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Apresentado na Mostra Forum do Festival de Berlim, o documentário canadense Mis Dos Voces (2022) acompanha a jornada de três mulheres latinas: Claudia, Ana e Marinela. Marcadas pelo histórico de pobreza e violências domésticas, elas deixaram seus países de origem para imigrar ao Canadá. Hoje, possuem uma vida estável, porém comentam as dificuldades de se sentir em casa num país estrangeiro. A experiência deste filme poderia ser convencional, exceto por uma escolha fundamental da diretora Lina Rodriguez: o rosto das mulheres é ocultado do público. Somos guiados por suas vozes, em off, acompanhadas pelas imagens de objetos e cenários capazes de representá-las.
Conversamos com a cineasta a respeito deste projeto tão especial. Ela justifica suas escolhas estéticas, e o desafio de descolar por completo a imagem do som:

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A cineasta Lina Rodriguez

Por que decidiu mostrar o rosto dessas mulheres apenas na cena final?
Primeiro conheci Claudia, que é uma das mulheres imigrantes do filme. Descobri o papel dela na comunidade: ela funciona como uma espécie de ligação entre os moradores. Pensei em fazer o retrato dela, talvez acompanhando algumas das pessoas que ela ajuda. Conheci então Marinela Piedrahita e Ana Kostic, e percebi que seria um ótimo tríptico, com três retratos femininos de imigração. O mais importante seria a fluidez: como também sou imigrante, sei que a partir do momento que você deixa seu país natal, você nunca chega de fato, e nunca volta por completo. Como transmitir isso através de sons e imagens? Mesmo sendo um documentário, tinha um conceito visual claro. Decidi que através de gestos, conversas e pequenos elementos, eu poderia captar a presença e o ambiente onde elas transitam, sem mostrá-las necessariamente.
É impossível representar alguém por completo. Estamos muito acostumados a rostos, e eu mesma os adoro. Mas o fato de vermos um rosto não significa que conseguimos acessá-lo: os objetos e cenários também permitem este acesso. Assim, temos a cadência de suas vozes, a história que contam e as texturas de suas vidas. Isso nem sempre é fácil de mostrar. Sabia desde o começo que queria ter imagens de mãos, espaços vazios, movimentos panorâmicos para criar um sentimento dessas mulheres. Quando fizemos o retrato delas com as famílias, não sabia se usaria na montagem final, mas poderia dar para elas como presente. Na fase de montagem, com meu parceiro, percebemos que conhecíamos as mulheres, mas queria ter os rostos no final. Não sabia se funcionaria, porque quis evitar o fator surpresa. Rostos nos dão a impressão de conhecer a pessoa, mas existem muitas camadas do que somos de fato. Quem somos, de onde viemos, pelo que passamos e para onde vamos são coisas fluidas, que não se resumem aos rostos.

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Estas mulheres falam livremente, sem objetivos precisos, num espaço protegido. Parece uma escuta terapêutica.
Fico feliz que tenha percebido isso. Era parte dos meus objetivos criar um espaço com elas, mas também com o público, se possível, para pensarmos quem somos e para o que estamos olhando. O filme decorre da experiência de conhecê-las; é um processo humano. Eu tinha uma lista de coisas sobre as quais queria conversar. Falamos com ela apenas gravando os sons, sem a câmera, e depois filmamos as imagens separadamente. Discutimos o que gostariam de vestir para os encontros, e em qual parte da casa nós conversaríamos. Fui à casa delas antes, sem câmera, apenas para visitar, e depois voltamos para filmar várias vezes. Por isso, tivemos uma preparação para conversar sobre a intimidade delas.
Perguntei a Claudia sobre a rotina de limpeza dela, talvez porque eu seja obcecada por limpeza, a exemplo da minha própria mãe. Sempre quero pensar quem cuida da limpeza na casa, ou seja, esses pequenos detalhes cotidianos. Ela me disse que às vezes passa a vassoura, e propusemos que ela fizesse isso para as câmeras. Ela achou engraçado, porque as pessoas pensariam que ela limpa sempre. Bom, dissemos que isso é algo que ela faz, mas não quem ela é. Ela usa muito esmalte, e tem vários elementos particulares delas. No final, não queria encontrar uma maneira de defini-las ao espectador, apenas desenhar um traço mais flexível, onde várias coisas podem participar. Existe uma lacuna entre som e imagem, sobre a qual o espectador pode pensar, e projetar suas próprias experiências. O fato de ter gravado o som separadamente cria um espaço de enunciação diferente do som sincrônico. Filmamos em momentos diferentes, porque já sabíamos desde o princípio que som e imagem não correspondessem. Por que filmar ambos juntos então, certo? As imagens fluíam porque as pessoas podiam falar ao mesmo tempo, sem se preocuparem. 

