Ailton Graça já foi de tudo nessa vida. Conhecido de norte a sul do Brasil como um dos atores mais versáteis do país, começou sua carreira no circo, como palhaço, e também já atuou como cenógrafo e até bailarino. Antes de entrar no mundo das artes, chegou a ser camelô, feirante, fiscal de ônibus e vendedor de sapatos! Sem nunca desistir, passou em concurso público para trabalhar em um hospital, mas acabou largando tudo em nome de um sonho. A grande chance de estrelato, no entanto, veio apenas após a virada do século, quando conseguiu um papel no elenco-coral de Carandiru (2003), de Hector Babenco. No meio de tanta gente consagrada, como Rodrigo Santoro, Milton Gonçalves, Wagner Moura, Lázaro Ramos e Caio Blat, chamou atenção como Majestade, personagem que lhe rendeu sua primeira indicação ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, como Revelação do ano. A vitória, porém, veio logo depois, como coadjuvante de Contra Todos (2004), de Roberto Moreira. E não parou mais. Nas duas décadas seguintes trabalhou com cineastas como Jorge Furtado, Heitor Dhalia, Daniel Filho, Walter Lima Jr., Jeferson De e Joel Zito Araújo, entre tantos outros. Mas foi na mão de um estreante – o ator Silvio Guindane, agora também cineasta – que assumiu seu maior desafio: o protagonista de Mussum: O Filmis. E foi sobre esse trabalho que o ator conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Ailton, prazer falar contigo. Tu é um cara, como se costuma dizer, “maior do que a vida”, com uma personalidade contagiante. Como foi subtrair isso e deixar que o Mussum aflorasse?
Não tenho a menor ideia. Todo ator tem o seu processo criativo, que é sempre meio maluco. O meu mergulho e o envolvimento com o Mussum tem nove, dez anos. Eu tô nesse processo de imersão há quase uma década, pesquisando, estudando, lendo e vendo tudo a respeito dele, ouvindo Originais do Samba, qualquer notícia. Durante esse tempo, tivemos vários ‘quase’, do tipo “ah, vamos rodar o filme”, e acabava não acontecendo. Dois meses depois, vinha de novo: “agora sai, pode se preparar”, e nada feito. Vários alarmes falsos. O frescor das notícias que rodeavam a história do Mussum é algo que tá comigo desde o começo. Mas, antes disso, preciso confessar: sou mangueirense por causa do Mussum!
Era algo que gostaria, mesmo, de saber: qual a tua relação com o Mussum antes de surgir esse convite?
Quando via os Trapalhões e ouvia ele falando da Mangueira, algumas piadas que soltava dentro do programa, eu, na minha inocência, acreditava que realmente existia um palácio onde quem reinava era a dona Zica e o seu Cartola! Aí falava pra minha família: “vamos pra lá, é terra de preto como a gente”. Minha mãe respondia: “deixa disso, é coisa de samba”, mas na minha cabeça era real. Então, a partir dali, decidi: sou mangueirense. Mesmo morando em São Paulo, tendo uma iniciação no mundo das escolas de samba paulistanas, a Mangueira sempre foi a minha escola. Por causa do Mussum. Agora, em relação a algumas escolhas de vida que tomamos em nossa carreira, óbvio que fui influenciado, lá atrás, pelo Mário Gusmão (1928-1996), por Abdias do Nascimento (1914-2011), muita coisa ligada ao movimento negro, pelo Grande Otelo (1915-1993). Ou seja, tudo isso sempre esteve comigo.
Mas é algo que vem também da tua formação enquanto artista, certo?
Bom, fui palhaço de circo, né? Circo Escola Picadeiro, depois entrei em um processo de pesquisa clownesca por diversos anos – até hoje faço treinamento de clown. Mas o Mussum tinha uma máscara única. O Dedé era o paulistinha, o Didi era o cearense e o Zacarias era o mineirinho. O Mussum, por sua vez, tinha traços do carioca, mas abrasileirou esses contornos de tal forma que rompeu a questão da origem. Era um cara do subúrbio, independente de onde fosse.
