Nascida em Jerusalém em 1955, Michal Aviad é hoje um dos principais nomes do cinema israelense contemporâneo. Após se formar em Literatura e Filosofia na Universidade de Tel Aviv, foi para os Estados Unidos, onde fez mestrado em Cinema na Universidade de São Francisco. Durante os anos 1980, trabalhou na indústria norte-americana, onde acabou estreando como cineasta com o documentário Acting Our Age (1988), selecionado para o Festival de Sundance. Mesmo com uma recepção positiva, preferiu fazer as malas e voltar para casa. Uma vez em Israel, seguiu atuando por trás das câmeras, como diretora e roteirista. Outros documentários e trabalhos na televisão se seguiram, até o primeiro longa de ficção, Lo Roim Alaich (2011), premiado no Festival de Berlim. Agora, está de volta debatendo a condição feminina em Não Mexa Com Ela (2018), que estreou na última semana no Brasil. Aproveitando a oportunidade, conversamos com exclusividade com a realizadora, que nos falou com mais detalhes sobre o projeto. Confira!
Olá, Michal. O seu filme, no Brasil, recebeu o título Não Mexa Com Ela. O que você acha disso?
Pois então, é interessante, não? Mas também um pouco confuso, pois passa a ideia de vingança, e o filme não é sobre isso. Não sei porque o batizaram desse jeito no Brasil. Nos Estados Unidos, se chama Working Woman (Mulher que Trabalha, em tradução direta), e no resto do mundo foi mais ou menos nessa linha. Em português, no entanto, ficou diferente. Afinal, não quero falar sobre vingança com este trabalho. É quase um senso comum que, quando há alguma forma de abuso sexual, a mulher precisa se vingar. Até porque as mulheres estão acostumadas a não reclamar, por não terem chances de fazerem isso, e se veem obrigadas a ter que lidar com seus sentimentos por conta própria.
Exato. Um título como o brasileiro passa a impressão de que iremos nos deparar com uma trama mais aos moldes de Hollywood, o que não vem a ser o caso…
É uma estratégia de marketing, e isso entendo. Querem capturar a atenção das pessoas, para que assistam ao filme. E se isso acontecer, será bom, porque encontrarão algo diferente do imaginado.
Isso é verdade. Indo contra as expectativas, oferece a oportunidade de gerar uma boa surpresa entre o público brasileiro.
Exatamente. Não posso dizer que escolheram esse título por causa disso, até porque não tive a menor ingerência nessa decisão, não cheguei a ser consultada. Mas não acho que tenha sido uma má opção.
Como você acha que Não Mexa Com Ela pode contribuir com um debate como o do movimento #MeToo?
Antes de mais nada, gostaria de esclar que comecei a trabalhar nesse projeto muito antes do movimento #MeToo ganhar força e ocupar os noticiários. Ninguém falava sobre isso na época. Estávamos no meio do roteiro, para teres uma ideia, quando saiu a primeira notícia sobre as acusações contra Harvey Weinstein. Tínhamos tudo mais ou menos concebido, sobre o que queríamos falar com essa obra, então não posso dizer que fomos influenciados pelo que estava acontecendo a esse respeito. O filme não é sobre o movimento #MeToo. Não é sobre essas mulheres que encontraram suas vozes e passaram a ocupar os holofotes com essas denúncias, em busca de justiça. É sobre o outro lado da questão, sobre as anônimas, aquelas que ninguém conhece e seguem estranhas ao grande público. São mulheres que existem aqui em Israel e tenho certeza que também no Rio de Janeiro, em São Paulo e no mundo todo. São milhares que precisam lidar com essa questão dia sim, dia não.
Uma questão importante no filme é a comunicação. O marido diz para a protagonista num momento: “por que você não me contou?”. E há outras situações que poderiam ter sido resolvidas se os personagens conversassem entre si. Você concorda?
