Entre os destaques do 2º Festival de Cinema Russo, em formato online e gratuito, encontra-se o ótimo Na Ponta (2020), drama de Eduard Bordukov que retrata o universo da esgrima feminina. A história se baseia na conquista recente da equipe russa nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, quando superaram as favoritas coreanas e francesas, mesmo tenho uma atleta novata, recém-recuperada de uma lesão grave.
A jovem Stasya Miloslavskaya, atriz que tem despontado no cinema russo, interpreta precisamente esta novata. Ela encarna Kira Egorova, garota rebelde cujo talento é acompanhado por uma rebeldia difícil de controlar. Dentro da própria equipe, ela precisa enfrentar a favorita Aleksandra Pokrovskaya (Svetlana Khodchenkova) para conquistar uma vaga nos Jogos Olímpicos, além do machismo do treinador Gavrilov (Sergey Puskepalis), que duvida de sua capacidade de amadurecer até a disputa internacional. Fora dos ginásios, enfrenta a aproximação indesejada do pai, com quem tem um relação conflituosa. Leia a nossa crítica.
O Papo de Cinema conversou com Miloslavskaya sobre o projeto:
Que familiaridade e interesse você já tinha pela esgrima antes do filme?
Para falar a verdade, eu não gostava de esgrima antes. Quando estudava no Instituto Teatral, eu era obrigada a fazer aulas de esgrima e não gostava nem um pouco. Apenas um ano depois de me formar, li o roteiro e vi que a protagonista era uma esgrimista de sabre. Para mim, isso representou um desafio, uma segunda oportunidade para fazer as pazes com este esporte. Eu aceitei, e até no final, gostei. No entanto, para mim, o mais importante neste contexto não era a temática esportiva, e sim a discussão sobre mulheres fortes e a luta de uma pessoa consigo própria para superar suas limitações.
Como se preparou fisicamente para representar uma atleta profissional?
Eu tive quase três meses de treinamento com os professores e com profissionais do sabre, além dos técnicos de efeitos especiais. Fizemos vários testes e desenhamos combinações de movimentos para cada cena do filme. Preparamos os efeitos com antecedência, criando uma espécie de coreografia, de balé. Era importante ter uma preparação rígida para garantir que eu não terminasse me matando, nem matando as colegas em cena! Era importante que as cenas de esgrima fossem bem preparadas.
Sentiu uma pressão específica por interpretar atletas reais? Chegou a conversar com elas?
Na verdade, as atletas até riram de mim, porque sou muito magra, então precisamos criar a impressão de que eu era mais forte e corpulenta para soar convincente no papel. Eu precisei ganhar um pouco de massa! Em geral, os atletas profissionais que trabalharam conosco nos apoiavam bastante, e gostei que a comunidade profissional de esgrimistas ficou muito feliz com o resultado. Depois da sessão, eles vieram nos dizer que as cenas de combate pareceram bastante realistas. Esse é o maior elogio que eu poderia escutar.
Como descreveria o relacionamento completo de Kira com o pai e com Pokrovskaya?
É um relacionamento do ódio ao amor, se você estiver falando dos sentimentos da minha personagem. Mas falando do que eu, Stasya, sinto por eles, tenho que confessar que não gostava muito da minha própria personagem no começo. Kira até me irritava um pouco a princípio, porque ela é insolente, e nutre uma série de relacionamentos tóxicos. Mas o filme dá para entender que o caráter agressivo dela corresponde a um mecanismo de defesa para a falta de amor materno que marcou sua infância. Passei a sentir certa piedade e compaixão por ela. Sobre Pokrovskaya, adoro esta personagem, tenho sentimentos apenas positivos por ela.
Para as duas personagens principais, o esporte é muito mais importante do que os relacionamentos amorosos e familiares. Como enxerga este retrato feminino?
Acredito que, para todo esportista profissional, essa dedicação funciona da mesma maneira. Isso não tem sexo: todo esportista de elite, seja homem ou mulher, pelo menos aqui na Rússia, tem essa filosofia de que o esporte é a vida, e os demais aspectos ficam em segundo lugar. Pode ser esgrima, patinação artística, ou qualquer outra modalidade. Para eles, o mais importante são as conquistas no esporte. Sobre a questão das mulheres fortes, fico contente que já se fale das mulheres autônomas e independentes, não apenas os homens fortes em posição de liderança. Essa é uma tendência que ocorre no mundo inteiro, não apenas na Rússia.
Inclusive, Kira tem uma cena muito forte, quando sofre uma tentativa de abuso sexual numa festa.
Fico feliz que tenha prestado atenção a essa cena. É claro que esta cena de abuso é muito forte, e ela representa algo que infelizmente ocorre em todas as partes do mundo, ainda nos tempos de hoje. Nem todas as meninas saberiam o que fazer neste caso, ou seja, como se proteger, como reagir. Nem sempre elas têm força suficiente para responder à altura. Minha personagem é uma exceção: ela tinha força e conhecimentos necessários para rebater, porque essas habilidades vêm da esgrima.
Como o filme foi recebido na Rússia? Produções de temática esportiva são populares em seu país?
O filme foi lançado numa época complicada, bem difícil para todos. Estava acabando a primeira onda da pandemia, na primavera. Todas as pessoas seguiam fechadas em casa, e quase ninguém frequentava os cinemas ainda abertos – algo compreensível, diga-se de passagem. Muitas delas foram perdendo o costume de frequentar as salas. Começou então a onda cada vez mais forte de conteúdos divulgados em plataformas online. Muito conteúdo bom é feito para essas plataformas, aliás. Por isso, nosso filme não obteve números expressivos em salas de cinema, mas conseguiu atenção muito maior através do formato virtual. Na Ponta foi vendido para diversos países, e até hoje recebo retornos sobre o filme. As impressões foram neutras ou positivas – sinceramente, não escutei nenhuma reação negativa. É claro que nem todo mundo se envolve: filmes de esporte não são para todos, e uma parte dos espectadores sequer entende o que seria o universo da esgrima feminina. Mas muitas opiniões foram bastante positivas.
Qual é a importância de ter um filme representando a cultura, esporte e língua russos chegando a um país que raramente recebe títulos do país, como o Brasil?
Isso é tudo o que podemos fazer agora: transmitir nossos filmes da melhor forma possível, seja presencialmente ou online. Nossos filmes, e nossa cultura em geral, o que inclui a música, o teatro e as questões importante à sociedade russa contemporânea, chegam a outros públicos especialmente por meios virtuais hoje em dia. Por isso, considero o festival online como uma ótima oportunidade. No final, acredito que Na Ponta tenha a capacidade de dialoga com o público de qualquer país do mundo. Para o cinema russo, é fundamental que as obras saiam do país, para que o público internacional nos conheça melhor, e saiba que não somos apenas pessoas que vivem no frio, entre ursos. Temos uma cultura rica, e temos muito a compartilhar! O festival cria essa possibilidade de compartilhamento e comunhão. Fico muito feliz por isso.
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