Marina Meliande nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1980. Com graduação pela Universidade Federal Fluminense, hoje atua como cineasta, produtora e montadora. Começou sua carreira em parcerias com Felipe Bragança (A Fuga da Mulher Gorila, 2009, A Alegria, 2010), e agora chega aos cinemas como realizadora-solo de Mormaço, drama ambientado no Rio de Janeiro sobre as transformações sociais que a cidade enfrentou às vésperas das Olimpíadas de 2016. Após ter estreado na mostra competitiva do Festival Internacional de Cinema de Roterdã, na Holanda, há mais de um ano, o título tem circulado por diversos eventos similares, tanto no Brasil, quanto no exterior. E foi em sua passagem pelo Festival de Gramado, na Serra Gaúcha – onde participou da seleção principal – que a diretora conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, em um bate-papo inédito e exclusivo que publicamos agora. Confira!
Olá, Marina. De onde veio a inspiração para Mormaço?
Veio principalmente desse momento que se iniciou há alguns anos, quando o Rio de Janeiro foi anunciado como a cidade que iria sediar dois grandes eventos, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Com isso, a cidade entrou num misto de euforia e medo, preocupação com o que isso iria representar para o cotidiano de quem mora lá. Qual seria o impacto disso? Acho que as pessoas que se preocupam com o Rio, que estão atentas às políticas públicas, foram vendo que ela estava se transformando de uma maneira muito estranha e de forma pouco democrática, sem conversar com as pessoas que habitam aquele espaço. De uma forma arbitrária, na verdade. Tudo acontecendo rapidamente, de uma hora para outra tinha rua que virava canteiro de obras, prédios subindo em todos os cantos, prédios de classe média sendo esvaziados para virarem grandes empreendimentos, comunidades sendo ameaçadas de remoção. Acho que muitas pessoas que moravam no Rio de Janeiro começaram a se sentir um pouco expulsas da cidade, não pertencendo mais àquele lugar.
Uma realidade contraditória, pois o que deveria ser um momento de acolhimento, se tornou de expulsa.
Exatamente. Mas era um grande projeto de marca de cidade que estava sendo construído. Todo mundo, ao mesmo tempo, queria acreditar que seria possível. Essa mistura de orgulho, de acreditar que a cidade seria capaz de sediar algo tão importante, mas, ao mesmo tempo, um questionamento sobre quais seriam os benefícios e vantagens de tudo aquilo, o que sobraria para a cidade, em termos de infraestrutura, depois que esse turbilhão passasse.
Por quê partir para o cinema de gênero, com elementos do realismo fantástico, para falar de assuntos tão urgentes e pontuais?
Gosto de lidar com essa poesia. Gosto da fábula, de fazer uma metáfora pra falar de algo político, que obviamente vai te levar para um outro lugar, que é o espaço do sonho, da utopia. Então, acho que o cinema de gênero me ajuda a sair da pura denúncia, que não era o que queria fazer em termos de estilo, mas manter como pano de fundo o que estava acontecendo, esse reflexo do momento que estávamos vivendo. E também levar para um outro tipo de reflexão, de como isso pode impactar no corpo, a ideia da transformação, da doença, da pele que acumula esse tipo de sensação e de incômodo, que resiste e aparece no corpo antes mesmo da protagonista se dar conta. Ela está tão incomodada que é através da pele que isso se demonstra. Não sei se estou dando muitos spoilers (risos), mas essa espécie de casca que vai construindo é quase uma armadura. De alguma forma, é uma metáfora para a resistência. Foi uma forma de pensar, poeticamente, como um corpo poderia resistir a esses tipos de estímulos.
Mormaço não é um filme que entrega respostas fáceis. O final em aberto seria um reflexo disso?
Gosto de deixar um pouco em aberto porque cada um tem um tipo de percepção. Não é todo mundo que tem ligação com o cinema de gênero. O filme trabalha com essa progressão, de começar mais naturalista e indo aos poucos para o fantástico até, de fato, o final ser completamente desligado da realidade. Mas queria que tivesse esse mergulho, esse convite ao terror, porque nem todo mundo embarca nessa proposta de primeira. Eu gosto do estilo. É uma forma de falarmos sobre o que estamos vivendo de forma menos direta, sem ser tão panfletária, tentando achar algum tipo de poesia.
Ao assistir Mormaço, é possível perceber que o filme dialoga com títulos como Aquarius (2016) e Trabalhar Cansa (2011), entre outros.
