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É contagiante a empolgação de Vicente Amorim falando sobre Motorrad, uma espécie de projeto de estimação. Finalmente ele conseguiu realizar o desejo, acalentado desde os tempos da cinefilia, de fazer um exemplar de gênero, tarefa potencialmente inglória num país como o Brasil, cuja produção desse tipo de filme é relativamente pequena. Foi com um largo sorriso no rosto e a satisfação de quem considera cumprida a missão que Vicente se colocou à disposição para conversar com o Papo de Cinema minutos antes da sessão de pré-estreia do longa-metragem no Rio de Janeiro. Motorrad foi selecionado para a mostra principal do Festival de Toronto, um dos maiores e mais importantes do mundo; teve première nacional no Festival do Rio 2017; já foi vendido para um sem número de mercados mundo afora. Mesmo antes de encarar o teste de fogo do circuito comercial brasileiro, o cineasta demonstra alegria com a carreira de seu filme de ação/terror/thriller/suspense. Confira este bate-papo exclusivo.

 

Vicente, por que um filme de gênero, haja vista que o Brasil não tem costume de apostar nesse tipo de cinema?
Justamente por isso, por não termos tanta tradição. E por que não deixam a gente fazer. Estou tentando fazer um filme de gênero há 20 anos. No Brasil os produtores e os agentes públicos consideravam, e alguns ainda consideram, filme de gênero muito doido, muito estranho ou, então, muito caro. Muito doido e muito estranho tem de ser, mesmo. Mas não precisa ser muito caro para ser bom. Eu queria muito fazer algo que fosse razoavelmente aberto, que pudesse se comunicar com um público além do nicho hardcore. Para fazer um longa assim você precisa ter condições de produção. Você não consegue fazer algo como Motorrad de forma “caseira”, senão eu talvez já tivesse feito, na cara e na coragem, há 15 anos. Aí se me perguntam: “alguém te proibiu de fazer ?” Não, ninguém me proibiu, mas queria fazer direito (risos). Essa oportunidade surgiu a partir do convite do Tuba (L.G. Tubaldini Jr, produtor e roteirista) para criar o Motorrad.

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E as referências? O que o pessoal vai ver no Motorrad?
Vai ver John Carpenter, John McTiernan, Ridley Scott, o Steven Spielberg de Encurralado (1971)… Mas, de fato, Carpenter é um norte. Vinte ou 30 anos atrás, quando decidi fazer cinema de gênero, foi por causa do Carpenter. Claro, depois vieram várias outras influências, oriundas de diversos filmes e subgêneros. Aliás, é curioso a gente chamar de “filme de gênero”, no singular, pois, na verdade, estamos falando de terror, ação, thriller, policial, etc. Enfim, queria fazer isso muito direito. Há dois anos surgiu oportunidade do Motorrad. O Tuba é motoqueiro, faz trilha na Serra da Canastra, e desejava produzir um filme de ação e terror, violento, com motos, lá mesmo na Serra da Canastra. Era mais ou menos isso que a gente tinha. Nos juntamos, eu, ele, Bayão (L. G. Bayão, roteirista) e Danilo Beyruth (quadrinista que escreveu a HQ na qual o filme se baseia) e compusemos os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (risos). Decidimos “não levar prisioneiros”, embarcando no gênero, mesmo. Não queríamos fazer um drama social com gênero, ou um filme de experimentação de linguagem que flerta com o gênero. Não! Era um filme de gênero. Claro, tem outras coisas, como as questões psicológicas do grupo, o que esses antagonistas representam, tem pano para manga aí. Mas eu não queria colocar isso a reboque do gênero, almejava fazer o contrário.

 

A seleção para Toronto foi uma vitrine e tanto para o Motorrad
Inscrevemos o filme e adiante os programadores do festival me ligaram dizendo que ele estava dentro. Óbvio, fiquei felicíssimo. Toronto hoje é o terceiro maior festival do mundo, já passou Veneza. Mas pensei que tivéssemos sido selecionados para a Midnight Madness (sessões de meia-noite). Aí me disseram que o que o filme iria para mostra principal. A justificativa deles foi de que o Motorrad era para um público maior, até em termos de vitrine comercial. Toronto é um mega evento, também um dos grandes mercados de cinema. Já no primeiro dia a gente fechou seis territórios. Fomos vendendo, vendendo e conseguimos comercializar para o mundo inteiro. Isso prova que o Motorrad está se comunicando com um público maior. Ele foi vendido para o extremo oriente, por exemplo, onde a galera está atrás da ultra violência, e a gente, obviamente, bebe também da fonte deles, sobretudo dos coreanos, tipo I Saw The Devil (2010), e também do japonês Takashi Miike; já na Escandinávia eles veem o filme quase como um exemplar brasileiro de arte; nos Estados Unidos ele é encarado como um thriller para jovens adultos. Esse é meu sétimo longa-metragem. Nunca havia feito um filme com tanta tração de produtores, distribuidores, fanzines, da galera mais hardcore de gênero, até de um pessoal meio pirado, fã de (Alejandro) Jodorowsky (risos). Deu muito certo.

