Mesmo num festival tradicional como o de Brasília, a passagem de Cauã Reymond causou alvoroço. Nenhum outro artista presente na histórica 50ª edição, realizada em setembro passado, provocou aglomeração na porta dos hotéis, excetuando-se ele. Muitos de seus 37 anos foram dedicados à atuação, seja nas novelas, produtos para as massas, ou em filmes menores, nos quais, segundo Cauã, o que o atrai é o risco e a possibilidade de afugentar a acomodação. Em Não Devore Meu Coração (2017) ele interpreta Fernando, o protagonista acossado por uma inquietude existencial na fronteira mítica entre Brasil e Paraguai. Desempenhando, também, a função de produtor, Cauã novamente oferece seu aparato midiático, oriundo dos trabalhos mais populares, para dar visibilidade a uma produção menor no que tange à escala e mesmo à ambição de arrecadação. Nesse bate-papo exclusivo, o simpático e solícito ator nos contou um pouco mais sobre o longa-metragem de Felipe Bragança, bem como acerca do que o move como artista. Confira e não deixe de comentar.
No filme, ao cruzar certas fronteiras, seu personagem vai sendo tomado por uma agressividade crescente. Como foi construir esse estado de espírito?
Adorei o que você falou sobre cruzar certas fronteiras. É verdade, ele cruza fronteiras que o levam àquele final. Acredito que uma das coisas mais interessantes do Fernando seja essa necessidade de buscar ser amado. Aliás, é um dos assuntos sobres os quais quase não falei antes, mais que fui entendendo cada vez mais, inclusive a partir da opinião das pessoas. O quanto a busca por ser esse macho, principalmente o macho que a região exige, que o pai exige, e que eles exigem, o leva a cruzar essas fronteiras. Ele se comunica com esse homem de hoje em dia, que não sabe direito o lugar a ocupar, e que vai ocupando lugares porque dizem a ele ser necessário, embora isso não o leve à felicidade. Fernando é uma pessoa que procura aceitação. Fazer parte de uma gangue é um indício de que você precisa de outras pessoas para se sentir confortável dentro da sua individualidade. Quando ele perde uma referência, com quem ele tem uma relação sensual, embora eu não a ache sexual, e de admiração, o pai o toma de tal forma que ele não tem mais um ponto de equilíbrio, até por não conseguir discernir a postura da mãe. Aliás, a mãe é uma onça ferida, que sabe o que quer, uma lutadora, mas incapaz de dar continuidade à defesa de sua prole.
O Fernando tem, ao mesmo tempo, dificuldade de ocupar os espaços pré-determinados e de encontrar os próprios espaços…
Ele não entra nos lugares com harmonia. Entra com culpa. Ele já é um homem, mas é quase um adolescente por dentro. Todavia, em determinadas situações preenche, de fato, um lugar de homem, especialmente frente a essa mãe que não cuida da casa, que não cumpre os horários como ele acha que ela deveria, que o machismo dele prega. Essa mãe não sabe direito quem ser nesse lugar tão machista, que é a fronteira brasileira. Já na fronteira paraguaia, nós temos a Basano, a mulher paraguaia com muita autoridade. Essas mulheres ocuparam os espaços quando os homens foram mortos na Guerra do Paraguai. Fernando permanece no lugar de inquietação em que ele não tem felicidade, onde ele não encontra paz.
Para ele, parece impossível encontrar um lugar de plena felicidade…
Realmente impossível, não está no DNA dele se tornar o líder que o pai e que o Telecatch (espécie de mentor do protagonista) queriam que ele fosse. Ele não pode ocupar esse espaço.
Fora a vontade de trabalhar com o Felipe Bragança, especificamente ao ler o roteiro, o que mais te levou a aceitar este papel?
Em primeiro lugar, o personagem me interessou, porque fui convidado há muitos anos. Então, era um tipo figura que eu não vinha tendo acesso, me proporcionava nuances e possibilidades que os personagens que eu fazia na época não tinham. Em segundo lugar, o universo, que é completamente diferente. Em terceiro lugar, me interesso muito por com quem eu vou trabalhar. Me interessei pela ambição do Felipe de conquistar um lugar como diretor, e ele tinha muito êxito com os roteiros e os primeiros longas-metragens, exibidos em importantes festivais internacionais. Ele falou que gostaria de fazer um filme com uma dramaturgia mais clássica, embora fabular. Aquilo me instigou, mesmo porque eu não sabia como trabalhar num lugar tão de fábula assim, sem uma dramaturgia que tivesse conflitos tão bem definidos. Quando ele me convidou dessa forma e, ao mesmo tempo, disse que iria utilizar um lugar poético, bonito, que falaríamos sobre assuntos delicados, especialmente a questão do genocídio indígena, com um personagem que subverte o lugar do mocinho de novela, entrei na hora.
Chama atenção o fato de constantemente você utilizar o seu aparato midiático para alavancar filmes pequenos, dando maior visibilidade a eles…
Olha, faço isso pelos meus filmes e pelos dos amigos. Também utilizo as minhas redes sociais para divulgar projetos que não são meus, sem algo a ver comigo. Tenho um projeto com a Laís Bodanzky. Estou produzindo Dom Pedro I para ela dirigir, mas, de qualquer maneira, Como Nossos Pais (2017) é um filmaço, então fiz isso. Li o roteiro e vi um corte prévio. Aliás, ela foi muito bacana comigo, de querer ouvir o que eu tinha a dizer sobre os atores com os quais ela estava pensando em trabalhar. Interesso-me realmente por isso. Essa máquina midiática está à minha disposição, mas tenho consciência também de poder auxiliar os colegas e tentar aumentar essa exposição. Não sei se é muito, mas se eu conseguir, com um post no Instagram ou no Facebook, publicando as matérias, compartilhando um teaser, levar 100 pessoas à sala de cinema, fico muito feliz.
