Marina Provenzzano não é nenhuma novata, ainda que, muito provavelmente, essa seja a primeira vez que você esteja ouvindo falar dela. Com Mormaço, o principal lançamento nacional dessa semana nos cinemas, ela aparece como Ana, uma defensora pública que se envolve num movimento contra as desocupações de comunidades no Rio de Janeiro antes das Olimpíadas de 2016. Este é o seu primeiro trabalho como protagonista, mas em 2013 já havia chamado a atenção em uma participação especial de três episódios na décima terceira temporada da série A Grande Família, e só no ano passado tenha participado de dois longas bastante comentados: O Grande Circo Místico, cuja estreia foi no Festival de Cannes, e Legalize Já, a cinebiografia do músico Marcelo D2. Mormaço, por sua vez, teve a primeira exibição no Festival de Roterdã, na Holanda, e depois participou da mostra competitiva nacional do Festival de Gramado, onde encontramos a atriz para um bate-papo inédito e exclusivo, que publicamos agora. Confira!
Qual foi a primeira coisa que você pensou ao ler o roteiro de Mormaço?
Amei. A primeira conversa que tive com a Marina Meliande, nossa diretora, foi mais sobre o que eu achava da cidade do que sobre as minhas habilidades como atriz. Depois desse encontro, pensei comigo mesma: “quero muito fazer esse filme”. Estava muito incomodada com o que acontecia no Rio de Janeiro, e em todo o Brasil, e vi retratado nesse roteiro a possibilidade de falar sobre isso. Falar dessa sensação de estar sendo expulsa da própria cidade, da criação de uma cidade pra gringo ver, com uma quantidade louca de dinheiro entrando, e não sendo aplicado em projetos a longo prazo. Além dessa questão atroz das remoções, que era algo que tava acontecendo e a gente não sabia muito bem como se aproximar do problema. Era uma sensação de impotência, de estar vendo as coisas e não saber como agir a respeito. Além disso tudo, havia a característica de não ser um filme puramente naturalista e ter uma camada fantástica, que me atraiu ainda mais.
Você acha que esse escape da realidade torna o discurso mais acessível ao público?
Amo filme fantásticos e de ficção-científica, porque eles fazem um convite ao distanciamento. Através deles, em algum lugar o espectador reflete: “isso não é real”. Ao mesmo tempo em que se está discutindo questões pontuais. A fantasia vem como uma alegoria, que de alguma forma nos pega sem ser tão direto, como acontece num filme puramente realista. Mormaço foi exibido pela primeira vez no Festival de Roterdã, e estávamos lá, junto a uma plateia majoritariamente europeia, um lugar onde não há esse tipo de violência tão descarada por parte da polícia. Quando, no filme, há uma invasão policial em um prédio da zona sul, o que, ao menos em tese, não seria comum – e isso acontecendo em paralelo com o auge da parte fantástica da trama – eu olhava para os lados e ficava pensando: “será que esse pessoal tá achando que tudo isso é fantasia e nada é real?”. Porque é muito chocante o que o filme discute.
Ainda mais com todos aqueles soldados mascarados, sem rosto.
Quase uns robocops, né? Amo o filme como um todo, e acho que um toque todo especial dele é esse lado sobre essa grande metáfora, sobre essa mulher que sofre essa metamorfose.
Tu tá bem agora? Sei que muita gente tem te perguntado isso.
Sim, estou bem (risos). Pois é, muita gente tem vindo até mim curiosa, querendo saber como me recuperei de tudo aquilo! E eu digo: “olha só, passei um creminho…” (risos).
O processo da maquiagem é incrível. Foi feito direto na tua pele?
Pois é, era feito diretamente em mim. A Mari Figueiredo, a artista que fez essa maquiagem, criou uma goma natural, feita de café, sagu e outros elementos muito simples, mas que combinados criavam um efeito incrível. E era assim: “agora ela tem uma manchinha no braço”. Eu ia lá e ficava uma hora e meia na maquiagem. “Agora tem uma um pouco maior no braço”. Mais três horas de maquiagem. Pra cena que estou com o corpo inteiro coberto, foram 12 horas se maquiando! Você começa deitado, depois senta, uma hora numa perna, depois noutra, até que pedem para ficar em pé. Tinha que cobrir tudo! Foram horas de trabalho para uma cena até que curta. E é engraçado, porque teve mais de uma pessoa que chegou depois e disse: “nossa, mas aquele efeito de pós-produção no seu corpo…”, e eu “não é pós-produção, é real”! O resultado é impressionante. E tudo me ajudava na atuação, pois era concreto. Cada vez que a mancha ia aumentando, quando aquilo seca, vinha uma sensação de repuxado na pele. Como atriz, você se relaciona com o que sente, que está acontecendo ao seu redor, ainda mais se é na própria pele.
Era mais um elemento no qual você podia se apoiar, certo?
Com certeza. Afinal, havia feito uma imersão, ido até a Vila Autódromo e presenciado esse dia horrível, que chegamos para filmar, e a casa que estávamos usando de base, a da Penha, que junto com a Sandra era uma das grandes resistências, e ver tudo aquilo sendo posto abaixo, foi muito chocante. Estava tudo muito próximo, foi mesmo visceral.
Mormaço é um filme no qual você está 100% em cena. Como foi a preparação? Vocês chegaram a ensaiar antes das filmagens?
