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Música para Quando as Luzes se Apagam :: “Discursos de ódio se corroem sozinhos”, afirma Ismael Caneppele

Publicado por
Marcelo Müller

Os caminhos percorridos pelos filmes no Brasil nem sempre são suaves. Aliás, geralmente se convertem em estradas sinuosas, a despeito de prêmios e outros elementos que de certa forma os validem. Música para Quando as Luzes se Apagam (2017) foi filmado em 2015/16, rodou festivais nacionais e internacionais em 2017/18 e está chegando apenas em 2021 aos cinemas, pela ArtHouse. Claro, no meio disso tudo tinha (tem) uma pandemia. Mas, esse não é um caso isolado de filme que demora para chegar ao público depois de sua première em eventos especializados. Nesse documentário, que é a estreia do ator/escritor/roteirista Ismael Caneppele como cineasta, vemos Emelyn Fisher num processo de se aceitar Bernando, tudo isso mediado pela presença híbrida da atriz Julia Lemmertz. Para saber um pouco mais como funcionou esse processo – que rendeu mais de 600 horas de material bruto e muito esforço para compensar o orçamento baixo –, conversamos remotamente com Ismael Caneppele. Falamos a respeito dessa demora para chegar aos cinemas, de aspectos que dizem respeito à produção e a respeito de qual Brasil Música para Quando as Luzes se Apagam vai encontrar depois de tantas mudanças. Confira.

 

Deve ser no mínimo curioso assistir a um filme rodado em 2015, que frequentou festivais em 2017/18, chegando aos cinemas de 2021…
Cara, para mim isso para mim é bem normal. O último filme que lancei com o Esmir Filho, o Verlust (2020), teve o roteiro iniciado em 2009 e foi lançado em 2021. São 12 anos. O livro que baseou o Música para Quando as Luzes se Apagam foi lançado em 2007 (escrevi em 2005), aí começamos a desenvolver o projeto do filme em 2013. Confesso que esses quatro anos desde a filmagem não me parecem tão longos assim, mas acredito que o resultado ganhou muito nesse tempo, politicamente falando. A gente viveu um retrocesso gigantesco de lá para cá, vozes muito conservadoras ganharam espaço em todos os lugares. O cinema brasileiro foi aniquilado nesses últimos anos. Se o filme antes tinha uma potência poética, algo mais atrelado ao meta-cinema, acho que atualmente ele ganha uma urgência, um tom político e social. Eu já sabia que ele tinha essa potência, mas não imaginei que as pessoas veriam dessa forma. Sempre me preocupo em não aprisionar no tempo presente tudo que faço, tento fazer com que as obras continuem se comunicando com a mesma urgência e importância se vistas depois de 10 anos.

 

Uma coisa que chama a atenção no filme é a ousadia da linguagem, especialmente levando em consideração que você é ume estreante na direção. Desde o começo você queria começar sem apelar para uma narrativa mais clássica?
Esse filme convencional eu já tinha feito. Mesmo não sendo o diretor, em Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) estou lá desde o início. Escrevemos o filme enquanto filmávamos a pesquisa. Ele foi um fracasso comercial, mas deu certo (risos). Aconteceu no nicho. As três pessoas que viram gostaram (risos). Rolou essa ideia de fazer o Música… adaptado pelo Esmir Filho. Mas, não era isso que eu queria fazer. Para mim, o filme nasceu no livro como documental, era o diário de uma menina que quase foi destruído. Pensava que esse filme deveria ser feito como foi escrito, ou seja, por outras pessoas. Minha ideia inicial era que as câmeras estivessem nas mãos dos personagens. Obviamente não consegui, inclusive porque a Emilyn não tinha intimidade com o equipamento e aí acabei tendo de me apropriar da câmera no processo. Mas, queria fazer algo que não fosse conduzido pelo realizador. Tentar soltar o estribo, a direção, deixar que as coisas se contaminassem. Sempre vi muito filme maluco, para mim quanto mais estranho melhor. Era isso que queria fazer como primeiro filme.