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Por que escolheu estas três mulheres em particular? Acredita que elas sejam representativas da experiência de imigração latina no Canadá?
Não sei. Não poderia dizer isso: a minha própria história de imigração é muito diferente, por exemplo, mesmo que ecoe nas experiências delas. Como você certamente sabe, a América Latina é um território vasto, com diversidade impressionante de raça, cultura e história. Eu percebi que era colombiana quando deixei a Colômbia. No Canadá, você é visto por outros. A identidade está ligada a isso: como nós nos vemos, em relação à maneira como nos veem; e se cumprimos com as expectativas criadas para nós. Como resistimos ou aceitamos isso? O fato de me tornar imigrante reforçou minha percepção da identidade colombiana. Neste caso, eu tenho uma mulher mexicana e duas colombianas, de regiões diferentes. Não sei se elas são representativas, mas sei que nossas experiências ecoam umas nas outras. Certamente há experiências muito distintas em outros processos latino-americanos de imigração. Apesar de estarmos falando de padrões de comportamento, penso em termos de fluidez: a beleza está na capacidade de olhar para o outro, para a história diferente da nossa. O filme me lembra do fato que não somos uma pessoa só: cada um de nós é várias pessoas, e isso pode mudar ao longo do tempo. Este foi um dos grandes presentes de fazer este filme: ser lembrada deste fato fundamental.

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Você delimitou algum tema que não abordaria, talvez por ferir a intimidade delas? Ou elas mesmas impuseram restrições?
Isso veio durante o processo, com cada uma delas. Filmar é um processo humano que me permite encontrar outras pessoas. Estamos fora de um modelo industrial onde existe o diretor que sabe de tudo, e chega ao set para produzir o que ele deseja. Tento não abordar nenhum dos meus filmes dessa maneira impositiva. Tenho desejos e opiniões muito fortes a respeito das coisas que me interessam. Nos filmes de ficção, tento encontrar outras pessoas para podermos ficar juntos. O cinema existe para conhecermos outras pessoas, ficarmos juntos, trocar ideias. Um traço daquilo ficará no filme, mas a experiência humana de fazer um filme me interessa bastante. Queria conversar com elas, conhecer suas vidas, visitar suas casas. Durante as conversas, eu sugeria muitas coisas, mas dava a liberdade de me dizerem que não, ou de expressarem que não tinham vontade de abordar algo. Eu não sabia ao certo tudo o que acabaria incluindo no resultado final: foi uma conversa, um processo estabelecido em conjunto com elas. Mas se no dia seguinte elas não se sentissem confortáveis sobre o que tinham dito na véspera, podiam me avisar e tiraríamos o trecho.
Nenhuma delas assistiu à versão final até agora, apenas um primeiro corte. Elas vão descobrir o filme finalizado em Berlim. Infelizmente, uma delas não poderá vir ao festival, mas quero que elas tenham essa experiência de frequentar um festival. Este não é um filme “normal”, é um documentário específico. Eu dizia para elas tudo o que iria fazer: “Quero filmar suas mãos”, por exemplo. Então não havia segredo. Não era uma abordagem tradicional. Mas sei que essa exibição será a hora de compartilhar essas vidas e a experiência coletiva. Eu mudei, e sei que elas mudaram desde o momento em que filmamos. Se tivesse qualquer coisa que as incomodasse, elas certamente poderiam me falar. É como na terapia: se vou criar um espaço onde possam falar abertamente, também preciso estar disposta a escutar qualquer coisa que tiverem a me dizer. É terapêutico para todo mundo, no final. Ao escutar as conversas delas, às vezes ficava implícito que alguns temas eram sensíveis, e eu não queria perguntar nada sobre isso. Tenho muito respeito pelo relacionamento que criamos juntas.