No patamar que você alcançou, em termos de visibilidade, seria muito mais fácil não correr riscos, certo?
E qual seria a graça? (risos)
Por isso você se arrisca?
Não tem graça sem risco. Sem ele, vou me tornar um cara desinteressante para mim mesmo. Há pouco tempo tive de escolher entre dois trabalhos. Optei justamente por aquele que me deu frio na barriga. Não dormi a noite toda por conta dessa escolha. Fui cochilar, sei lá, umas 4 horas da manhã, de excitação. Escolhi o que me desafiava mais, o que me levava a um lugar longe da acomodação. Ficar acomodado, para mim, é irreal, não existe essa possibilidade. Sempre fui inquieto. A novela é um produto comercial que eu gosto, porque se comunica com um grande público, e isso é muito legal, é entretenimento. Aliás, sou a favor do entretenimento comercial. Mas me interesso pelo cinema de arte, ele também está na minha veia. Durante 15 anos eu saía de uma novela para fazer um filme de arte. Só fiz dois filmes comerciais. Um foi o Divã (2009) e agora que filmei A Dupla com a Tatá Werneck. E, provavelmente, não vai vir outro filme comercial tão cedo. Vou continuar investindo nesse cinema de arte, porque ele fala sobre assuntos que me instigam durante anos. Alguns grandes atores não entravam na televisão e isso mudou, graças a Deus. Os profissionais estão se misturando e isso é ótimo. Contudo, durante muito tempo eu queria conhecer os métodos desses caras que eu só via no cinema e não encontrava na televisão. Aprendi muito no set então não vou deixar de ter essa troca e me enriquecer como artista. Vou me construindo a cada projeto. Deles, você sai melhor ator.
Pensa em escrever e dirigir, ou seja, experimentar outras instâncias da criação?
Uma das coisas que me ajudam nessa caminhada humilde e curta como coprodutor ou produtor associado dos projetos é que fui entendendo mais a engrenagem do processo inteiro. Hoje, me sinto mais culto. Também sei que, mesmo depois de aprender tudo isso e entender melhor a engrenagem, talvez até me sentir capaz de colocar uma câmera e conversar com um ator…concordo com o Rainer Maria Rilke, no Cartas a um Jovem Poeta, ele diz, mais ou menos, que há de se escrever um poema ou contar uma história que não se consiga não contar vivo. Se essa história não chegar, não sei se exerceria essas outras funções. Vai ter de partir de uma necessidade. Por enquanto, vou me apaixonado pelas histórias dos outros. Apaixonei-me pela obra do Felipe, por exemplo, pelo êxito dele como roteirista e diretor, pelo sonho dele, então se for contar uma história como diretor, duvido muito como roteirista – às vezes penso que teria feito certa cenas diferentes, tenho os meus pitacos para dar – mas eu gostaria de fazer uma coisa sem a qual eu não poderia passar por essa vida.
E o Piedade, do Cláudio Assis?
É muito legal. Interpreto um homossexual, pai de um filho e dono de um cinema gay. Passei por um pequeno processo de envelhecimento. Tenho 37 anos, meu personagem deve ter uns 42. Ele descobre ser o filho perdido da personagem da Fernanda Montenegro, tem um caso amoroso e sexual com o personagem do Matheus Nachtergaele e é irmão do personagem de Irandhir Santos. O roteiro tem cenas de sete páginas, feitas em plano-sequência. Estou bastante curioso. É muito legal filmar com o Cláudio Assis. Ele já havia me sondado para um projeto, mas acabou não rolando. Mas o desejo de trabalhar com ele permanecia. Um dia, eu estava em Portugal, vendo locação para Dom Pedro I, conhecendo o Palácio de Queluz, e aí toca o telefone: Alô, alô é Cauã? (imitando Cláudio Assis) / É, sim. /Aqui é Cláudio Assis, o Claudão. E aí meu irmão, quer filmar comigo, porra? / Quero. / Mas tu quer, mesmo? Não vou te dar roteiro para ler, não. / Quero, claro. / Então tá bom, quando tiver o roteiro pronto a gente conversa. (risos). Eu nem sabia que tinha esse grande elenco. Mais um desafio. Foi bem legal. A gente tem essa impressão do Cláudio, esse cara vermelho, amarelo – a gente precisa definir logo com cores (risos). Ele é muito delicado no set, possui uma intuição muito forte, sabe o que quer, o que dizer para o ator. Vi ele dirigindo a Fernandona com autoridade, sem exercer esse poder do diretor, sem se exibir. Muito legal. Aliás a Fernandona é uma das maiores artistas vivas do mundo. Óbvio que ela quer ser dirigida, ter outro olhar sobre o trabalho dela.
Cauã, qual é o lado ruim de ser uma celebridade?
A perda da privacidade. Mas tem um lado positivo. Como falamos antes, isso ajuda a promover os filmes. Cruzei essa fronteira, não tem como voltar mais atrás. Então, para que ficar olhando para trás? Vamos olhar para frente. Perco de um lado, mas ganho de outro. Fico mais preocupado com a minha filha, que cruzou essa fronteira sem ter feito qualquer escolha. Ela é minha filha e da Grazi (Massafera), que é uma grande atriz, uma mulher muito bonita. Então, essa é minha preocupação. Quanto a mim, passei da fase de ficar olhando para trás, quero olhar só para frente.
(Entrevista concedida em setembro de 2017, ao vivo, durante o Festival de Brasília)