Você escreveu o livro, o roteiro e mesmo assim fala dessa vontade de perder o controle. Te incomodam os filmes claramente muito controlados? Você não queria isso para sua estreia?
Na minha estreia eu não queria isso e não teria verba para isso. Mas, eu acho maravilhoso ver um Ingmar Bergman, uma Lucrécia Martel…trabalhei com a Clara Linhart e o Fellipe Barbosa no Domingo (2018), que teve um controle total de tudo. Mesmo o Esmir, a forma como ele trabalha, estando em cada detalhe. Acho maravilhoso, mas demanda grana. Fizemos esse filme com R$ 250 mil, então a limitação precisava virar estética, era o jeito de as coisas acontecerem. Então, o controle não me incomoda, acho lindo, na verdade, mas também amo o descontrole, como visto em Tarnation (2003), uma super referência para a gente. Aliás, assim como também o Glue (2006), do Alexis Dos Santos, que também me guiou muito no processo. Acho que quando há um autor inteiro, pouco importa se ele está soltando ou prendendo.

 

Seu filme transita num limiar em que ficção e documentário sempre se tocam e se entremeiam, aliás, já ouvi de algumas pessoas questionamentos sobre a natureza documental do filme…
Queria entender o que seria ficcional no Música para Quando as Luzes se Apagam. Ninguém me questionou sobre isso, até porque o filme foi para o festival de Sheffield, super documental. Ganhou prêmios. Me pergunto quais cenas poderiam soar documentais. A do carro com o bambolê em cima? Para você ter uma ideia, o fusca é do ator, a Sissi (Betina Venturin) trouxe o bambolê e marquei com eles de ir até àquela plantação para a vivência – como chamamos as filmagens nesse projeto. Quando chegou a equipe, a Sissi estava em cima do carro. Aqueles corpos criaram aquela imagem e ela foi documentada. Nunca imaginei que isso iria acontecer. A ideia era corpos e paisagens e o que nasce disso. Talvez essa impressão venha pela câmera estar bem colocada esteticamente, talvez por aí. A Emelyn amava andar de moto com o pai, então resolvemos filmar aquilo. Não pensei nisso. Acho que tem gente que acredita que documentário precisa ser feio, mal cuidado, precisa ter pessoas falando. Mas, nunca tive esse questionamento, não.


Mas, me corrija se eu estiver errado, você não me parece muito preocupado com essas fronteiras…
Sim, pois a ideia original era ter a câmera DV filmando a parte real. A gente teria uma câmera boa para registrar cenas do livro e mesclaríamos isso tudo. A Julia Lemmertz seria a mãe da Emelyn na ficção, mas também veríamos a mãe dela na realidade. Só que isso nunca foi feito porque não tínhamos necessidade da ficção. Íamos montando enquanto filmávamos e chegamos a conclusão que não precisávamos da ficção. Emelyn era para ser um menino. Fui procurar um menino na cidade em que a trama do diário se passava. Comecei a filmar ela de longe e pensar…”é a figura que quero, essa é a figura que quero”. Fui conversar com essa menina de aparelho, com uma voz esganiçada e que tinha um tique de colocar a língua no nariz, ou seja, já começou aí o descontrole.

 

Li em alguma entrevista que você tinha algo em torno de 300 horas de material bruto…
Na verdade eram 300 de apenas uma câmera, ao todo tínhamos mais de 600 horas de material bruto. Eu filmava, decupava o que gostava e levava para o montador, o Germano de Oliveira.

 

De uns tempos para cá ficaram mais constantes os chamados queer neon, parte de uma estética que muitas vezes serve para aludir a uma fluidez sexual. Isso surgiu de onde no teu filme?
Isso foi uma ideia do Pedro Gossler, o diretor de fotografia, referência a um filme do Tsai Ming-Liang… agora não me lembro qual. Não tínhamos grana para colocar tanta luz, mas aí o Pedro deu a ideia de trazermos coisas coloridas para deixar os quadros mais bonitos. A Sissi surgiu com aquele bambolê, cujas luzes serviam para mostrar uma espécie de desfragmentação que atingia a Emelyn. Por isso de vez em quando ela aparece com as cores nos dedos.

