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À frente da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo há décadas, a diretora Renata de Almeida já viu de tudo, tanto no que diz respeito aos filmes quanto na organização e financiamento de um evento deste porte.

Às vésperas da 43ª edição, que traz 300 filmes à capital paulista entre 17 de outubro e 30 de outubro e se mantém como um dos principais eventos de cinema do Brasil, o Papo de Cinema conversou com a diretora da Mostra sobre temas que vão desde a curadoria e a presença recorde de filmes brasileiros até a realidade virtual e as dificuldades de financiamento da cultura no Brasil:

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Como ocorre o processo de curadoria num festival com 300 filmes selecionados?
A gente recebe mais de 1.500 inscrições por ano. Com a chegada dos links na Internet, começamos a receber muito mais filmes. Antes, para ver um filme, era preciso viajar, depois tiveram os VHS, os CDs etc. Mas os links permitiram ter muito mais inscrições. Temos uma comissão com várias pessoas assistindo aos filmes. Elas escrevem um relatório, indicando “sim”, “não”, “talvez”, e incluindo uma justificativa. Depois conversamos, vemos os filmes que passaram pela primeira peneira, e fazemos a seleção em cima disso.
Obviamente existem os filmes de autores que a gente já conhece e vem seguindo nesses 43 anos de Mostra. Mas é difícil explicar, quando vemos um filme, o porquê de termos gostado dele. Podemos ter uma justificativa racional: às vezes este filme tem problemas no roteiro, ou deficiências na fotografia, mas em alguns casos nós perdoamos absolutamente todos os problemas se a experiência for arrebatadora e dialogar conosco de alguma maneira, ou por ser importante neste momento específico. Às vezes, um filme não bate tanto com o nosso gosto, mas sabemos que ele é importante para um determinado público. A curadoria é uma junção de tudo isso.

Acredita ser responsabilidade da Mostra retratar tendências da cinematografia mundial e revelar novos autores?
Acredito que sim. A Mostra tem a tradição de revelar muitos nomes. Quando passamos filmes iranianos pela primeira vez na Mostra, as pessoas davam risada. O José Simão fez uma crônica rindo do fato que ninguém conseguia pronunciar os nomes dos diretores da Mostra. Existiam piadas de que a Mostra servia para ver filmes do Cazaquistão com legenda em farsi! Mas revelamos muitos nomes e cinematografias. O Lav Diaz, que depois ganhou os festivais de Berlim e Veneza, já tinha ganhado uma retrospectiva na Mostra antes desses prêmios. Precisamos ter com os olhos atentos às novas propostas. Sátántangó (1994) faz 20 anos agora, e Béla Tarr participou da Mostra com este filme quando foi lançado. Essas descobertas fazem parte do nosso trabalho.

Existe uma preocupação em representatividade feminina, negra, LGBTQI+? Alguns festivais, como Berlim, chegaram a instaurar cotas.
A Mostra tem apresentado filmes LGBTQI+ muito antes de a sigla existir. É curioso que, na competição, diversos filmes dirigidos por mulheres tenham vencido a Mostra, como O Estranho em Mim (2008), e mesmo no ano passado [com As Sandinistas, de Jenny Murray]. Alguns anos trazem uma temática específica: já tivemos uma retrospectiva do Antônio Pitanga, aproveitando o documentário do Beto Brant e da Camila Pitanga, e propusemos um debate sobre O Nascimento de uma Nação (1915)… Eu, como mulher, odiaria entrar com o meu filme no festival por causa de uma cota. A cota precisa existir para formação e para financiamento. Quando você tem o produto pronto, ele precisa falar por si próprio. Ao mesmo tempo, precisamos ter um olhar aberto à variedade de projetos disponíveis.

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Sátántangó, de Béla Tarr

A 43ª edição 60 filmes brasileiros, incluindo mais de uma dúzia de títulos inéditos. Como justifica esta quantidade expressiva deste ano?
Há alguns anos, temos dado uma ênfase grande ao cinema brasileiro com a Mostra Brasil. Este ano, nossa cinematografia teve uma produção excepcional, que viajou a muitos festivais e recebeu diversos prêmios. Isso se reflete na Mostra. No começo da Mostra, os cineastas brasileiros acreditavam que não teriam muito espaço na programação, porque competiriam com os títulos internacionais. Com o passar dos anos, quebramos esta ideia, até porque os filmes nacionais trazem tanto público quanto os estrangeiros.
Este ano, também optamos por dar um lugar de destaque a estes filmes: a abertura ocorre com Wasp Network (2019), produzido por um brasileiro [Rodrigo Teixeira], baseado no livro de um brasileiro; e o encerramento ocorre com Dois Papas (2019), que é uma produção internacional, mas dirigida pelo Fernando Meirelles. Fizemos esta opção em função das discussões atuais sobre o cinema feito no Brasil. No Teatro Municipal, durante três dias, escolhemos filmes brasileiros que levaram o nome do país para fora: A Vida Invisível (2019), premiado em Cannes, Abe (2019), premiado em Sundance, Três Verões (2019), selecionado em Toronto, e Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou (2019), eleito melhor documentário em Veneza. Dentro da nossa possibilidade, quisemos revelar o papel do cinema brasileiro.