Esse período foi ótimo. Fizemos vários ensaios, que acho fundamental. E a Marina estava sempre presente, junto com a Morena Catani, que é uma atriz e preparadora de elenco. Cheguei a conhecer uma defensora pública que foi nossa maior inspiração para a Ana, a minha personagem, a doutora Maria Lúcia Pontes. Fui conversar com ela e vê-la trabalhar, até para entender como é que funcionava. Tinha essa preocupação se era crível uma defensora tão jovem, como eu. Só que existem juízes com 27 anos por aí! Então, é possível, sim. Além disso, fomos muito à Vila Autódromo. Com isso, a gente ia se aproximando, se tornando íntimo dessas pessoas. Antes, tinha o meu incômodo com o que estava acontecendo na cidade. Então, é muito material a ser trabalhado, pra levar você até aquele momento, sentindo essas coisas. Esse foi também o primeiro protagonismo no cinema, uma experiência incrível. Tava me sentindo preparada, com todos os ensaios, pesquisas e estudos, e uma relação próxima com a equipe. Esse dia da demolição da casa da Penha deu um ‘clique’ em todo mundo que estava no projeto. Nos tornamos uma tribo. Por isso, me senti amparada, apesar da personagem ser muito sofrida e estar enfrentando uma transformação tão radical. Pois o clima de trabalho foi muito amoroso.
Este é teu primeiro filme como protagonista, mas não é tua estreia na tela grande. No ano passado mesmo você esteve em O Grande Circo Místico (2018), do Cacá Diegues. Como foi essa experiência?
Já fiz quatro longas ao total. O meu primeiro foi A Frente Fria que a Chuva Traz (2015), depois o Circo, o Mormaço e por fim o Legalize Já, que acabou estreando antes desses outros. Trabalhar com nomes como Neville d’Almeida e Cacá Diegues, logo no começo da minha carreira, foi maravilhoso. Fiz faculdade de cinema, e faço teatro desde pequena. Os dois sempre foram figuras de referência, amos os filmes deles. Imagina, O Grande Circo Místico foi recém meu segundo longa, e já me colocaram o Vincent Cassel para ser o meu marido! Foi quando pensei: “temos aí uma responsa” (risos). Embora seja um projeto completamente diferente do Mormaço, tem a semelhança de também brincar com o fantástico. Não é realista. É uma tragédia, mas num circo. Há um convite implícito que provoca um ruído em relação ao que o espectador acaba recebendo. O Cacá tem uma delicadeza, uma precisão nas coisas que te pede e como te encaminha por onde acredita ser o melhor. Além de termos filmado em Lisboa, ficamos hospedados no mesmo hotel. Era como uma família. Foi uma grande honra acompanhar a estreia do filme no Festival de Cannes, algo que nunca esquecerei.
Há dois personagens masculinos fortes ao seu redor, o do Jesuíta Barbosa e o do Vincent Cassel. Como foi trabalhar com eles?
Não conhecia o Jesuíta, mas já admirava o trabalho dele. Ficamos, realmente, muito próximos. Às vezes, fazer um filme é isso: em um mês, você ganha uma nova família. Não o vejo há um tempo, mas a troca que tivemos foi bastante intensa. Foi muito fluido. Quando ao Vincent, havia uma certa expectativa para saber como seria atuar com ele, se seria uma estrela ou se iria sentar com a galera pra tomar uma cerveja, e quando chegou se mostrou um querido, junto de todo mundo, disponível, sem nada de estrelismo. Um cara muito acessível. Foi um jogo bom de atuação.
É uma personagem bem sofrida a sua. E no Legalize Já é a mesma coisa. Gostam de te fazer sofrer, pelo jeito.
Pois é, acho que sofro bem. No Legalize Já, faço a Sônia, a esposa do Marcelo D2. Na verdade, ela é uma mistura das três mulheres que ele teve, a Sônia, a Manu e a Camila, que é a atual, com quem está casado há anos. E o início da vida deles foi muito duro. Antes dele virar o artista que é hoje, foi difícil, e isso está no filme. Ela engravida, sofre um aborto, não tinham grana nenhuma… foi barra. Mas o grande encontro amoroso desse filme é a união do Marcelo com o Skank, a aproximação desses dois caras, de um vendo no outro um potencial artístico e terem partido juntos atrás de um sonho. Acho lindo como o filme retrata isso.
Em Mormaço, você foi dirigida por uma mulher, a Marina Meliande. Como foi o trabalho com ela? Você sente uma diferença grande quando há uma presença feminina por trás das câmeras?
Sim, a gente sente. A questão do feminino é muito importante e precisa ser discutido, tanto atrás como também na frente das câmeras. Para uma atriz, você encontrar uma protagonista forte que não seja naquele estilo de comédia romântica – e nada contra, pois adoro um bom romance, mas é bom ter diversidade – mas vivendo outras situações, que não só a amorosa, é um grande encontro. E a Mari é incrível. Ela sabe o que quer, é clara pra te pedir as coisas, o roteiro tinha uma visão muito precisa. Além disso, mesmo sendo ela uma mulher baixinha, magrinha, conseguia manter o set muito calmo, sempre. Na cena da invasão, que envolvia um monte de gente, foi tudo tranquilo. Outra coisa positiva é que ela não era a única, haviam outras mulheres na equipe: a diretora de arte, a assistente de direção, na maquiagem, no figurino. Posso ser suspeita, mas amei fazer parte de uma equipe assim. Há uma sintonia, tudo muito sereno. Admiro o que a Marina conseguiu com esse filme. Foi uma troca rica, de ideias e possibilidades. Espero que a gente faça ainda muitos projetos juntas.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2018)
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