Realizar um festival de cinema é tarefa árdua, especialmente num país como o Brasil, atualmente carente de apoios públicos vitais ao florescimento das atividades artísticas. Mas, desde 2013, numa cidade do interior do Ceará, o cineasta Leo Tabosa vem fazendo um trabalho muito bonito, não apenas de exibição, mas de inclusão. O distrito de Vazantes é uma pequena porção administrativa que, juntamente com outros sete distritos, compõem o município de Aracoiaba, situado na microrregião do maciço de Baturité. A população é de pouco menos de cinco mil habitantes. Ali, anualmente, acontece a Mostra Curta Vazantes, atividade que permite aos moradores um contato privilegiado com os principais curtas-metragens feitos no Brasil (e alguns fora do país), mas também com realizadores e outros membros da cadeia produtiva do cinema. Conversamos com Leo Tabosa para saber como atender aos desafios de transpor a lógica presencial ao online na Mostra Curta Vazantes 2021, a sétima edição do evento, bem como as particularidades da iniciativa que tem a formação como um pilar. De quebra, também batemos um papo breve com o reitor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Pedro Rubens, um dos principais parceiros do evento.
Quais foram os principais desafios para a realização da Mostra Curta Vazantes 2021?
O principal desafio é continuar atingindo o nosso público. Vazantes é uma comunidade que não tem nem cinco mil habitantes e vive de pequenos comércios e da agricultura. Começamos o festival em 2013 e nosso evento acontece ao ar livre, às margens do rio Aracoiaba. Colocamos o telão lá, promovemos várias atividades de formação e a comunidade se envolve de modo efetivo, até mesmo na produção do evento, comparecendo de modo maciço às atividades propostas. Meu receio, desde o ano passado, quando tudo parou por conta da pandemia, era o de perder essa conexão essencial com as pessoas de Vazantes. Aliás, em 2020 não teve evento porque, na nossa inocência, achávamos que no máximo seria preciso adiar a programação para novembro, o que acabou não acontecendo. Então, ficávamos nos perguntando: como atingir esse público, agora assumindo que teríamos de fazer o evento online?
Até porque as estratégias de engajamento são completamente diferentes, não é?
Sim, claro. Além disso, para boa parte de nós é fácil acompanhar eventos online, por conta da internet boa, de um computador legal. A comunidade de Vazantes é formada em sua maioria por crianças e jovens. Se eles começarem a assistir a um filme numa plataforma que trava, por exemplo, perdem o interesse. É muito diferente do rito de sair de casa para conferir algo presencial. Então, nossa grande preocupação era o acesso dessas crianças e jovens. Conversei bastante com os gestores escolares de Vazantes, no sentido de tentar alinhar o conteúdo das mostras com a proposta pedagógica das aulas, para o cinema ser utilizado em sala de aula. Começamos a fazer uma divulgação nos grupos de whatsapp que esses gestores administram. Vamos dar uma palestra de formação aos professores da cidade, outra forma de incentiva-los a trabalhar o conteúdo dos filmes, não apenas os da mostra, mas o audiovisual como um todo. O online pode atingir o mundo, mas como contemplar nosso público? Repito: essa era a minha preocupação maior.
E as próprias atividades formativas, como as oficinas de crítica e roteiro, têm prioridade de inscrição para moradores de Vazantes e das cidades vizinhas, correto?
Sim, e grande parte dos inscritos foi realmente de Vazantes ou daquela região de Aracoiaba. O propósito é esse. Poderíamos fazer algo que contemplasse o Brasil inteiro, como de fato acabamos fazendo, mas a prioridade sempre foi a comunidade de Vazantes. Temos, por exemplo, o João Marcos, jovem que começou conosco em 2013, na primeira edição da Mostra Curta Vazantes e que atualmente produz. Em 2018 ele estreou no Cine Ceará e na edição 2021 do nosso evento ele está com um documentário. O trabalho está rendendo frutos. E isso é muito importante.