Sim, e não também. Veja só, nessa situação específica que você cita, simplesmente não haveria como ela se abrir com o marido. Acredito que tanto em Israel quanto no Brasil vivemos no mesmo tipo de cultura, e há um padrão a ser seguido de que são os homens que devem proteger suas mulheres, e qualquer movimento em contrário machucaria os sentimentos dos envolvidos. Se contasse para ele logo após o ocorrido, quais as chances dele achar que ela teria uma parcela de culpa no episódio? É complicado. Que é, mais ou menos, o que acaba acontecendo quando, finalmente, ela revela o que estava acontecendo. Enfim, não acho que seja apenas uma questão de falta de comunicação. Não bastaria falar para que tudo se resolvesse. Mas ter um melhor diálogo entre eles é algo que poderia ajudar, com certeza.
Qual é o debate que não pode ser ignorado, portanto?
O grande problema está no chefe, que acredita que a posição de poder dele lhe permite tratá-la como se fosse menos do que um ser humano. Se por um lado aprecia o trabalho dela e valoriza suas conquistas, por outro acaba por tratá-la como se fosse sua propriedade. O problema não é falar ou não, afinal, ela diz com todas as letras para o patrão que não deseja os avanços dele. Toda vez que ele se aproxima, que cruza a linha apropriada, ela o recusa, deixando claro que deseja apenas uma relação profissional com ele. Pode até admirá-lo, enquanto mentor e homem de negócios, mas isso não quer dizer que deseja dormir com ele – o que não quer, e é bastante óbvio. O problema não é por ela não falar – é por ele não escutar.
Você diria que o seu cinema é feminino?
Acho, sob vários aspectos, que sim. Não diria que homens não possam fazer um cinema que respeita e aprecia o olhar feminino. É claro que podem, e alguns o fazem. Mas o que penso é que, ao menos no meu modo de fazer cinema, há esse esforço por privilegiar o ponto de vista da mulher. Mais do que isso, é um cinema sobre sentimentos. Veja bem, muitos dos que trabalham nos meus filmes são homens. Então é preciso ter essa sensibilidade. Outra coisa que me preocupa é em não explorar o corpo feminino em cena pela simples satisfação do olhar masculino. Nunca é gratuito ou sensacionalista, como muitos fazem em relação à violência, por exemplo. Neste sentido, realmente tento fazer um cinema que é diferente da maioria.
Como é desenvolver esse tipo de ponto de vista em um país como Israel?
Olha, vou te dizer que imagino que seja mais ou menos como deve ser no Brasil. Não vejo muitas diferenças entre as nossas realidades. Em comparação, também creio que há menos diretoras do que diretores no cinema brasileiro. Em Israel é a mesma coisa. Ao menos o que percebo em Israel – e não sei como é no Brasil – é que há uma vontade política e social de se valorizar esse tipo de iniciativa. Veja bem, Não Mexa Com Ela acaba de ser indicado em cinco categorias à premiação da Academia de Cinema de Israel, inclusive a Melhor Filme! Se ganharmos, estaremos pré-qualificados para disputar uma indicação ao Oscar. Porém, dos cinco longas indicados na categoria principal, esse é o único dirigido por uma mulher. É ainda, portanto, algo raro, e quando acontece, é visto como um fenômeno.
Você morou e estudou cinema nos Estados Unidos. Por que decidiu voltar para Israel?
Família, língua, cultura. Tudo acabou pesando. Meu ex-marido – marido na época – e meus filhos, os meus pais, todos queriam que eu voltasse, e levei em consideração. Sou muito envolvida com a cultura israelense, e tenho uma postura crítica em relação ao que acontece ao meu redor, politicamente falando. Aqui, tenho a oportunidade de fazer filmes na minha própria língua, tratando de assuntos que me interessam pessoalmente.
Você chegou a fazer um filme nos Estados Unidos. A experiência foi boa ou algo que não deseja repetir?
Sim, um documentário. Foi maravilhoso. Morava no norte da Califórnia, na época, em São Francisco. Ou seja, não foi em Hollywood. Muito pelo contrário, aliás. Foi numa comunidade alternativa, e os filmes que fiz lá eram bastante pessoais. Tanto que, quando decidi voltar para Israel, segui fazendo o mesmo tipo de cinema. Nunca fiz parte do mainstream, seja nos Estados Unidos ou em Israel. Aliás, há até mais vantagens, ao menos para mim, para filmar aqui, porque há como encontrar apoio e investidores interessados em promover esse tipo de debate, ligado à cultura israelense.
