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Nardjes A.: “Existe na Argélia algo que falta ao Brasil: a sensação de que os jovens farão a nova política”, afirma Karim Aïnouz

Publicado por
Bruno Carmelo

“Ele exibiu quase todos os seus filmes aqui no festival, é praticamente um membro da Berlinale”. Ao apresentar o novo filme de Karim Aïnouz, Nardjes A. (2020), na 70ª edição do festival, a diretora artística da mostra Panorama não poupou elogios ao diretor cearense de origem argelina, que retornou ao país de seus avós para descobrir um vigoroso movimento popular tomando as ruas de Argel.

Assim, enquanto preparava outro filme, Aïnouz decidiu acompanhar os protestos contra o presidente argelino. Munido de um telefone celular e conduzido pela manifestante Nardjès A., ele retratou um dia de protestos. O que as pessoas desejam? Contra o que estão lutando? O resultado é um documentário ao mesmo tempo íntimo e coletivo, no qual o brasileiro enxerga o país estrangeiro pelos olhos de uma jovem cidadã local. O Papo de Cinema conversou com ambos durante a 70ª Berlinale:

 

Karim Aïnouz e Nardjès A. Foto: Berlinale / Divulgação

 

O filme aborda um dia na vida de Nardjès. Por que escolheram este dia em especial? Ele é representativo de todos os outros?
Karim Aïnouz: Na verdade, foi um acidente. Eu cheguei na Argélia pela primeira vez na minha vida em 14 de fevereiro de 2019. Eu lembro que, pouco antes do primeiro dia de manifestações, na sexta-feira dia 22, eu estava junto de um membro da equipe. Eu tinha ido até o país para fazer outro filme, e tinha alguém que me acompanhava havia uma semana, em função deste outro filme. Fiquei impressionado com a quantidade de pessoas que saíram nas ruas de maneira espontânea. Foi a primeira vez que houve um protesto deste tamanho na Argélia. Neste dia eu não participei, apenas assisti de longe. Em 1 de março, quando eles se reuniram pela segunda vez, eu entrei na multidão.

Foi emocionante, como um sonho. Teria sido lindo se algo assim acontecesse no Brasil. Eu não estava no Brasil em 2013, e apenas acompanhei as manifestações da época pela Internet e pela televisão. Mas desta vez, eu tinha a certeza de presenciar algo muito importante. A Argélia lutou bastante contra a colonização francesa no passado, para chegar onde está hoje. Eu me disse então que precisaria, de certo modo, que isso fizesse parte do filme que eu já estava preparando. Filmei um pouco com uma câmera, mas logo me aconselharam a não fazer isso, porque o governo não queria que essas imagens saíssem na televisão, nem em veículos estrangeiros. No terceiro fim de semana de protestos, resolvi filmar mesmo sem permissão. Assim começou, no terceiro dia de protestos que coincidia com o Dia Internacional das Mulheres.

Pensei que seria importante ter um documento do que acontecia na Argélia no momento. Era fundamental ser contado pelo ponto de vista de uma mulher, ao invés de um homem. Honestamente, no início, eu não sabia se deveria ser algo independente com começo, meio e fim, em estrutura mais convencional, ou se eu poderia usar este material no outro filme que preparava na Argélia. Os documentários são assim: às vezes você se programa para registrar algo, então outras coisas importantes acontecem ao mesmo tempo. É preciso estar alerta. Foi isso que aconteceu com este filme – embora, no início, eu nem mesmo soubesse se havia ali um filme ou não.

 

 

Como os telefones celulares transformaram a maneira de fazer cinema e de fazer política?
Nardjès A.: Para as manifestações, nós encontramos um canal para transmitir as nossas mensagens, através do Facebook, principalmente. Muitos veículos de imprensa argelinos não estão autorizados a retratar os eventos exatamente como acontecem. Os outros apenas não comparecem. Então precisamos encontrar uma maneira de documentar o movimento, de dar visibilidade ao que estamos fazendo. Não queríamos que os protestos fossem apropriados por vozes diferentes das nossas. O telefone celular e a conexão à Internet nos permitiram mostrar os eventos como eles são. Quando você faz uma transmissão ao vivo, aquilo é a realidade: não existe montagem. Este é um ótimo veículo de comunicação ao alcance de cada um. As redes sociais e os smartphones possuem grande importância nas manifestações argelinas.

Karim Aïnouz: Durante um debate sobre o filme aqui em Berlim, me perguntaram sobre a experiência de filmar com um celular, e comecei a pensar que existe certa horizontalidade no dispositivo. Ele é uma câmera, mas não apenas isso. O termo “to shoot” algo, em inglês [que pode ser traduzido como “atirar” ou “filmar”], imprime um tom masculino, é como uma arma, uma mira de onde sairia uma bala. A beleza do registro em telefone celular é eliminar a ideia do “shoot” – ao invés dele, você captura algo. Existe um aspecto da ordem do íntimo, do diário. O celular se torna uma caneta para escrever. É como o momento em que todos passaram a comprar suas canetas e carregar consigo para escrever o que quisessem, quando quisessem. O celular é uma nova caneta, uma câmera-caneta. Imagina como seria permanecer na multidão com uma grande câmera? Já o celular traz uma experiência diferente: ele não serve apenas como instrumento para gravar. Você fica com as pessoas, dividindo o momento com elas. Essa descoberta foi uma das belezas deste projeto para mim. Além disso, acredito que o documentário se tornou o registro ideal para ter uma voz independente. Com uma câmera de telefone celular, podemos realmente escrever as nossas próprias histórias. Existem diversas imagens do Iraque, por exemplo, que são curtas, que evaporam. Mas a câmera discreta e invisível do celular rompe com a quarta parede. É importante saber por que se filma, e como se filma, mas esta captação individual traz algo muito forte, da ordem do compartilhamento de experiências.

