Diretor, ator, roteirista, produtor, fotógrafo e até diretor de arte: o holandês Jan Kounen já fez de tudo um pouco em uma carreira que está completando três décadas de atividades! De videoclipes da dupla Erasure até o ultraviolento Dobermann (1997), do curta musical A Última Chapeuzinho Vermelho (1998) até o histórico Coco Chanel & Igor Stravinsky (2009), o cineasta tem se revelando um dos mais ecléticos na língua francesa contemporânea. E agora dá mais uma demonstração de versatilidade ao comandar a comédia Meu Primo (2020), estrelada por pelos icônicos Vincent Lindon e François Damiens. Destaque na recente edição do Festival Varilux de Cinema Francês – que nesse ano marcou presença como uma das primeiras atividades presenciais, estimulando a volta à tela grande – esse road movie estrelado por uma dupla de opostos é eficiente em comover e também em provocar boas risadas. Foi em busca dessas inspirações que conversamos com o realizador, em um bate-papo ao vivo – e virtual, é claro. Confira!
Olá, Jan. Você ficou conhecido por filmes que promoviam retratos sociais corrosivos. Em Meu Primo, no entanto, você investe na comédia de costumes. O que motivou essa mudança de abordagem?
É muito simples a resposta para essa questão. Fiquei sem fazer filmes por muito tempo porque, com a crise, não havia financiamentos disponíveis para os meus projetos. Estava trabalhando em um filme fantástico com o produtor Richard Grandpierre, anos atrás. Durante essa parceria, ele veio até mim e propôs que fizéssemos juntos também o Meu Primo. Era algo que já estava pronto, havia um roteiro finalizado, precisava apenas de um diretor. Foi um desafio para mim, portanto, nesse sentido. Você está certo quando diz que eu geralmente estou em outro lugar. Nesse caso, tive que me perguntar: “ok, essa é uma comédia, o que posso fazer nessa situação?”.
O que te motivou a aceitar esse convite?
O que foi determinante para mim foi a oportunidade de trabalhar com esses dois atores, o Vincent Lindon e o François Damiens. O Lindon, por exemplo, também estava fazendo algo oposto ao que está acostumado. Geralmente o vemos como um proletário, e aqui ele é o patrão. Já o Damiens eu adoro, queria muito dividir o set com ele. A oportunidade de ver os dois juntos me permitiu fazer desse um feel good movie, algo que nunca tinha feito.
Como transformar um filme, cujo roteiro chegou até você já pronto, também em um trabalho com a sua cara?
A partir das diferenças entre esses personagens, os arquétipos sobre os quais a história se debruça, pude descobrir qual seria a minha contribuição. Pois, como disse, tudo veio até mim. Está longe das minhas questões pessoais e o que me move enquanto cineasta. Concordo, geralmente as minhas escolhas são mais radicais. Justamente por isso, foi uma oportunidade de trabalhar com um pouco mais de doçura, e essa ideia me agradou.
Vincent Lindon geralmente aparece em papeis de forte teor dramático. Como foi o trabalho com ele como comediante?
Eu não fiz nada em relação a isso (risos). Desculpa, estou brincando, claro que fiz. Mas, nesse projeto, não tive muitas obrigações deste cunho. Foi o Vincent que teve a ideia para fazer o filme, ele é o produtor. É bem como você falou, ele estava em busca de uma personagem mais leve, exuberante, diferente daqueles personagens interiorizados com os quais estava acostumado. Então, a iniciativa partiu dele. Mas é claro que você, enquanto diretor, tem uma obrigação de orientar. Foi algo que trabalhamos juntos, posso dizer. Mas a minha função era agir como um maestro, dando uma dica aqui, outra ali. O músico, no entanto, era ele, e sabia bem o que fazer. No fundo, a construção da personagem, é toda dele.
Você se considera um diretor de atores? Gosta de trabalhar com o elenco?
Gosto de permitir que os atores ousem na construção dos seus personagens. Pouco a pouco, ao longo do tempo, vou ouvindo as sugestões deles e permitindo que partam em busca do que tem de melhor a oferecer. Isso porque sou ator também, e entendo esse processo. Às vezes, tinha dúvidas que apenas eu poderia responder. Já faz uns três ou quatro filmes que tenho me forçado a ouvir mais o que os atores tem a dizer. Porém, às vezes, podem se enganar sobre a natureza do personagem, a respeito das reações deles em reação à história. Então, é nesse momento que vejo que tenho que intervir.
