Silvio Da-Rin é profundamente ligado ao cinema. Iniciou sua carreira como técnico de som direto, trabalhando em inúmeros longas-metragens de destaque. Sua inclinação ao documentário demonstrou, também, o apreço por temas aparentemente pouco debatidos na sociedade brasileira, mas que fazem parte do nosso tecido histórico. É dele o curta-metragem Príncipe de Fogo (1985), sobre o criminoso Febrônio Índio do Brasil. Antes dele, já havia tocado nas feridas da ditadura civil-militar – com ela em vigência, diga-se de passagem – em Fênix (1980), filme sobre militantes que atuaram entre o Golpe de 64 e a publicação do Ato Institucional Nº 5. Em plenos anos de chumbo, presidiu a Associação Brasileira de Documentaristas, fazendo valer sua vocação de articulador, a mesma que lhe levou a ocupar, entre 2007 e 2010, a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. Agora, Da-Rin chega ao circuito comercial com Missão 115 (2018), que parte do famigerado atentado ao Riocentro para investigar a política terrorista de grupos ligados ao Estado que tentavam se perpetuar no poder. Conversamos com Silvio Da-Rin por telefone, abordando o filme e as circunstâncias que o fazem absolutamente atual. Confira mais este Papo de Cinema.
O que te levou a fazer um documentário sobre esse período específico, em que certos militares tentavam se perpetuar no poder?
Esse projeto é bem antigo. Eu não estava no Rio de Janeiro na noite do atentado ao Riocentro, mas no interior do Paraná. Vi tudo pela televisão. Então, começava a minha carreira no cinema. Tinha dirigido o curta-metragem Fênix, inicialmente pensado como longa. Não foi, pois havia pressa para lançar meu primeiro filme. Imediatamente me dei conta de que aquilo do Riocentro valia um documentário maior, não apenas pela audácia, mas pela dimensão do fato. Em virtude da gravidade do episódio, era um prato cheio para um documentário. Havia ali um paradoxo, pois as conspirações estatais visavam brecar a abertura democrática, exatamente um dos principais pontos do governo Figueiredo. O contexto era realmente explosivo.
E por que demorou tanto para que você pudesse realizar o filme?
Não tinha condições de fazer algo naquele período da ditadura. Havia muitas incertezas sobre o que aconteceria, a campanha Diretas Já sequer existia. O contexto era de indefinição, como é o de hoje, guardadas as devidas proporções. Esperei o momento certo. Enquanto isso, fui juntando recortes de jornais e revistas. Isso até que foi publicada a entrevista de dois jornalistas com o ex-policial civil Claudio Guerra, em que ele contava barbaridades, atos vis dos quais participou. Ele foi um dos membros do atentado ao Riocentro. E se ele se dispunha a revelar os bastidores daquele episódio orquestrado, achei que estava na hora de finalmente realizar o filme. Felizmente fomos selecionados num edital de fomento para documentário de longa-metragem do BNDES e isso nos permitiu filmar.
Como foi entrevistar o Cláudio Guerra, vide que ele fez barbaridades em nome da ditadura e hoje, convertido, fala abertamente sobre as atrocidades que muitos tentam desmentir?
O Claudio entendia que aqueles que o chefiavam davam as ordens certas, definindo os alvos que deveriam ser exterminados. Ele se sentia plenamente no cumprimento das obrigações. Foi impressionante o contato com ele. Fui ao Espírito Santo para uma primeira conversa e passei a confiar em seus propósitos atuais, como homem ligado à Assembleia de Deus. Entendi ele como um testemunho efetivo, pois membro da equipe a serviço do Estado. Na entrevista, me concentrei nisso. Meu foco era o atentado do Riocentro e acho que ele correspondeu às minhas expectativas. O Cláudio foi realmente fundamental para o Missão 115.
Fala-se muito que o Brasil é um país sem memória. Você teve dificuldade para encontrar documentos e pessoas a fim de construir o filme?
Foi uma garimpagem, realmente. Com o Fênix, comecei a juntar material sobre os anos 60. Fui conservando-o. E fiquei atento aos arquivos oficiais, às coleções privadas e também às públicas, como a da Cinemateca do MAM. Fui reunindo e buscando. Tive mais de um pesquisador contratado para o filme. Fotos, imagens em movimento e arquivos sonoros, como a fala do Gonzaguinha anunciando a bomba lá fora, vieram desse processo de rastreio.
Em dado momento, você aparece em frente à televisão, vendo a ex-presidenta Dilma. A mensagem ali era “os poderosos ainda fazem de tudo para permanecer no poder”?
Olha, apareço no filme em dois momentos. Na abertura, na diligência convocada pela Comissão Nacional da Verdade, para a denúncia de torturas, onde foram deflagrados diversos atentados contra os direitos humanos. Eu queria “levar” o espectador ao Riocentro. Me entendi como um personagem qualificado para conduzir. O objetivo da imagem em frente à televisão é mostrar uma pessoa que vai introduzir a sequência final, com o Gonzaguinha. Mas não tenha dúvida de que a solenidade de entrega do relatório final é emblemática àquele período que vivemos há pouco. O sentido daquela imagem é esta: eu abro e fecho o filme.
O que acha daqueles que pedem a volta da ditadura, que celebram os anos de chumbo?
São pessoas que provavelmente não viveram o contexto de uma ditadura. Não foram, como eu, presas duas vezes, perdendo nove meses da juventude. Fui absolvido, mas nunca indenizado, é bom dizer. Quem conheceu a ditadura, aquele mar de lama, as denúncias contra autoridades, sabe perfeitamente que o poder corrompe, ele leva a excessos a abusos. Os que ali chegam não querem largar o osso. Essas pessoas que pedem a volta dos militares ao poder estão enganadas e iludidas. Pedem para os milicos regressarem, sem que haja alguns dispostos a assumir, fora o Jair Bolsonaro o o tal do Cabo Daciolo que se candidataram à presidência. A atividade politica é para ser exercida por civis, a meu ver, a despeito de todas as crises e contradições. Acho perigoso desmerecer a atividade política, como se todos seus agentes fossem ruins e farinhas do mesmo saco.
(Entrevista concedida por telefone, no Rio de Janeiro, em agosto de 2018)
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