 

Música para Quando as Luzes se Apagam :: “Todo mundo ainda tem uma parte de si para descobrir”, afirma Emelyn Fisher

 


E como foi o trabalho com a Julia Lemmertz, entre tantos corpos, um reconhecível pelo grande público, já que se trata de uma atriz famosa?
Sempre quis trabalhar com a Júlia. A conheci na época do Os Famosos e os Duendes da Morte e a gente se conectou fácil. Minha ideia era para trazer ela como a mãe da ficção. Júlia ficou com a gente duas semanas e isso depois que eu já estava há um ano com os demais. A família da Emelyn me recebeu muito bem. Passei com eles Natal, Ano-Novo, aniversário, filmando tudo. Sempre foram muito legais. Mas, eu continuava sendo um corpo estranho. Imagina, uma família da periferia do interior do Rio Grande do Sul recebendo alguém que deseja fazer um filme. A mãe dela é enfermeira, o pai caminhoneiro, a Emelyn era sapateira na época e a irmã segurança. E eu lá. Foram muito agradáveis. Porém, senti que faltava entrar na intimidade. Aí foi a ideia de a Júlia de abandonar a ficção e ser o corpo íntimo deles, pois esteve muito presente nas novelas que chegavam até àquela família. Todos eles toparam ficar por dois dias num hotel para que a Júlia morasse sozinha na casa por dois dias para se acostumar. Isso eu não faria, a Júlia pôde. A roupa e a maquiagem são da mãe da Emelyn, com quem ela foi trabalhar no hospital. A Júlia viajou de caminhão com o pai da Emelyn. Lá pelo terceiro dia, disse que estava se sentindo íntima do Coutinho, que estava num devir Coutinho. Depois, disse que nunca tinha vivido uma experiência dessas.

 

E como foi entrar nesse universo essencialmente da Emelyn?
A Emelyn não tinha antagonistas. Pensei que uma menina meio masculinizada iria ser cheia de problemas, sofrer bullying na escola. Que nada. Ela tinha uma namorada loira, linda e maravilhosa. Era disputada por mais duas meninas. Cheia de amigos. Os pais a adoravam. A irmã era parecida com ela. Para você ter uma ideia, fomos fazer um jantar na casa da avó, e mesmo essa senhora mais velha não tinha qualquer problema com a neta. Os professores adoravam a Emelyn. Cadê o conflito? Aí entram as imagens alegóricas, a gente traz a Sissi para instigar ela, para leva-la a outros lugares. Na montagem o Lucas vira esse corpo ideal que pode sufocar o desejo dela.

De 2015 para cá muita coisa mudou. O filme estreia num momento em que manifestações agressivas contra a população LGBTQIA+ são estimuladas por alguns abertamente. Você acredita que seu filme tem uma potência de confronto maior do que se tivesse sido lançado há quatro anos?
Acho que a maior loucura (boa) é ver vozes progressistas, da esquerda, se apropriando de demandas que eram apenas do nicho. Quando vem a energia horrorosa, mais gente passa a falar contra o preconceito. Os times de futebol estão botando bandeiras gay, as marcas deixando de patrocinar apresentadores homofóbicos. Não se sustentou o discurso agressivo. Lembro que fizemos uma sessão do filme em Porto Alegre na semana em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente. Era uma tristeza. Imaginamos que essa força negativa fosse enorme, como foi, mas pelo menos eu percebo que ela não se sustentou. Existe muito mais gente defendendo essas bandeiras do que antes. Esse virou o assunto do momento. A força positiva é muito mais forte. Discursos de ódio se corroem sozinhos. Acho maravilhoso que o filme esteja sendo lançado agora, pois ele vem com uma carga político-social que ele não tinha antes. Claro, tinha, mas seria de interesse de um nicho. Pessoas heterossexuais e fora desse mundo entendem ele muito mais hoje.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.