Não Mexa Com Ela é o seu segundo trabalho de ficção, mas você fez vários documentários antes. Em qual ambiente se sente mais confortável?
Acima de tudo, o cinema que faço é realista. Ou seja, a escolha entre documentário ou ficção é apenas uma parte do processo, pois sempre irei falar sobre assuntos do dia a dia. O que aconteceu foi que, neste filme, percebi que a ficção se adaptaria melhor, pois não haveria como seguir uma mulher e simplesmente aguardar até o momento em que ela sofresse algum tipo de abuso sexual em um ambiente de trabalho. O meu interesse, afinal, estava na experiência dela, e em como ela reage ao que lhe acontece. Por isso essa escolha. E, num olhar mais apurado, até o documentário é uma forma de ficção, pois uma vez que a câmera está ligada, há sempre a interferência. A verdade também está na ficção.
Não Mexa Com Ela teve sua primeira exibição no Festival de Toronto. Como foi a recepção por lá? E no lançamento em Israel, como o público reagiu?
O filme primeiro passou em Toronto, no final do ano passado, e depois estreou nos cinemas norte-americanos, em março e abril desse ano. Confesso que estava com um pouco de receio, pois temia que talvez não entendessem bem o que estava querendo dizer, mas foi uma surpresa quando descobri que a maioria das críticas eram fantásticas. No site Rotten Tomatoes estamos com 97% de aprovação, o que é incrível. Depois, na estreia na França, o mesmo se repetiu. As pessoas demonstravam interesse em assistir. Somente agora é que chegou aos cinemas israelenses, está em cartaz há seis semanas. O que tenho visto é muita gente falando a respeito, tem gerado um debate bem interessante. Recebo, também, muitas mensagens, de centenas – literalmente, centenas – de pessoas falando sobre o que sentiram com o filme, e não só mulheres, mas também homens. Eles tem me contado como se sentem diante dessa história, muitos afirmando que, pela primeira vez, conseguem compreender o que ‘abuso sexual’ realmente significa, e sobre tudo que essa questão aborda. É bom que isso esteja acontecendo, pois essa relação precisa mudar. Afinal, se não houver uma mudança, homens e mulheres não poderão mais trabalhar juntos, e queremos estar ao lado deles. Tanto o homem quanto a mulher precisam mudar, e é isso que quero dizer com esse filme. Sempre que for possível discutir a respeito, pode ter certeza que estarei feliz.
Você já esteve no Brasil? O que conhece sobre o cinema brasileiro?
Sim, estive no Festival do Rio com o meu longa anterior, Dimona Twist (2016). Rio de Janeiro é uma cidade incrível. Sobre o cinema, sei que já vi alguns, mas não sou boa em lembrar nomes. O que tenho certeza é que foram bons filmes (risos). Adoraria ir ao Brasil de novo, no entanto. É um país muito grande, um verdadeiro continente. Tenho certeza que há muito o que conhecer por aí. São muitas culturas, e isso sempre é interessante.
Não Mexa Com Ela é o primeiro filme seu a ser lançado comercialmente no Brasil. Aliás, não vemos muitas produções de Israel em nossos cinemas.
Creio que isso está acontecendo porque trata de um tema de relevância internacional. A trama se passa em Israel, mas poderia ser em qualquer parte do mundo. Com certeza, se fosse falado em português e ambientado aí na sua cidade, não soaria nem um pouco estranho. Todo mundo pode entender do que estamos falando.
Como você espera que os brasileiros reajam ao filme?
Não sei. Desconheço como essa discussão do #MeToo ou a questão do abuso sexual vem sendo tratada no Brasil. No entanto, mesmo sem entender toda a complexidade de como o tema é visto por aí, não tenho dúvidas de que não deve ser muito diferente do meu país. Basicamente, no que diz respeito às relações entre homens e mulheres, vivemos sob o mesmo tipo de cultura. Por isso, torço para que tenhamos o melhor tipo possível de reações. E, se isso se concretizar, talvez faça o meu próximo filme aí no Brasil. Tenho até algumas ideias a respeito, quem sabe?
(Entrevista feita por Skype na conexão Brasil / Israel em julho de 2019)
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