E quando a gente fala dos eventos online, geralmente, há a perda dessa identidade imediata, algo que vocês estão brigando para que não aconteça…
Até porque, a experiência da Mostra Curta Vazantes é comunitária. Ela é feita sem editais, na base dos apoios e das parcerias. Então, você bem sabe que isso não significa dinheiro. Fazemos dessa forma, com a ajuda de colaboradores da Universidade Católica de Pernambuco, egressos, alunos matriculados, professores, funcionários, etc. Tentamos fazer da melhor forma possível, até porque o evento é parte do programa de extensão da universidade. Para você ter uma ideia, as pessoas que vão para o evento ficam hospedadas nas residências dos moradores, na casa paroquial, ou seja, é profundo esse envolvimento com a comunidade. Então, é imprescindível que a gente não perca a identidade. Estão acontecendo dezenas de festivais online simultâneos. E nós não podemos deixar de lado a nossa comunidade. Sempre lutei pela ideia de levar o cinema aonde ele não existe, de interiorizá-lo, bem longe dos grandes centros.
Por outro lado, o online confere uma visibilidade muito grande ao evento. Mas, em meio a tantas programações acontecendo simultaneamente, como se diferenciar?
Acredito que a partir de agora boa parte dos festivais e mostras tenderão a optar por um formato híbrido. Me parece importante, até mesmo porque quando um realizador está impossibilitado de participar presencialmente ou quando o evento tem problemas orçamentários, pode haver debates e encontros online. É difícil saber como nos diferenciar. Quando abrimos o Instagram, vemos muitas programações acontecendo ao mesmo tempo. O que estamos tentando é dar uma atenção maior aos realizadores. Uma coisa que sempre falo é que os críticos não gostam tanto de escrever sobre curtas (risos). E, claro, a obrigação de vocês é geralmente privilegiar os longas. Nesse panorama, os curtas ganham textos enxutos. Então, estamos estimulando a produção de críticas sobre os filmes e promovendo debates.
Imagino que sua vivência como realizador ajude a pensar nesse evento privilegiando a experiência de quem está ali exibindo um filme. É mais ou menos por aí?
O que facilita, para mim, é que além de realizador eu circulo pelos festivais, então sei como funciona e o que me agrada. Não é porque o evento é online que farei uma curadoria com 50 filmes. Tampouco vou inflar a programação. A curadoria tem de ser igual, como se tudo fosse presencial. Gosto de montar programações com os filmes se comunicando, até para que se tenha bons debates. Para mim é imprescindível gerar uma discussão sobre os aspectos artísticos dos filmes selecionados. Esse meu olhar de realizador ajuda muito na curadoria, sem sombra de dúvidas.
Somada às atividades de formação, dá para dizer que essa curadoria também é pensada do ponto de vista pedagógico, como um potencial agente de inclusão e formação?
Com certeza, a ideia é permitir que os espectadores façam os links a partir dessa comunicação possível entre os filmes. E as pessoas percebem que as produções falam de coisas em comum. Algo que sempre me chateou, até mesmo em alguns festivais grandes, é a falta desse diálogo entre os filmes de um programa. Parece que os curadores simplesmente jogam os curtas-metragens. Mas, claro, é um trabalho árduo esse de estabelecer as linhas lógicas.
E como você situa a importância dos parceiros institucionais para a realização do evento?
Sozinho não se consegue realizar uma mostra de cinema no interior do Ceará, numa comunidade com cinco mil habitantes, morando no Pernambuco, na cidade de Recife. Não conseguiríamos ter um envolvimento grande da comunidade sem uma interlocução com as lideranças. Fui para Vazantes em 2012 conhecer um projeto social chamado Fé e Alegria, nascido nos anos 1950 na Venezuela e que trabalha educação popular e promoção social no Brasil desde 1981, quando acolhido pela Companhia de Jesus. Aliás, atualmente ele atende mais de 13 mil pessoas, entre crianças, jovens e adultos, em 20 cidades de 14 estados. Engraçado que fui a Vazantes no dia do meu aniversário. Quando cheguei começou um estouro de fogos de artifício. Era a comunidade celebrando, nos brindando com maracatu. Conhecemos o projeto e vários grupos culturais. Aquilo me encantou, inclusive porque alguns jovens me apresentaram filmes que eles vinham realizando. Aí surgiu a ideia de fazer algo ali. O primeiro, em 2013, foi feito como um edital do Banco do Nordeste. Em 2014 não houve evento, pois não tivemos apoio. A partir de 2015 entendi que com ou sem patrocínio o evento precisava ser realizado e para isso a rede de parceiros seria fundamental.
