Silvio Guindane, como ele mesmo afirma, nasceu “no cinema”. Ainda criança, estrelou sob o comando de Murilo Salles o aclamado Como Nascem os Anjos (1996), premiado no Brasil e no exterior. Desde então, atuou sob o comando de mestres como Luiz Carlos Lacerda, Cacá Diegues, Sergio Bianchi, Flavio Tambellini, Sandra Werneck, Jeferson De, Sergio Rezende e Daniel Filho, entre muitos outros. Toda essa experiência acumulada ao longo dos anos serviu de base para sua estreia como realizador, e com o pé direito: Mussum: O Filmis foi consagrado com seis kikitos no Festival de Cinema de Gramado deste ano, entre eles os de Melhor Filme pelo Júri Oficial e pelo Júri Popular. Durante sua passagem pela serra gaúcha, o agora realizador conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, e aproveitou para comentar sua relação com o evento, como foi receber esse convite para passar para o outro lado das câmeras e como lidar com a responsabilidade de levar às telas a história de vida do eterno trapalhão. Confira!
Silvio, Mussum: O Filmis foi o grande vencedor do Festival de Gramado. A sua relação com esse evento, no entanto, é mais longa. Tua estreia como ator, Como Nascem os Anjos (1996), lhe rendeu um kikito especial do júri. Como foi voltar, depois de tanto tempo, e agora como realizador?
Ah, é muito emocionante. Foi em Gramado que me vi pela primeira vez na tela grande. Foi, também, quando me dei conta que poderia viver disso, da arte, como ator, e agora como diretor. Ao longo destes quase trinta anos voltei a Gramado com outros filmes, muitos deles também premiados. Trazer meu primeiro longa de ficção como cineasta foi uma grande emoção. Me sinto muito acolhido. A vida é feita de recomeços, de trajetórias, e acho simbólico a primeira exibição para o público de Mussum: O Filmis ter sido em Gramado.
Ailton Graça e Cacau Protásio comentaram sobre os “ensaios trocados”, ou seja, como seus personagens eram interpretados por mais de um ator, eles puderam atuar na posição dos outros. Como foi a preparação do elenco?
Quando topei fazer esse filme, a primeira preocupação que me veio foi sobre como manter a unidade entre essas fases e personagens. Como sou também ator, era minha vontade dar atenção ao desempenho de cada intérprete. Independente de quem tivesse atuando, deveriam todos fazer parte de um todo, deveria ser tudo conciso. Queria que as interpretações fossem construídas de dentro para fora, sem pulos ao longo dessa trajetória do personagem. O Ailton, que é um cara que passou pelo circo, pela música, foi alguém que se colocou logo à disposição, para afinar essa “passada de bastão”. Da mesma forma fazia com os planos, como a gente ia jogar, trazer de uma maneira que não se tornasse meramente estético, firulento, e sim de um modo que contasse uma história e chegasse ao espectador através desses atores para fazer rir e emocionar.
O quanto tu interferiu na escolha do elenco? Chegaste a se envolver nessa questão?
Foram mais de mil testes que fiz com atores de todo o Brasil. Tive liberdade total para a escolha daqueles que considerei serem os melhores para cada papel. Porém, quando cheguei no filme, por exemplo, o Ailton Graça já estava escalado. Obviamente, não reclamei, pois quem mais poderia ser o Mussum? Meu trabalho, então, foi de ensaiar com ele até acharmos o personagem. Mas, no total, são noventa atores, entre elenco principal, coadjuvantes e participações. E ensaiei com todos. Isso me ajudou no processo de preparação, pois essas performances eram algo que fiz questão de me envolver desde o começo. Essa coisa de trocar os atores vem do teatro. Muito do que diz o teu personagem vem do outro. Você descobre se ele é explosivo pela reação que provoca nos demais. Por isso é importante compreender e estudar, e não simplesmente decorar.
Você não era o diretor original. Esse foi um projeto que nasceu com o Roberto Santucci. Como recebeu esse convite para assumir e contar essa história?
Um dia o Beto Santucci me chamou para ir a uma cabine do filme que ele tava lançando naquela época. Era às nove da manhã, e quando cheguei, logo me disse: “você vai almoçar comigo depois”. Fiquei pensando: “será que ele tá com algum problema?”. Fiquei preocupado, mas quando, enfim, sentamos para conversar, falou: “hoje é um grande dia”, e contou tudo. “Não vou dirigir o filme do Mussum. Quem tem que fazer isso é você. A gente precisa de um olhar de dentro, e você está pronto para assumir essa tarefa. Não só por ser negro, mas por ser uma pessoa do cinema, que nasceu nesse meio. É alguém que tem esse olhar. Não é pra mim, não vou fazer, e não aceito “não” como resposta”. E eu falei “sim” na hora (risos).
Qual a tua relação com o Mussum?
De fã, né? Muito admirador. Assisti a todos os filmes, marcou minha infância. E o programa de televisão, via sempre. Era o grande comediante brasileiro. Gostava também dos Originais do Samba. E quando veio esse convite, foi a oportunidade para dar um mergulho mais intenso na vida dele. Foi quando percebemos que o mote era a relação dele com a mãe. É o que reflete a maioria das histórias das mães e filhos brasileiros, as “pães”, mães que são também pais, pela falta da figura masculina. Essa mulher pobre que cria o filho e, daqui a pouco, se torna pai da própria mãe. Como construir essa história de amor sem cair na autopiedade, que era a minha maior preocupação? Com humor. Trazendo esses elementos e personagens com a alegria de viver e com a garra que tinham. Quem faz o preto de coitado é o branco. Quem filma o preto como sofredor é o branco. A gente não se acha coitadinho. Cinema de autopiedade é completamente olhado de fora pra dentro. O humor, a festa, o atravessar pelas dificuldades, o sucesso, a alegria e os dramas e as questões que eles passam. Queria falar de dois seres humanos dentro da realidade brasileira, desse amor de mãe e filho.
A questão da representatividade vem junto com um filme como Mussum: O Filmis. Como foi lidar com essa responsabilidade?
É um desafio gigante. Mas, ao mesmo tempo, prazeroso. O cinema me deu de presente esse personagem e esse filme. É preciso ter mais heróis pretos como o Mussum, como o Zumbi dos Palmares, como o Grande Otelo, como o Cartola, pessoas extremamente importantes que passaram pelo nosso país. Eles merecem estar nas nossas telas. Então, se tive essa oportunidade de lidar com essa missão e fazendo o que mais amo, tinha que ir em frente. Civicamente, como pessoa, tenho meus pensamentos, mas não sei explodir banco, ou quebrar tudo. Não consigo ser radical. Nasci no cinema. Com doze anos já estava dentro de um set. O que sei fazer é isso. Portanto, a forma que tenho que propor esse debate e colocar essa visão é filmando.
Como é o Silvio enquanto realizador? Está satisfeito com o filme, ou fica pensando em mudar isso, refazer aquilo?
Sempre tem algo que a gente gostaria de ter feito diferente, mas não sofro, não. Depois que o filme tá pronto, não é mais meu, é do público. O cineasta nada mais é do que o maestro de grandes talentos, e precisa ter a consciência da responsabilidade de que aquilo que está fazendo é para o espectador. Faz para as pessoas. Comunicar, fazer rir, chorar, se divertir, é uma dádiva e uma responsabilidade muito grande. A arte pode movimentar uma vida, propor sonhos, reflexões sobre as atitudes do dia a dia, e pode inspirar e sacudir corações e cabeças. Assim como fez comigo.
Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2023