Você precisou interferir diretamente no trabalho com o Lindon?
Teve um momento, nesse caso com o Vincent Lindon, que cheguei nele e disse: “veja só, acho que o personagem, psicologicamente…”, e nesse momento ele me cortou: “não quero saber de psicologia”! (risos) Ou seja, a construção dele vinha basicamente da intuição, sem pensar muito. Foi uma situação interessante. Nunca mais usei essa expressão com ele, mas acho que, mesmo que sem querer, posso ter inspirado alguns movimentos nele. Isso se tornou mais fácil, também, por se tratar de um ator maravilhoso como o Lindon. Ele me trouxe propostas de mudanças de cenas que funcionaram muito bem. Até mesmo coisas simples, de direção, mesmo.
Tem algum exemplo pontual pra comentar conosco?
Aquela cena do jantar, por exemplo, quando ele corre pelo pátio atrás do primo, no original ele ia até a porta, e voltava para a sala. Foi ele que sugeriu que, pelo desespero do personagem, faria mais sentido ter uma caminhada de volta até a mesa. E se revelou um movimento brilhante, pois se tratava de uma ideia de direção oferecer esse momento de solidão a ele. É uma passagem que ele não está em público, escondendo suas emoções. Pelo contrário, está inteiro, por completo. Assim, é possível perceber o desespero dele. Afinal, o personagem do Lindon é o próprio Lindon.
Ele também colaborou no roteiro, não é mesmo?
Quando o roteiro chegou até mim, o Lindon já havia escrito uma parte, ao lado do roteirista. Fiquei encarregado de uma parte seguinte, de adaptar para o meu modo de dirigir. Acrescentei coisas do meu universo. E nem foi muito no personagem do Lindon, para ser sincero. Pensando a respeito, agora, percebo que me ocupei mais com o Damiens. Os sonhos, aqueles momentos dos dois vagueando pelo interior do país… tudo aquilo foi adicionado por mim. Foram coisas que sugeri num segundo momento, e eles curtiram a ideia. Não foram elementos que modificaram a estrutura da história, nem as personagens, mas ajudaram a formatar o que queríamos contar.
Houve alguma diferença mais drástica entre o antes e depois?
Originalmente, o personagem do Damiens era mais desajeitado. Nós, juntos, criamos um universo para ele, oferecemos uma densidade que não tinha até então. No começo, ficamos com pena do Lindon, achando que o primo só vai lhe trazer problemas. Mas, aos poucos, percebemos que ambos precisam um do outro.
E como que François Damiens entrou no filme?
É interessante, pois era fascinado por ele há muito tempo. Mas queria vê-lo em um filme diferente, num tipo com o qual não estava acostumado. Os atores belgas, em geral, são muito específicos, e possuem uma capacidade de improvisação e de acrescentar no meio de um fluxo em andamento que é incrível. Os dois atores entraram no projeto antes de mim, achava incrível o potencial desse duo. Apenas confirmei essa impressão durante o nosso trabalho em conjunto. François tem uma capacidade de dar um colorido único às cenas. Se o personagem fosse feito por outro ator, talvez fosse alguém até melhor, dramaticamente falando, mas não teria a mesma energia. Ele é aquele próprio sonhador, que nunca deixa as coisas fechadas. Tem uma maneira muito particular de atuar.
Como foi o trabalho com ele?
Nem precisei fazer muitas improvisações. Mas o que era interessante era poder manter esse lado poético, essa doçura. É um artista com uma enorme sensibilidade. Mas também é possível perceber um cinismo, até mesmo um potencial de violência, que o torna um intérprete ainda mais rico. Tem esses contrastes que são bem-vindos. Tem uma maneira de interpretar muito intuitiva. Sem tanta conversa, foi só uma questão de entrar na dança. Adorei trabalhar com ele.
Uma cena em particular deve ter representado um grande desafio: a do avião. Como foi o preparo para a realização dessa sequência?
Essa foi uma cena complicada. É uma sequência longa, e justamente por isso, começamos as filmagens por ela. O início geralmente é um período de stress para os atores, estão se conhecendo, muitas vezes sem terem trabalhado uns com os outros, e essa é uma cena estressante, afinal. Então, era importante acabar logo com ela. Ela foi complicada por ter sido muito técnica. Fabricamos o interior de um avião, e também uma máquina para mexer nessa estrutura. Depois, houve a inserção de efeitos visuais, muito 3D. Foi dessa forma que foi realizada. Ficamos trancados dentro desse avião falso por quatro dias, gritando e pulando de um lado para outro. Uma experiência muito física, bastante intensa.