Também de modo remoto, conversamos brevemente com Pedro Rubens, reitor da Universidade Católica de Pernambuco, um dos principais parceiros da Mostra Curta Vazantes, aliás, evento que faz parte do programa de extensão da universidade. E o resultado desses dois dedos de prosa você confere abaixo:
Embora online em 2021, a Mostra Curta Vazantes preserva uma profunda conexão com a comunidade de Vazantes. Você diria que esse traço, que permite uma forte inclusão social, continua sendo fundamental para a participação da universidade no evento?
A 1ª Mostra Curta Vazantes totalmente on line, apesar do motivo ser lamentável, acaba sendo um grande marco histórico que nos faz perceber o problema da exclusão digital e, ao mesmo tempo, abre janelas de oportunidade de inclusão social e digital. A universidade que chegou à comunidade, agora pede licença para entrar nas casas das pessoas, convidando-as para viajar pelo mundo da imaginação, com visão crítica, lúdica e esperançosa.
Como você está percebendo essa primeira edição online do evento, com a possibilidade de ampliação da participação popular e de profissionais do Brasil todo por meio das ferramentas remotas?
Diante do inevitável, portanto, há aspectos positivos: nunca a comunidade esteve tão conectada com o mundo, nunca chegamos tão longe no extenso Brasil. Tanto podemos contar com a participação de gente de vários lugares como foi ampliada a participação da comunidade universitária, com um envolvimento maior de estudantes, professores e funcionários, a quem quero registrar meu agradecimento de coração. Nada compensa o abraço, mas tudo pode reforçar a saudade e a falta que somente o encontro com as pessoas pode preencher.
Essa nova visibilidade nacional da Mostra Curta Vazantes conferida pelo online pode ser capitalizada de que maneiras para encorpar ainda mais as próximas edições e, quem sabe, ampliar o projeto?
Por um lado, a gente está cansado de fazer praticamente tudo online; por outro, essa nova forma de presença digital está nos aproximando de quem estava distante e criando hábitos novos. Tudo indica que as próximas Mostras terão as duas modalidades, ampliando o projeto. Mas, além disso, o sonho de um “espaço de cinema” permanente na comunidade bem como a cultura de cine fórum poderá ocupar os espaços da escola e dos eventos o ano todo. Quem sabe as novas Mostras serão a culminância de uma comunidade que faz o cinema acontecer no seu dia a dia. Vazantes é, de fato, coisa de cinema!
Você acredita que o papel tão efetivo e determinante da UNICAP na Mostra Curta Vazantes é um modelo que deveria ser replicado por outras instituições de ensino superior, no sentido do exercício do cinema como ferramenta pedagógica e de cidadania?
As experiências exitosas são protótipos que podem e devem ser refletidos, avaliados e replicados: eis um papel interessante da universidade. A Mostra Curta Vazantes surgiu quase por acaso: Leo Tabosa estava fazendo um projeto para a Unicap e descobriu que havia incentivo e exigência para incluir uma comunidade do interior. Como Vazantes tem um movimento de educação popular da Fundação Fé e Alegria, a proposta foi feita e o encontro aconteceu. Se, por um lado, a universidade é um mundo de possibilidades, por outro, as comunidades estão cheias de talentos e precisam de oportunidades.
E como é importante permitir esses encontros, não é mesmo?
Provocar o encontro de universitários que nasceram em cidades grandes e que tem mais acesso à cultura e à educação com o povo das comunidades, sobretudo de nossos interiores, sempre será uma experiência inovadora para todo mundo. E o cinema tem uma dinâmica envolvente e uma pedagogia do trabalho em equipe e construção coletiva, da crítica e da criatividade, da diversidade de artes e habilidades, da vida real com o sonho… Logo depois da 1ª Mostra de Cinema, as crianças e adolescentes da época aprenderam com os universitários e logo continuaram o exercício de fotografar, filmar e fazer roteiros em seus trabalhos escolares, com poucos meios e muita criatividade, mas muito senso de cidadania comunitária. Hoje, na 7ª Mostra da Sétima arte em Vazantes, já temos vários curtas produzidos por gente daquela primeira geração que, agora, já chegou também a uma universidade. Eis o belo círculo virtuoso: o sonho das telas virou projeto real de vida.
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