Em certo momento do filme, o Chico Anysio diz para ele tirar o chapéu “porque lembra o Zé Carioca”. Essa era a imagem do malandro no exterior, e o Mussum a tornou, de fato, brasileira.
Exato. Era a imagem que eles tinham, quem via de fora. O Mussum, não, ele era um cara raiz. Essa era a visão que tinham da gente, e o Mussum começou a propor, dentro dessa construção do personagem, algo que já tinha na personalidade dele. E isso ganhou o mundo de uma outra maneira. Pra construção desse trabalho, os Originais do Samba talvez tenham sido, dentro do nosso histórico, o mais importante grupo de samba da época. Carregava referências de Cartola, Noel Rosa, muita coisa de Candeia. E tava inaugurando, a partir da influência do Jorge Benjor, uma outra maneira de se fazer samba. O sucesso que alcançaram era gigante. Esse humor, esse jeito de ver a vida, que o Mussum tinha, já vinha desde antes de fazer parte da Escolinha do Professor Raimundo e de ir para os Trapalhões. Era dele. A construção do personagem, em conjunto com o Chico Anysio, coroou quem ele já era. E quanto ao nome, sugerido pelo Grande Otelo, foi aquela coisa: quando você odeia um apelido, é aí mesmo que pega.
A história do Brasil, invariavelmente, é contada pelos brancos. Você acredita que o Mussum foi alguém que conseguiu romper essa barreira?
O Mussum foi de todos, mas dentro da nossa visão de movimento negro, traz uma coisa mega importante: num período pós-ditadura, foi o negro que entrou em todos os lares. Grande Otelo já havia entrado, mais pelo cinema. Mas essa dimensão, primeiro pelos Originais do Samba, depois pela Escolinha do Professor Raimundo, e por fim pelos Trapalhões, nesse período que a nossa história não contemplava os exemplos pretos, ele foi gigante. A missão dele foi muito grande. Hoje, o nosso cinema até tem um ou outro que se destaca. Mas, dentro desse processo escravista, dessa herança maldita, concordo que a história é sempre contada pelo ponto de vista de quem venceu a guerra, mas não de quem está lutando. E por isso que ele foi mega importante.
Qual a explicação para esse apagamento histórico?
É mais fácil a branquitude conhecer quem foi Lima Barreto, Machado de Assis, e embranquecer essas figuras. Puxa, o Machado foi o criador da Academia Brasileira de Letras, e hoje quase não tem preto lá! Mas, enfim, é um processo cruel de tentativa de inviabilizar as pessoas de conhecerem o nosso povo. Então, após passarmos por esse período sombrio da pandemia e desse desgoverno que tivemos nos últimos quatro anos, estamos trazendo o Mussum para resgatar um pouco desta dramédia e para que conheçam outra realidade. No momento em que estávamos nas filmagens, quando fizemos a cena do discurso final, para as crianças da Mangueira, estavam sendo assassinados jovens pretos daquela idade, da idade do Mussunzinho, do Thawan Lucas, ator que faz o Carlinhos, o Mussum quando criança.
Deixa lançar uma provocação. Mussum: O Filmis fala sobre representatividade preta, mas, ao mesmo tempo, tem um roteirista e um produtor brancos. Como foi essa relação?
É a mesma relação que a Disney teve com o Pantera Negra (2018). Foi um filme que ganhou o mundo, foi dirigido por um homem negro, elenco, figurino, toda a pesquisa envolvida, mas o chefe do estúdio era branco. Nós ainda não chegamos nesse lugar de dialogar com quem financia. É um passo de cada vez. E é uma construção longa, que já dura muito tempo. O acesso, agora, dos livros e dos nossos pensadores, está começando a chegar à população, pois até então não se tinha acesso. A nossa teledramaturgia sempre privilegiou o universo branco. É comum as pessoas verem na vida real, na construção social, o porteiro que é negro, o chofer negro. Nem o nosso povo conseguia se ver em uma posição de destaque. O maior intelectual brasileiro, Milton Santos (1926-2001), era negro! E quem sabe – ou lembra – disso?