 

A Serra da Canastra ajuda a compor a sensorialidade do filme. Como foi filmar por lá?
Uma maluquice do cacete. Isso é culpa do Tuba (risos). Ele disse: “cara, esse lugar é genial, a gente precisa fazer o filme lá”. Pensei na dificuldade, até porque tenho alguma experiência com ação. Meu primeiro trabalho profissional de direção foi com a minissérie A Justiceira (1997), da qual fui diretor de segunda unidade de ação, além de dirigir dois episódios. Depois, dirigi a segunda unidade de vários filmes norte-americanos de ação. Mesmo nos meus dramas sociais e históricos tentei contrabandear um pouco do gênero. Até o Irmã Dulce (2014) tem uma sequência de porradaria de uns três minutos que, se você pensar bem, é quase gratuita (risos). Antecipei que seria muito difícil trabalhar na Serra da Canastra, porque para filmar ação você precisa de certa infraestrutura e, fora de uma superprodução hollywoodiana, como fazer isso? O único jeito é trabalhar com a equipe mais badass do cinema brasileiro.

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E como era essa logística?
Propus à galera que trabalha comigo há 20 anos fazer uma coisa completamente diferente. Nos deslocávamos diariamente de Passos, uma cidade pequena da vizinhança, durante uma hora e meia até a base. É como subir o monte Everest, precisa de uma base. Depois, seguíamos cerca de mais uma hora, tudo de 4X4. Para além disso, ainda tínhamos de fazer uma trilha, passar por lugares em que nem as motos chegavam. À cena da cachoeira, por exemplo, foi necessário fazer rapel. Não tem como enganar em cinema de ação. Sem fazer juízo de valor, num drama social e/ou num filme intimista, é possível realizar algo de qualidade com um bom texto e bons atores, desde que você não atrapalhe muito como diretor (risos). Já no gênero ação, você e a sua equipe precisam ter um domínio muito grande do métier, do craft, como dizem os norte-americanos, da carpintaria, do artesanato. Para quem gosta de filmar, é aí que se sente o sangue correndo na veia. Chegávamos à locação às 6 horas da manhã, com os termômetros marcando zero grau; ao meio-dia, a temperatura era de 35 graus. Há 30 anos não chovia muito naquela época. Claro, que quando estávamos lá choveu para caralho (risos). Ou seja, precisou de muita garra e vontade. A Serra da Canastra é absolutamente imprescindível, justamente pelo fato de ser um personagem. Os heróis, ou vítimas, dependendo de como você quiser encará-los, não estão apenas lutando contra aqueles motoqueiros espectrais, mas também com os elementos.

 

Até porque o próprio terreno é muito hostil…
Exatamente. Os motoqueiros espectrais são parte dessa natureza. Tem um momento em que eles cruzam um portal. Ali era absolutamente fundamental que o terreno nos remetesse a algo alienígena, que desse a impressão deles passarem para outro plano. Isso a Serra da Canastra nos trouxe. Esse é um típico caso em que as condições de filmagem influenciam o estilo. Claro, eu já queria uma coisa árida, de tons dessaturados, essa poeira, esse sufocamento. Mas, isso tudo foi exponenciado pelo local. Toda a dificuldade que tivemos de filmar lá valeu a pena.

 

E como foi seu trabalho com Lucas Gonzaga, o montador do filme, vide a importância da montagem para o resultado?
Foi foda. Um barato. Nunca tinha trabalhado com ele, mas já o conhecia, especialmente dos filmes que ele montou para o Afonso Poyart. Eu estava louco para trabalhar com o Lucas. Ele é um cara que conhece e gosta de cinema de gênero, tem o ritmo e a pegada necessários, além das referências sobre as quais falamos antes. Não tinha como, por melhor que fosse o montador, chamar alguém que não gosta do gênero. Tinha de ser gente que se divertisse montando, assim como me diverti filmando. O Lucas pegou nosso material e o elevou. Ele é daquele tipo de montador que quando você vê a cena montada, pensa: “caralho, eu filmei isso?” (risos). O Lucas é muito bom, ele é implacável. Não adianta você filmar os elementos. Com uma ação razoavelmente bem filmada, se você montar direitinho, vai. Já os momentos de antecipação, o suspense, o medo, é tudo montagem. Se você errar três frames, por exemplo, já não dá medo. Esse é o primeiro filme que faço, sem dúvida, em que todas as cenas, obviamente não todos os planos, mas todas as cenas, que filmei entraram no corte final. Está tudo no filme. Lucas e o Danilo Beyruth foram os guardiões do gênero, aqueles que disseram para a gente ir fundo mesmo. Foi realmente um barato trabalhar com eles.

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E quais são as hipóteses mais esdrúxulas que você já ouviu a respeito dos motoqueiros espectrais?
Tem uma, por incrível que pareça, que é recorrente. Ela considera que a partir do momento em que o garoto pula por cima daquele carro, na verdade ele morreu e tudo dali para frente acontece no purgatório. Curiosamente, essa hipótese foi levantada em Ribeirão Preto, numa sessão com uma cópia de teste da montagem, em São Paulo, numa sessão que fizemos para nerds mega hardcore, e no Rio, numa sessão para uma galera jovem, de uns 18 anos. Pensei:  “caralho, de onde vocês tiraram isso?” (risos). Tem algumas teorias também sobre a relação deles com os buracos negros do filme, os wormholes: o poço, a casa, o túmulo ao lado do lago, a oficina, etc. Aí a galera pegou essa teoria e correu com ela. Recentemente alguém disse que estava tudo explicado a partir da Dark (2017-), aquela série da Netflix, que nem sei se foi feita depois do nosso filme, mas certamente foi lançada após. E tem também uma teoria, essa eu nem nego completamente, de que ali há um espelhamento entre os vivos e os mortos.

(Entrevista concedida ao vivo, no Rio de Janeiro, em fevereiro de 2017)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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