Categorias: Entrevistas

Mulher Oceano :: “As culturas brasileira e japonesa têm muito em comum”, explica Djin Sganzerla

Publicado por
Bruno Carmelo

Nesta quinta-feira, estreia nos cinemas um dos destaques da última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Mulher Oceano (2020), estreia de Djin Sganzerla como diretora de longas-metragens. A cineasta e atriz interpreta as duas personagens principais: Hannah é uma escritora em crise criativa e afetiva, que decide passar um tempo sozinha em Tóquio. Já Ana é uma nadadora profissional, prestes a enfrentar uma dura travessia em alto mar. Elas têm relações opostas com as águas, mas talvez constituam metades da mesma mulher.

No drama, Sganzerla contracena com Lucélia Santos, Stênio Garcia, Gustavo Falcão e o japonês Kentaro Suyama. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com a autora sobre o projeto:

 

Djin Sganzerla em Mulher Oceano

 

O que te levou ao Japão?
Foram vários motivos. Queria muito contar a história de um duplo, sobre estas personagens, Ana e Hannah, que não no fundo fazem parte da mesma mulher. Elas se completam quando estão juntas: será que uma delas é a memória da outra, com a Hannah relembrando a juventude? Será que a Ana é projeção da mente da escritora? Quis brincar com esta pluralidade. Pensei que a ideia do duplo deveria implicar num lugar muito distante do Rio de Janeiro: são quase lados opostos no planeta. Mas o motivo central não era esse: eu tenho uma relação muito forte com a cultura oriental, e o Japão sempre me fascinou pela maneira como lida com o mar, a força dele, os tsunamis. A superação e o enfrentamento à dor são aspectos fortes da cultura japonesa. Este era então o cenário mais adequado para a história.
Fui encontrando o paralelo entre as nossas culturas que parecem distintas, mas têm muito em comum. Os japoneses também adoram o mar. Eu pensava que o budismo era a maior religião para eles, mas descobri que é o xintoísmo, adotado por quase 90% da população. Eles veneram a natureza, e o mar constitui uma divindade masculina. Nós temos Iemanjá, uma figura feminina. Para mim, o mar é feminino e masculino ao mesmo tempo, e este encontro me interessava. As amas [mergulhadoras japonesas] também têm uma relação profunda com o mar, vivendo dele e para ele, fazendo reverências e homenagens. Inclusive, muitas palavras do candomblé e da umbanda vêm do japonês. Era uma fascinação pela cultura japonesa, pelo povo e pelo cinema deles – pelo cinema oriental de modo geral. Além disso, Tóquio é uma cidade muito fotogênica, parece que foi feita para ser filmada. Isso vale não apenas para Tóquio, mas para todas as cidades por onde passamos. Filmamos em Kyoto, Nara, Osaka. O país é um constante cartão postal.

 

O Japão é visto enquanto complementaridade, não oposição ao Brasil.
Exatamente. Essa personagem vai até o Japão para se reconectar consigo mesma, neste momento de vazio. Ela precisa se redescobrir, tirando coisas de si mesma para descobrir o que vai recolocar para dentro. Este também é o processo de criação, de certa forma. Morre-se para se renascer.

 

Mulher Oceano

 

Como vê a relação da personagem com os pais e o parceiro?
A Hannah é uma mulher casada há muitos anos com o Rafael. Ela seguiu essa trajetória com ele, mudando de país para país. Mas ela atinge um momento de virada, precisando se repensar não de maneira egoísta, e sim encontrando sua voz. Ela precisa se tornar protagonista da própria história, e esse gesto não acontece contra o marido. O processo ocorre com ela mesma, buscando seu espaço. Já o marido não tem a mesma flexibilidade dela, nem quer ver esta mudança. No fundo, o casal permanece unido, mas ele é menos corajoso para lidar com a vida. Hannah dá um passo importante: há o risco de o casamento ruir, mas caso isso aconteça, significa para ela que não foi feito para durar. Ela descobre que precisa existir, encontrar sua completude. Ao mesmo tempo, a Hannah sofre de um bloqueio criativo, e não consegue escrever há muito tempo. O homem japonês oferece uma possibilidade de reconexão da Hannah consigo mesma, através da cidade e das amas.
Quanto aos pais, a mãe prefere não ter uma filha solteira. Ela privilegia o padrão enraizado na classe média, sem sair do que está previamente programado. Esta também é uma mãe invasiva, alheia ao que filha sente: ela corre pelas beiradas, procurando o marido para saber o que acontece. Talvez ela tenha uma relação ainda mais forte com o genro diplomata do que com a própria filha. Hannah percebe isso, e se incomoda, mas não tem força nem interesse em brigar. O pai está meio ausente: a presença só é percebida através do beijo mandado pela mãe. É um pai completamente dominado pela mulher. Quando estão à mesa, apenas a esposa controladora fala. Hannah está repensando todo esse sistema, e a si mesma. Aos poucos, ela busca a estabilidade entre o marido e a mãe. Isso não passa por um novo encontro amoroso ou algo do gênero: é um encontro consigo mesma. O homem é um agente, mas a transformação não acontece através dele.