 

 

Que tipo de controle você podia ter para compor as imagens no meio da multidão? Para Nardjès, como foi a experiência de ter uma câmera colada ao seu rosto durante o dia inteiro? Alguma ação foi condicionada às necessidades do filme?
Nardjès A.: Ontem, a produtora do filme me lembrou de algo que me fez rir. Eu tinha me esquecido desse detalhe. Mas quando me lançaram a ideia do filme pela primeira vez, eu respondi: “Se quiserem me oferecer um papel, a resposta é não. Mas se quiserem apenas me acompanhar, tudo bem”. Karim me deu espaço suficiente para agir livremente. Eles apenas me seguiram. Não houve nenhum tipo de encenação, nem me pediram para fazer isso ou aquilo, ou dizer algo específico. Quando queriam a minha opinião sobre algum tema, simplesmente me perguntavam a respeito. Isso ocorria de modo espontâneo. Sei que Karim e a equipe tiveram muito trabalho com montagem e a mixagem depois, mas para mim, durante a captação das imagens, eu estava apenas participando das manifestações. Nós inclusive nos perdemos um do outro mais de uma vez durante a manifestação, e depois nos reencontramos. Por isso, em alguns momentos eu não estou presente nas imagens, porque eles continuaram filmando. É verdade que o filme traz o meu nome, mas acredito que a intenção do Karim, e a minha, tenha sido de falar da Argélia como um todo. Fui uma intermediária entre a equipe e a Argélia. Minha presença ou ausência nas imagens não alterava os fatos, tanto que eles continuavam filmando e acompanhando as pessoas. Acredito que fizeram um excelente trabalho por isso, e só tenho a agradecê-los.

Karim Aïnouz: Há mais de dez anos, fiz um documentário sobre o Carnaval no Brasil. Eu estava no Recife, com uma câmera 16mm. Eu queria comer o momento, devorar a energia, apreender cada detalhe. Com este novo filme, foi a mesma coisa. A gente se perdia, se encontrava, caminhava à esmo pela rua, fazendo novos encontros. Foi lindo perceber que as pessoas ali queriam conversar conosco, queriam compartilhar suas histórias. Havia uma abertura muito grande. Há uma mulher que eu adoro no filme, repleta de energia e raiva, e que representava muito bem a História da Argélia. Esta é a beleza: os poderes se diluem neste ecossistema onde todos estão dispostos a compartilhar suas histórias. Para alguém que conta histórias como eu, isso era um verdadeiro tesouro, algo inestimável.

Nardjès A.: Gosto muito que o Karim não tenha dado apenas a mim a possibilidade de falar. Sendo argelina, consigo reconhecer cada tema do filme, e saber de onde se originam. Fiquei muito feliz de perceber que todas as pessoas tiveram a oportunidade de se expressar. Ele não queria apenas ouvir a voz de uma categoria precisa, ou apenas uma classe social. Ele estava apenas presente, captando o momento e dando oportunidades a todo mundo de falar. O filme traz toda a variedade de pessoas presentes na Argélia. Esta é a beleza marcante deste documentário: mirar no coletivo, fazendo o possível para não excluir ninguém.

 

 

Você diz no filme que as manifestações são “tipicamente argelinas”. O que isso significa para você? Para os brasileiros, como isso se compara com nossa maneira de protestar?
Nardjès A.: Se eu levar algum estrangeiro para as ruas de Argel durante a manifestação – aliás, sei que Karim e a equipe passaram exatamente por isso -, sei que ele não vai entender muitas coisas ditas ou feitas ali. Nós dançamos e cantamos, alegres, e de repente o tom se transforma, as canções adquirem outra conotação. Há provocações que apenas os argelinos entenderiam, e alusões muito específicas ao poder que só fariam sentido aos cidadãos locais. Mas gostei de perceber, aqui em Berlim, que o filme é capaz de se comunicar com públicos muito diferentes dos argelinos. A emoção foi compreendida por pessoas do mundo inteiro, e isso me comoveu bastante. Nossa maneira de nos expressar é específica, mas existe uma humanidade através dos protestos que foi captada por outros.

Karim Aïnouz: Essas manifestações possuem um senso de humor incrível. Quando falamos da Independência do Brasil, em 1822, sabemos que foi algo nebuloso com os portugueses. Temos a impressão de que não conquistamos o país. Mas a Argélia é um país muito orgulhoso de si mesmo. Eles lutaram muito para conquistar isso: dez milhões de pessoas morreram para que o país se tornasse independente. Este país pertence a eles, e se tornou um motivo de orgulho. Eles conquistaram o fato de estar no mundo. Não é uma questão de patriotismo, nem nacionalismo. As pessoas têm muito orgulho de quem são, e de onde vieram, e do que conquistaram enquanto país. Além disso, possuem um humor e uma irreverência que talvez nos aproxime deles, enquanto brasileiros. Mas existe na Argélia algo que falta ao Brasil neste momento: a sensação de que os jovens farão a nova política, de que ela não pode ficar na mão dos velhos patrões e dos poderosos. Não serão apenas os homens que estão no poder há trinta, quarenta, cinquenta anos. “O país nos pertence”, eles dizem. Nardjès afirma, numa cena do filme, que a Argélia corre em suas veias. Isso não é um fato, é uma conquista. Essa noção é fundamental na construção de uma cidadania. As pessoas lutam para que o país não seja sequestrado por ninguém. O país é deles, e são eles que precisam decidir que caminhos seguir.

 

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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