Mussum: O Filmis foi abraçado no Festival de Gramado 2023, tendo conquistado seis kikitos. Entre eles o de melhor ator, que ficou nas tuas mãos. Como foi essa emoção?
Foi um fato histórico. Sinal de que a gente está tentando e caminhando de forma correta, visando transformar esse em um mundo melhor, e a raiz disso está nessa linguagem. Este é um país que ainda dizima os yanomami, que ainda insiste em fazer que a bala perdida encontre só corpos pretos. A construção é longa. Nunca tivemos um presidente ou uma presidenta preta. Mas estamos caminhando para isso.
Vamos falar do elenco. Você disse em outra ocasião que o Mussum era um personagem “grande demais para apenas um ator”. Como foi essa troca com o Thawan e com o Yuri Marçal?
Isso se deve à condução e da genialidade do Silvinho Guindane. Em todos os laboratórios que fiz, dificilmente fazia o Mussum na minha idade. Ou era na infância, ou na juventude. O Yuri Marçal não fazia ele jovem, era só como criança, ou quando mais velho. Os ensaios eram feitos em cima do personagem do Thawan, ou do meu personagem, por exemplo. O Thawan não fez ele criança, só jovem ou adulto. Entende? Houve um rigor grande. Entre a Cacau Protásio e a Neusa Borges foi a mesma coisa. Uma trabalhava em cima da versão da outra. Houve uma preocupação para que cada um se contaminasse um pouco a partir da leitura e do laboratório do personagem em fases diferentes. Foi algo que insistimos bastante. Nosso trabalho clownesco ajudou também a alcançar o limite da dramédia, feito com essa intenção e em quadros que não condiziam com a idade que cada um iria fazer. A sintonia tinha que ser grande para que funcionasse.
Essa expressão que você usa é bonita e precisa, ao chamar o filme de “dramédia”. Confesso que, quando ouvi pela primeira vez a trilha sonora de abertura do programa dos Trapalhões, eu me emocionei.
Mas eu também! Eu também! Chorava e ria ao mesmo tempo! Tã-tã-tã-rã-tã-tã-tã!
Como dar vida a esse comediante, um cara que fazia o país inteiro rir, mas dando esse toque emotivo? Como encontrar o tom certo?
Vou te contar algo que falamos entre a gente, nós, atores. Encontrar esse limite foi uma das nossas maiores preocupações e uma das grandes riquezas do texto. O Paulo Cursino, nosso roteirista, foi inteligente quando colocou o filme nesse lugar. A escolha desse elenco também foi pensada matematicamente, para que cada um, independente do tamanho do papel, fosse importante o bastante para dar uma garantida. Tinha que ter essa coisa do humor, mas também do drama e da tragédia. Uma das coisas pela qual brigamos, e outro exemplo da genialidade do Silvinho, é que não queríamos colocar cenas dos Trapalhões no filme. Precisávamos construir a nossa cena, como a gente os via. Todas as gags que estão lá são nossas, nós que as idealizamos. Gravamos do nosso jeito, justamente para não ter a questão comparativa. Somos nós, é sobre nós.
Como tá a expectativa de estar estreando, finalmente, nos cinemas, e entregando o filme ao público?
Não tenho a menor ideia. Nem estou dormindo direito. A primeira vez a que assisti ao filme foi em Gramado, e a recepção não poderia ter sido melhor. Tem muita coisa acontecendo. Tô muito feliz, claro. Mas é um filme para o público. Desejamos que grande parte da população, que geralmente não tem acesso a esse tipo de entretenimento, vá aos cinemas. Esse é um filme para ser visto na tela grande, e de forma coletiva!
Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2023