 

Como equilibrou as representações de mar, banheira, piscina, projeção de ondas sobre os corpos?
Isso nasceu da necessidade de retratar os sonhos com o mar, que estão muito presentes no filme. A transformação vem como um chamado das águas, e queria que ele se manifestasse enquanto força concreta nos sonhos. Assim encontramos todas essas metáforas: a banheira representa a assepsia do estado de vida dela. Transpus isso ao corpo de Hannah, quando recebe o convite para as fotos. Talvez não fique tão claro no filme, mas construí uma personagem com medo do mar. Nunca a vemos na água: Hannah está fascinada pelo mar, mas tem medo, ao contrário da Ana, que enfrenta e tem uma relação íntima com o mar. Por isso, as águas para a escritora se limitam à banheira, ou quando ela molha o rosto com a água, na exposição fotográfica. Esta é a mente dela: o mar a chama, mas ela não consegue se jogar de fato, fora as pequenas metáforas.
Além disso, quando pequena, ela testemunha um corpo afogado. A criança viu alguém morrendo – uma tia, no caso, mas isso nem faz tanta diferença. A personagem morreu saindo do mar. Não era importante deixar estas questões muito claras, apenas sugerir que dentro dela existe um bloqueio. Quando o homem japonês pergunta sobre o local que traduz a vulnerabilidade de Hannah, a resposta é o mar. Por isso ela projeta o mar em seu corpo. Já a Ana treina, passa o dia na piscina. Ela é quase um peixe, o que me remete a um quadro do Magritte onde a mulher tem cabeça de peixe e corpo humano – não é uma sereia, e sim o contrário. No fundo, a Ana pertence à água, mas está na terra. Neste sentido, ela é quase uma personagem fantástica, porque não se sente plena na terra.

 

Mulher Oceano

 

Enquanto atriz, como compôs o corpo, a voz de duas mulheres tão diferentes?
Foi um grande desafio. Comecei pela Hannah. Todo o processo da filmagem se iniciou no Japão. Criei a mulher com todos esses subtextos, misturando força e fragilidade com a busca de si e a relação de atração e repulsa com o mar. Depois disso, eu me desnudei para que viesse a Ana. Ela precisava ser mais leve, mais simples. A vida para ela se encontra no mar, no pai e nos amigos. Ao mesmo tempo, a profundidade é abismal – ela tem o universo dentro de si. Precisei me separar da Hannah por completo para que pudesse brotar a Ana. Criei as duas de maneiras separadas, enquanto personagens distintas mesmo, com estados de alma diferentes.

 

Falamos muito sobre as dificuldades políticas, e também devido à pandemia, de produzir e lançar filmes brasileiros. Como tem sido a experiência no caso de Mulher Oceano?
A dificuldade está cada vez maior. Filmei em 2018, quando ainda era possível. Hoje já seria inviável, inclusive em função da pandemia. Não teria dado para viajar ao Japão e filmar lá, o que inclui a valor da moeda agora. Se não tivesse feito exatamente no período que eu fiz, não teria mais conseguido filmar. Venho de uma família que, felizmente, me ensinou a fazer muito com pouco. Esta é uma produção pequena que se multiplicou através do grande empenho das pessoas envolvidas. Cada membro da equipe fazia por três, quatro pessoas. Os artistas e amigos que abraçaram o projeto se entregaram de fato para que ele acontecesse. Vejo um momento muito difícil para a nossa cultura – um dos mais difíceis que já vivi. Conheci isso quando era mais nova, no período Collor, mas era adolescente, ainda não criava nem atuava. Senti isso através dos meus pais [os cineastas Helena Ignez e Rogério Sganzerla]. O momento foi cruel com o cinema e todos que viviam de arte. Agora, vejo de novo uma luta enorme para a arte existir e resistir. Percebo muita união para que as obras cheguem ao público, e que existam. Este esforço é necessário, porque o governo não dá nenhum apoio.

 

Mulher Oceano

 

Concordo. Precisamos continuar tratando a crise enquanto tal, sem percebê-la como se fosse um estado natural.
É assustador: ligamos a televisão e escutamos várias atrocidades, narradas pelos jornalistas como algo aceitável. Parece que estamos anestesiados, dentro de uma situação inevitável. O que ocorre no país como um todo é muito sério, não podemos pensar que está tudo bem. Para mfjapim, o maior ato de resistência é lançar o filme agora. Escutei de várias pessoas que este não era o momento adequado, mas nunca saberemos quando será o momento adequado. Não sabemos o que vai acontecer daqui a quatro meses, inclusive em relação à pandemia. Basta ver o que acontece na Europa. Também conversei com um amigo no Japão, que me contou sobre o retorno dos casos por lá. É claro que as pessoas vão ao cinema assustadas, mas eu me informei e descobri que o cinema é um dos lugares mais seguros por conta do protocolo de segurança. É muito mais seguro ir ao cinema do que ao supermercado, ou viajar de avião, porque existe uma troca no ar condicionado constante. Precisamos seguir, apesar das dificuldades. Para mim, o ato de colocar o filme nos cinemas já é um ato de resistência fundamental. Precisamos destacar isso, senão morremos por dentro. Força para todos nós!

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)