No caso específico dos filmes brasileiros inéditos, você apontaria alguma tendência estética ou política em torno dos títulos selecionados?
Alguns filmes abordam diretamente a política, algo que inclusive vamos debater no Fórum. No ano passado, como de costume, a Mostra ocorreu em outubro, e por acaso foi o período entre os dois turnos da eleição presidencial. Alguns filmes foram feitos sobre a eleição, ou com reflexões a respeito da democracia. Existe este recorte em vários filmes, mas não todos. Há uma questão indígena muito forte também. O cinema tem um teor jornalístico: ele reflete em diferentes graus o estado do mundo e as discussões do momento. De uma maneira ou outra, sempre encontramos questões que dialogam diretamente com a época que vivemos.

Você disse na coletiva de imprensa que costuma gostar muito do cinema nórdico. O que te chama atenção nestas produções?
Os filmes nórdicos costumam ser muito bem produzidos, mas também existem outras questões: esta é a região onde a social-democracia realmente deu certo. São os países mais igualitários do mundo. Como eles já passaram por vários degraus que ainda precisamos subir, o cinema produzido por lá aborda muitas questões de sociedade, questões humanas e de relacionamentos, com uma visão que pode servir de modelo para nós.

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Sobre as projeções no Teatro Municipal, como enxerga o valor simbólico de ter o cinema brasileiro exibido no imenso espaço destinado normalmente ao teatro, à música, à dança?
O cinema nasceu um pouco do teatro. O teatro envolve várias artes, e o cinema envolve o teatro. Estas outras artes também contam histórias. Uma vez, chegamos a fazer uma sessão de O Circo (1928), do Chaplin, com orquestra. O meu grande medo das exibições no Teatro Municipal era o som. Quem insistiu muito foi a Spcine, através da Laís Bodanzky. Fui reticente à ideia, mas concordei que era algo importante ao cinema brasileiro, especialmente este ano, por se tratar de um lugar emblemático da cidade, um prédio histórico. Com estas sessões, o cinema brasileiro ocupa o centro da cidade. Estamos caprichando para ter o melhor som possível, a melhor qualidade de projeção. Vamos colocar projetor 4K. Espero que dê tudo certo! Sempre que fazemos algo novo, é uma aventura, mas acho que estamos fazendo tudo o que pudermos para proporcionar a melhor experiência possível – e esta experiência obviamente envolve o fato de as pessoas irem até o Teatro Municipal e assistirem ao filme dentro daquele espaço especial.

A propósito da Spcine, como enxerga o papel da Mostra fora do circuito habitual, com itinerâncias e a Spcine Play?
Temos a Spcine Play, e no site do Itaú Cultural você encontra alguns filmes exibidos durante a história da Mostra. A itinerância com o Sesc vai a dez cidades do interior de São Paulo. Além disso, teremos uma equipe itinerante de realidade virtual. Nossa sala habitual de realidade virtual fica no CineSesc, mas teremos uma equipe com uma van para ir a vários CEUs, propondo sessões ao ar livre de realidade virtual. Eu adoro a sessão do Parque do Ibirapuera, sempre acho uma das sessões mais bonitas da Mostra, com orquestra. As pessoas já abraçaram esta sessão, e hoje levam cadeira, cesta de piquenique, vinho. Mesmo quando chove, o público continua. O vão livre do MASP, onde a Mostra nasceu, será ocupado pela Mostra pela primeira vez num domingo, no Dia do Patrimônio do Audiovisual. Para comemorar, vamos exibir filmes restaurados do George Méliès em 4K, além de curtas do cinema primitivo brasileiro, com acompanhamento de piano. Deve ser uma sessão linda, no dia da Paulista fechada.

