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Acostumado aos documentários sobre a geografia e a ecologia, o veterano Yann Arthus-Bertrand mudou de foco em seus últimos projetos, preferindo investigar a diversidade entre povos do mundo inteiro. Depois de dirigir Humano: Uma Viagem Pela Vida (2015), ele se une a Anastasia Mikova para realizar Mulher (2019), uma conversa com nada menos que duas mil mulheres de cinquenta países diferentes.

Cada uma delas é convidada a debater questões de trabalho, família, maternidade, violência, desigualdade social, machismo, pressões sobre o corpo e padrões de beleza, entre dezenas de outros temas. Os diretores passam inclusive pelo Brasil, país que “fascina” Bertrand, segundo o autor. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o cineasta na ocasião do lançamento de Mulher em home video pela Imovision:

 

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Yann Arthus-Bertrand e Anastasia Mikova, diretores de Mulher

 

Por que preferiu conversar com milhares de mulheres, ao invés de cinco ou seis que pudessem representá-las em conjunto?
Este filme tem um pouco menos de duas horas, mas eu teria adorado que ele durasse umas cinco horas. Cada mulher tinha alguma coisa diferente a dizer. Conversamos com aproximadamente duas mil mulheres no mundo inteiro, e no corte final, creio que temos cerca de uma centena de mulheres falando à câmera. Teria sido ainda melhor se eu pudesse incluir duzentas ou trezentas. A emoção formidável que elas trazem é muito importante para nós, homens. O que significa ser uma mulher neste mundo de homens? Esta era a indagação. Espero um dia poder fazer uma exposição apresentando os relatos de todas estas mulheres, e espero que isso chegue a São Paulo também. A estrutura era viciante: quanto mais mulheres eu escutava, mais tinha vontade de escutar.

 

Este procedimento é comum em seus documentários: você observa o planeta de cima, vê o mundo animal de longe, sempre abarcando o máximo de exemplos possível. O que te atrai nesta abordagem?
Isso vem de uma história que me aconteceu há muito tempo. Estava a bordo de um helicóptero que parou de funcionar quando sobrevoava um pequeno vilarejo no Mali. Eu fui acolhido por pessoas que me ofereceram tudo o que tinham. Eles me receberam muitíssimo bem, me contaram as suas vidas, me explicaram o medo da doença, porque a debilidade os impedia de trabalhar na terra e garantir o sustento das crianças. Percebi que, no meu trabalho com a paisagem e a ecologia, faltava a palavra das pessoas. Os três dias que passei neste vilarejo foram transformadores. Entendi que seria preciso fazer entrevistas longas, e levar o tempo necessário de conversar com as pessoas, porque as coisas mais importantes não surgem tão facilmente assim. Portanto, acabei me envolvendo em projetos longos e caros, porque trabalhamos muito, e precisamos escutar o coração das pessoas para compreender o mundo. A escuta nos faz crescer enquanto pessoas. O contato com a natureza e com o planeta é fundamental, mas nada substitui a relação humana. A emoção e o amor das pessoas nos faz melhores e mais inteligentes.

 

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Como decidiu quais países visitar e com quais mulheres conversar?
Em cada país havia coisas particulares que queríamos fazer. Ironicamente, às vezes temos ideias muito precisas do que buscamos em cada local, mas depois das conversas, o que conservamos para o filme não é nada daquilo que procurávamos a princípio. Para mim, no Brasil seria fundamental conversar com índias, falar da pobreza, da democracia, do racismo, da violência, do trabalho. O Brasil é um país extremamente rico, e quando se faz um projeto como Mulher, é inevitável passar por aí. É um país muito misturado, com traços de cultura europeia, africana e indígena, algo que sempre me fascinou bastante.

 

Você descobriu relatos e temas diferentes do que esperava encontrar?
No início, eu queria fazer um filme sobre as injustiças. Por que as pessoas mais pobres do mundo são mulheres? Por que as maiores taxas de analfabetismo do mundo se concentram nas mulheres? Por que elas representam apenas 2% a 3% da população carcerária mundial? Por que as mulheres efetuam 50% do trabalho da humanidade, mas recebem muito menos? Por que elas são as principais vítimas de violência? Mas quando me cerquei de mulheres na equipe, o filme se transformou radicalmente. O resultado se tornou mais íntimo: de repente começamos a falar da vida privada, da menstruação. É muito mais difícil ser mulher do que homem neste mundo, e talvez o elemento que mais tenha me surpreendido neste processo seja a liberdade com que as mulheres abordam a violência sofrida por elas, mesmo em casos gravíssimos como os estupros no Congo. Os relatos eram muito mais brutais do que eu jamais teria imaginado. Além disso, não esperava que elas falassem dessa maneira sobre o sexo. Os homens citam o sexo como algo sujo, perverso, sacana. Já as mulheres evocam o sexo com leveza, com humor. Para elas, é algo mais natural, e não imoral. Algumas mulheres compartilharam relatos tão crus que nem pudemos incluir no filme, mas foi divertido encontrar esta abordagem.