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Você cria imagens dissociadas dos sons, e um tanto neutras: o céu, um gramado, uma toalha de mesa. Como determinou na montagem quais imagens deveriam se associar com quais sons?
É um tríptico por causa das três mulheres, mas também por existirem três espaços: o som, a voz over e a imagem. Na verdade, neste filme eu nem falo em voz over, e sim em voz around (ao redor), porque ao contrário da voz over tradicional, ela não está presente para comentar a imagem, completá-la nem repeti-la. Cada camada é um retrato em si, e juntas, transformam-se em algo novo. É possível observar a jornada do filme em si, na maneira como representa cada uma delas. Claudia se veste de maneira muito específica, por exemplo. Quando eu a filmei, tentamos encontrar maneiras de capturar isso. Que cores ela usa? Que objetos fazem parte dela, e de sua imagem? Às vezes era ideia minha, e às vezes delas, incorporar objetos como uma caixa de elásticos coloridos. Em outros momentos, chegávamos ao set e descobríamos elementos interessantes de filmar.
Eu sempre me perguntava: que pedaços são capazes de evocar as imagens destas mulheres? Não vou dizer “quem elas são”, mas suas personas. É um retrato sobre como se portam, o local onde vivem, como se organizam, do que se cercam. Os pequenos elementos que temos em nossas mesas são traços de quem somos, e se acumulam. Se eu chegar na sua casa, olhar sua cozinha, seu quarto e seu banheiro, terei uma boa ideia de como você vive. Essa foi a força motora para as imagens. Sempre procuro captar as coisas que parecem pouco importantes, e isso quase sempre me leva aos espaços domésticos. Durante a edição, tínhamos sons e imagens separados desde o princípio. As imagens foram captadas em Super 16, o que me dava uma textura particular.
Sofia capturou muitos sons para cada espaço, e depois captamos a voz around. Eu estava presente, e Sofia também, mas ela não fala espanhol. As mulheres ficaram confortáveis com ela, porque não entendia o que estavam dizendo. Muitas conversas nos quartos ocorreram com elas deitadas na cama, ou seja, em espaços íntimos. Na edição, apenas precisava pautar quais aspectos da conversa eu fazia questão de manter. Sabia que queria falar sobre experiências de violência, dificuldades com a língua, as maneiras de criar os filhos. Cada uma compreende a experiência de ser mulher de maneira diferente. Precisei catalogar cada conversa e encontrar jornadas com temas em comum. Assim, criamos capítulos, e começamos a testar algumas sequências de imagens em conjunto com os sons. Quando se fala em vidro quebrado, achei que seria interessante mostrar os objetos ordenados de Claudia. O fato de vermos as coisas arrumadas agora nos mostra que antes houve uma violência, e agora, ela foi reparada. É uma maneira de dizer, sem dizer. A edição precisava pensar o que aconteceria quando colocássemos certo som com certa imagem, juntos. Criamos uma nova dinâmica.

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Este filme íntimo chega ao Festival de Berlim, que organiza uma edição em formato presencial novamente. Qual é a importância de exibir o longa no evento?
A tela do cinema é o melhor formato para se experimentar a relação entre som e imagem. Assistimos a filmes em outros formatos também, mas a experiência é diferente. Por causa da natureza íntima e carinhosa, e pelo tom de confessionário, a obra parece grande e pequena ao mesmo tempo. O intimismo vai soar ainda mais poderoso na tela grande, sendo compartilhado com várias pessoas ao mesmo tempo, coletivamente. Assim como o ato de filmar, para mim, corresponde a uma interação humana, compartilhá-lo com o público também corresponde ao desejo de encontro humano. Sempre podemos exibir uma obra online, e já escutamos muitas opiniões a respeito nestes últimos anos. Mas assistir a um filme juntos, e encontrar outras pessoas, constitui um gesto lindo. Queria muito que o resultado estreasse numa sessão presencial. Tem o fato de que duas das três mulheres estarão presentes nesta primeira sessão da Berlinale. Além disso, existe certo risco quando você exibe sua obra ao vivo – sem trocadilhos com a Covid! Falo de um bom risco. Ver pessoas na sua frente, assistindo ao seu trabalho e reagindo ao vivo, implica num risco inerente à experiência humana. O cinema é outra maneira de encontrar pessoas. O público vai poder descobrir essas três mulheres, e ver como o tema da imigração ecoa neles, ou então o tema de buscar um lugar de pertencimento. Qualquer pessoa buscando um lugar onde se sinta bem, onde se integre, pode se identificar com estas histórias – seja ela imigrante ou não. É uma abertura à mudança.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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