mais. As resistências que sofri foram ótimas para a construção do filme, especialmente para o filme ser o que ele é.
Legal isso da resistência como elemento de criação…
Temos de respeitar! A comunidade trans sofre com a agressividade desde sempre, na escola, no mercado de trabalho e dentro de casa. São pessoas expulsas de todos os lugares, marginalizadas o tempo inteiro. A violência vai ao encontro desses corpos constantemente, da hora que eles acordam até o momento deles dormirem. Então, quando me volta uma reação mais reservada, não tenho problema com isso, porque no fundo são pessoas compreensivamente com a guarda alta o tempo inteiro, 24 horas por dia.
Dentro da nossa sociedade atual, que espaço o Meu Corpo é Político ocupa?
O cinema pode propor pensamento, reflexão e transformação. Esse filme é muito pequeno, mas faz parte de uma rede de coisas que vão acontecer. Para mim, ele é importante, pois está na ordem das realizações que privilegiam histórias existentes, mas nunca contadas. Embora haja uma questão temática, é muito ruim quando enquadramos o filme em determinada caixinhas. Meu Corpo é Político pensa o cinema, pensa o documentário. Mas no momento que o Brasil vive, de completo retrocesso, essas histórias são cada vez mais fortes. Não podemos ter apenas um tipo de representação, pois, o que ganhamos com a recorrência dos mesmos pontos de vista? Qual é o sentido de produzirmos tantas imagens? Essa é uma reflexão que me interessa.
Qual a maior dificuldade para realizar este filme?
A questão logística. Os quatro personagens moravam em partes muito distantes de São Paulo, então, para começar a filmar às 8h nós começávamos a nos mobilizar às 2h. O filme foi feito a partir do edital das TVs públicas do Fundo Setorial. Na verdade, era para ser apenas um telefilme. Até mesmo fato de o filme ser bastante roteirizado é porque tínhamos pouquíssimo dinheiro. Filmamos tudo em 15 diárias. Realizamos as versões telefilme e longa-metragem. Acredito que fizemos mágica com o dinheiro que deram para a gente, no fim das contas. Nesse sentido, do resultado, foi um sucesso de produção.
Como você acha que o filme vai reverberar no público?
Primeiro de tudo, acho importante o filme estrear em salas de cinema, ocupar esse espaço. Estamos pensando numa estratégia de distribuição super criativa para conseguir, de fato, chegar não somente à comunidade LGBT, obviamente um dos públicos-alvo do filme. Queremos ir além. Meu Corpo é Político não busca conversar somente com quem entende, com os “convertidos”, vamos dizer assim, mas também com um público mais amplo. Espero que o filme dê visibilidade a esses movimentos, pois ele faz parte de uma rede muito maior, empenhada em dar dignidade às pessoas trans. A expectativa, enfim, é que o filme seja visto.
(Entrevista realizada ao vivo, em Brasília, em setembro de 2017)