Parte do público ainda tem dificuldade em enxergar a realidade virtual como uma forma de cinema. Como percebe a relação entre estas produções e o cinema tradicional?
Para mim, realidade virtual é cinema. Ela lembra um pouco os primórdios do cinema, quando ele era apresentado em feiras. Sabe aquela história da projeção dos irmãos Lumière, quando as pessoas viram as imagens da locomotiva vindo em direção delas, na tela, e saíram correndo? Às vezes dizem que é mentira, mas acho uma história ótima. A realidade virtual lembra um pouco isso: ela proporciona uma sensação diferente, próxima da realidade. O cinema, no começo, também causou espanto para as pessoas acostumadas à fotografia. Antes disso, a pintura era o padrão, e a fotografia causou espanto. Não acredito que a realidade virtual possa substituir o cinema tradicional, de maneira nenhuma, assim como o 3D não substituiu o 2D. Mas este é um novo modo de expressão para o cinema. Algumas histórias não cabem num longa-metragem, só numa série – ou no formato curto da realidade virtual, por exemplo, caso a imersão nas sensações seja fundamental à história. Este é um novo meio de se transmitir o que os criadores querem contar.

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Alguns patrocinadores da 43ª Mostra de São Paulo

Muitos festivais de cinema correm o risco de não terem edições este ano por falta de patrocinadores, mas este nunca foi o caso da Mostra, que sempre teve a 43ª edição garantida. Qual é a estratégia para tamanha estabilidade de financiamento?
A Mostra já sofreu muito com estas questões ao longo de 43 anos. Eu entrei na décima terceira edição, e logo no ano seguinte, veio o Plano Collor. É preciso estabelecer parcerias: temos parcerias de longa data com o Sesc, o Itaú, a Prefeitura e o Governo do Estado. Existe uma lealdade não apenas nossa em relação aos parceiros, mas deles em relação a nós. Nunca prometemos algo que não podemos cumprir. Quando existe uma gama maior de parceiros, quando algum deles falta, você sabe que talvez a edição seja menor, mas o festival não deixa de acontecer.
A Petrobrás já foi o grande patrocinador da Mostra, mas quando ela saiu, nós nunca deixamos de ter outros parceiros. A Petrobrás já vinha cortando o patrocínio, e no ano passado, cortaram 50%. Tudo indicava que eles sairiam de uma vez. Começamos a pensar em como suprir esta falta, e onde poderíamos cortar. Tivemos um período de impasse devido à Lei Rouanet – de onde vem a parceria com o Itaú e a Sabesp, por exemplo. Sem a Lei Rouanet, pensamos como lidaríamos com os parceiros. Pensamos em crowdfunding, mas isso não foi necessário: quando saiu a Lei Rouanet, os parceiros foram confirmados. Mas sempre existe um orçamento com tudo o que queremos fazer. É preciso determinar níveis de prioridade, e cortar do menos importante até o essencial.
Para a gente, a prioridade é o público. Cortamos tudo o que podemos, menos o que vai atingir o público. Às vezes o número de convidados cai um pouco em função disso, mas retomamos um funcionamento comum ao início da Mostra, com vários apoios. Alguns produtores trazem seus convidados, como o Rodrigo Teixeira. A UniFrance ajudou a pagar algumas passagens, e o Consulado da França, também. É preciso fazer essa rede. Dá muito mais trabalho, mas é um caminho possível. O essencial é priorizar o público. Se algum evento não tem o público como elemento mais importante, ele vai ter dificuldades para continuar.

Então você apoia iniciativas de financiamento coletivo para festivais de cinema?
Acho muito válido! No nosso caso, não precisamos, e como conseguimos todos aqueles patrocínios, não havia sentido em abordar o público para contribuir. Não seria transparente da nossa parte. As ajudas do público só fazem sentido quando o festival realmente precisa disso. Esta é uma solução a guardar para casos mais urgentes, e isso se torna uma maneira de se comunicar diretamente com o público. Eu inclusive colaborei com alguns destes financiamentos, enquanto pessoa física.

Mesmo em momentos de pouco apoio do governo para as artes e a cultura, acredita que o caminho passe pelo diálogo com setores opostos, ao invés do enfrentamento?
A Mostra nunca precisou fazer nenhuma concessão. Sou contra fazer concessões a pressões de qualquer natureza, mas acredito que o diálogo seja indispensável, sempre. Parece que voltamos aos anos 1950, na Guerra Fria. Falamos em direita e esquerda, mas algumas questões constituem princípios básicos. Neste momento, precisamos nos unir em torno de bandeiras como a liberdade de expressão e os direitos humanos. É uma loucura alguém pensar que direitos humanos são de direita ou de esquerda; eles dizem respeito a todos os seres humanos. Nós já vimos atrocidades cometidas tanto por governos de esquerda, a exemplo do stalinismo, quando pelas direitas, pelo fascismo e tantos outros. A questão não é de direita e de esquerda, é de princípios humanistas que herdamos do Iluminismo. Em alguns momentos, precisamos lutar por estes princípios básicos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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