Quando filmei Mormaço, o Aquarius ainda não havia estreado. Ou seja, não era um filme que eu tinha assistido. Foram feitos mais ou menos ao mesmo tempo. Escrevi o roteiro em 2012, venho desenvolvendo há alguns anos. No entanto, são filmes que falam de uma situação que é comum a várias cidades brasileiras, que viveram esse processo de especulação intensamente. Várias capitais no Brasil foram afetadas pela Copa do Mundo, pelo momento econômico que estávamos vivendo. É uma realidade, e no Rio, especificamente, foi intensificada pelas Olimpíadas. Apesar de ter sido um evento efêmero, mobilizou muita gente, a cidade ficou em obras por, pelo menos, quatro anos seguidos. Do Trabalhar Cansa gosto, mas não foi, exatamente, uma referência.
Quais foram as suas principais referências?
Um filme que admiro e que pode ter me influenciado em certo grau, ainda que de outro jeito, é o Em Busca da Vida (2006), do Jia Zhangke. Isso porque fala de um personagem que anda por esse lugar, que é uma cidade em destruição, porque vai ser alagada por uma represa. Tem a coisa dos escombros e das ruínas, e a relação com esse cara. Tem também um ou outro elemento de gênero fantástico, mas com muita sutileza. Estudei filmes de gênero como A Mosca (1986), até me dar conta que não era exatamente aquilo que queria fazer (risos). É um pouco grotesco, né? Mas me interessava ver como fazia essa transformação do corpo e como os elementos iam sendo plantados. E como vai dando as dicas de como a sensibilidade dessa personagem vai mudando. Enfim, foram filmes que observei com atenção. Mas, de todos, o Jia Zhangke foi a referência mais forte, principalmente por causa da relação com o espaço.
Como foi a seleção do elenco? Não foram escolhas óbvias, muitos dos atores estão em seus primeiros trabalhos no cinema.
Pra mim, eram importantes que fossem bons atores. Mas não, necessariamente, de longa vivência no cinema. O Pedro Gracindo, por exemplo, é estreante na tela grande, mas já fez muito teatro, e vem de uma família histórica (N.E.: é filho do Gracindo Júnior e neto do Paulo Gracindo). Sem falar que fez também televisão, é músico, compositor. Para a protagonista, queria uma atriz que fosse experiente, e a Marina Provenzzano é maravilhosa. Mas também não queria um rosto super conhecido. Queria que as pessoas, de alguma forma, se identificassem com o que ela está passando. O engraçado foi que várias pessoas vieram perguntar pra ela se estava bem, como se recuperou de todas aquelas escaras (risos). Acham que foi real tudo aquilo. Realmente existe uma empatia com a atriz que está naquele lugar, naquele personagem.
O trabalho de maquiagem é impressionante.
Ele foi feito todo fisicamente. Por isso mesmo, era importante que fosse um rosto um pouco novo no cinema, para que a gente entrasse e acreditasse na história. E ela encarnou isso muito bem, mergulhou junto e foi fundo. Fiquei muito impressionada com ela. Foi uma super parceira do filme.
Mormaço circulou por diversos festivais, tanto no Brasil, quanto no exterior. Como o público estrangeiro tem recebido essa história tão carioca?
Estreamos na competição oficial do Festival de Roterdã, e foi muito bem recebido. A impressão que tivemos é que os holandeses amaram o filme, gostaram da forma como lida com política e gênero, e com o material documental que é usado. De fato, cheguei a filmar momentos tensos na Vila Autódromo. Aquelas cenas com tratores e polícia, tudo é real, aconteceu de verdade. Foram atores colocados em situações reais. Aquela menina que fica discursando, é uma das militantes da Vila Autódromo, não é atriz. Era a casa dela que estava sendo destruída.
Em casos assim, como manter o distanciamento e não se envolver demais, preservando a criatividade?
Estava falando sobre um tema que considerava muito importante, ao mesmo tempo em que tinham pessoas que estavam vivendo aquilo todos os dias. Por isso achei que elas precisavam estar ali, na cena, de uma forma ou de outra. A Sandra Maria, que faz a Domingas, é uma pessoa que mora naquela região. É um símbolo de resistência pra eles, uma das lideranças. E, mesmo assim, topou fazer o filme. A descobri conversando com o pessoal de lá, quase por acaso, e me contou que havia feito teatro, que se interessava em atuar. Então foi perfeito. Pude ter uma pessoa dali de dentro, com aquela vivência, e trazê-la para o filme. Contando com essa garra da resistência de verdade. Isso deixou o Mormaço ainda mais forte na explicação do que era essa luta e qual era o contexto.
As barreiras geográficas não existem, portanto? Diria que o espectador de outros países tem entendido bem o que se passa na trama?
Com certeza. Inclusive, o que costuma acontecer é ficarem ainda mais interessados pelo momento que estamos passando no Brasil. Pelo contrário, isso os aproxima. São muito questionadores, querem saber qual é a situação do Rio de Janeiro, o que aconteceu com a Vila Autódromo. Acho que muito da crise que a cidade está enfrentando agora é consequência desse momento, de decisões que foram tomadas naquela época.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2018)
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