 

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As mulheres são posicionadas diante do mesmo fundo escuro, com uma luz semelhante, em todos os países do mundo. Por que optou por esta estética?
Eu desenvolvi este sistema há muito tempo. Quando você faz entrevistas dessa maneira, no escuro, com as pessoas isoladas, elas falam com mais facilidade por estarem fora de seu cotidiano. Eu não queria ter objetos do cotidiano, imagens das casas das pessoas, para o foco se concentrar exclusivamente nas falas. Gosto deste dispositivo. Sei que algumas pessoas não apreciam nem um pouco esta estética, mas tenho dificuldade para investir em outro formato. Já tentei fazer entrevistas de outra maneira, mas sempre acabo voltando para este formato íntimo. O fundo preto também facilita a tarefa de escrever bem os letreiros, os países e as línguas.

 

Como combinou o seu estilo com os traços de Anastasia Mikova na direção?
Trabalho com Anastasia há muito tempo. Ela já contribuía aos meus programas de televisão sobre o meio ambiente, e depois participou de Humano: Uma Viagem Pela Vida (2015). Eu precisava dela para este projeto. Não poderia falar sobre este tema sendo apenas eu, um diretor homem, atrás das câmeras. Percebi que o filme se tornou muito diferente graças a ela, foi algo totalmente diferente do que eu teria feito sozinho. No final, ficou um filme muito melhor. Nossa equipe era formada por 18 mulheres e dois homens, então eu não tinha um olhar majoritário: este filme foi feito mais por mulheres do que homens. Compreendi que precisava deixar as mulheres se expressarem. Inicialmente, eu não pretendia falar sobre a menstruação, mas Anastasia me dizia: “Não dá para evitar a menstruação! Nós sangramos todos os meses!”. Eu acabei cedendo, e descobri que ela tinha razão. As transformações do corpo, o debate sobre a beleza, vieram dela. Vários temas não me pareciam importantes, mas as mulheres da equipe me convenciam de que seria impossível não incluir. Aliás, este filme acabou mudando profundamente o meu olhar sobre as mulheres da minha vida: a minha esposa, minha mãe, minha irmã.

 

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As imagens de nudez feminina surpreendem dentro do documentário.
A beleza é uma coisa muito importante para as mulheres. Muitas delas são obcecadas pela busca da beleza, e amedrontadas pela ideia do envelhecimento. Peter Linder, um grande fotógrafo acostumado aos retratos de mulheres, nos mostra que mesmo os corpos de mulheres idosas são belos. Adorei esta ideia, mesmo se, na hora de filmar as mulheres nuas, eu ficava incomodado, sentia que aquilo não tinha propósito. Depois, compreendi que se tratava de algo essencial: precisamos desconstruir um ideal de beleza limitado à juventude. A minha tia de 92 anos é uma das mulheres nuas do filme. Fiquei muito contente quando ela aceitou posar para mim. Em paralelo, debatemos sobre a possibilidade de incluir mulheres com um seio mutilado. Havia muitas delas entre as que encontramos. Conversamos com diversas associações a respeito, e chegamos a propor isso a algumas mulheres. De qualquer modo, não existe qualquer aspecto de voyeurismo no filme. Queria apenas mostrar que é possível ser idoso e ter orgulho do seu corpo, gostar de mostrá-lo sem pudores. Precisamos nos liberar do pudor.

 

Ao colocar todas estas experiências femininas lado a lado, o filme sugere que a vivência das mulheres seria equivalente no mundo inteiro?
Bom, o filme se chama Mulher, no singular. Tivemos uma reflexão semelhante ao acompanhar os espectadores que saíam da sessão: as mulheres conversavam muito mais entre elas do que os homens entre eles. Sentimos que havia uma espécie de unidade, porque as mulheres conseguiam se enxergar neste filme. Isso foi surpreendente. Pensamos então na sororidade: todas as mulheres são irmãs uma das outras. Ao término das sessões as espectadoras procuravam por Mikova e eu, e começavam a falar de suas histórias, de sua infância, da violência que tinham sofrido. Adorei fazer este filme que foi muito importante em minha trajetória como fotógrafo. Tenho a sorte, enquanto diretor, de fazer os filmes que quero, sobre temas que me apaixonam e que fazem de mim uma pessoa melhor. O cinema me modifica a cada projeto: eu avanço na minha vida de homem, encontro um novo sentido em minha trajetória.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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