Pelas suas experiências anteriores, atingir esse resultado foi mais fácil?
Exatamente, pois como já tinha feito outros filmes de ação e com efeitos especiais, era um ambiente já conhecido para mim. Mas devo confessar que, de certa maneira, era mais para mostrar para os atores que estávamos diante de uma comédia, algo que estavam acostumados a fazer, mas não era só isso. Havia esse desafio técnico, e foi interessante vê-los passar por isso. Isso me permitiu manter meu ponto de vista sobre a história, sem deixar de lado minhas obrigações de direção. Numa comédia, o que geralmente acontece é que você precisa dar espaço aos atores – ou seja, é você que precisa se adaptar a essa condição. Mas, nessa cena, foi o contrário. Então, começando já com um golpe desses, tudo que veio depois foi mais tranquilo.
Outra ideia interessante é a tal Síndrome da Pipoca. Como surgiu esse conceito? Existe algum fundamento nele?
Esse foi um achado do roteirista. Estava no texto quando o recebi. Nessa cena, apenas acrescentei alguma coisa ali, outra acolá. Foi uma brincadeira com Candy Crush, sabe? A ideia da pipoca estava no roteiro, e achei engraçada. Isso lembra comédias de outras épocas, algo alegre, meio doido, mas, ao mesmo tempo, tem sentido. Quando li, pensei que não era tão absurdo. A pipoca não é minha criação, mas faz parte dos elementos que me impulsionaram a fazer esse filme. Todos nós somos um pouco pipoca, não é mesmo? (risos)
O Brasil, assim como a França e praticamente todo o mundo, parece estar dividido por opiniões contrárias e extremas.
O mais perigoso é acreditar que temos razão. São as certezas que acabam com o aprendizado. Ter esse tipo de postura é perigoso para as relações sociais. Claro que precisamos ter certeza sobre as coisas, afinal, somos construídos dessa forma. Mas também é preciso questioná-las. E, ainda mais importante, é estar aberto a mudar de opinião sobre algumas coisas. É o que penso, de maneira geral – não vou nem falar de política!
Meu Primo fala de uma relação de opostos. O que um filme como esse tem a dizer nesse momento em que estamos vivendo?
O que o filme traz, de alguma forma, é que se você está em uma realidade, e alguém próximo de você se vê em outra, isso significa que vocês podem trazer coisas novas um para o outro, que são complementares. Um sistema que se alia a outro se torna mais forte. É sobre a aceitação das diferenças como uma qualidade. Não devemos rejeitar alguém que não pense como nós. Mas, pelo contrário, devemos olhar as qualidades. Às vezes, a gente julga rapidamente alguém – e é esse o caso do Lindon com o primo. E age dessa maneira porque o outro é um pouco estranho. Só que, nessa estranheza, há também forças que ele irá descobrir. É isso que o filme transmite, pois acontece também em nossas famílias.
Para terminar, como você convenceu Gaspar Noé e Albert Dupontel para, ao seu lado, aparecerem como internos de um hospital psiquiátrico?
(risos) Não precisei fazer chantagem nenhuma. Albert, Gaspar e eu começamos juntos. A gente até não se vê muito hoje em dia, mas temos uma amizade verdadeira. Começamos juntos, participamos dos mesmos festivais, e depois veio uma época que cada um foi para um lado. Mas a conexão permanece. Essa história de nós três aparecermos juntos em cena começou com o Albert Dupontel. Foi ele que, no filme Uma Juíza Sem Juízo (2013), pediu a mim e ao Gaspar que aparecêssemos ao lado dele, quando o personagem que interpretava era internado num hospício. Disse que se inspirou em um outro filme que eu havia feito, 99 Francos (2007), que também aparecia usando o mesmo pijama listrado. Quando percebi que teríamos uma cena num hospital psiquiátrico, e poderia aproveitar essa mesma ideia com pano de fundo, fui até eles e os convoquei. “Albert, como você deu início a esse ritual, agora venham os dois para o meu filme”. Já acertamos que o próximo encontro será em um filme do Gaspar Noé. Então, preparem-se: esses três loucos podem voltar a aparecer a qualquer momento!
(Entrevista feita via zoom em novembro de 2020)