O Círio de Nazaré representa um dos eventos cristãos mais importantes do Brasil, levando milhões de pessoas anualmente a Belém, no Pará, em busca da graça de Nossa Senhora de Nazaré. A cerimônia possui um valor ainda maior para os detentos das penitenciárias estaduais, que aguardam ansiosos pelo indulto possibilitando frequentar as ruas durante o Círio. Dentro das cadeias, estas pessoas alimentam sua fé enquanto esperam pela liberação definitiva.
O cenário entre liberdade e prisão, entre solidão e reencontros, constitui o foco de Nazinha Olhai por Nós (2020), de Belisário Franca. O documentário teve sua primeira exibição dentro do 30º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, integrando a mostra competitiva de longas-metragens. Em meio a um festival híbrido, articulando sessões presenciais e outras remotas, via Internet e televisão, a discussão sobre a privação de liberdade se tornou ainda mais urgente. O Papo de Cinema conversou com o diretor a respeito do filme que encerra a Trilogia do Silenciamento após Menino 23 (2016) e Soldados do Araguaia (2017):
O imaginário das prisões costuma ser cercado por violência, mas o filme é bastante melancólico.
Mais do que o sistema carcerário, o filme estava interessado em conhecer estas pessoas, estes detentos. Eles têm histórias de vida muitos diferentes no que diz respeito às razões pelas quais estão no cárcere. Por isso, decidimos acompanhar a travessia deles durante um pedaço de tempo e de vida. Pretendíamos contar a história da vida de cada um através do dispositivo do Círio de Nazaré, para descobrir quatro vidas que se encontravam, por acaso, dentro do sistema carcerário. O Círio tem uma dimensão enorme para aquela cidade, e para o Estado do Pará como um todo. Este era o foco principal: trata-se de pessoas como nós, com sonhos, famílias, filhos, pais, irmãos, tios, frustrações, impasses.
Nós nos aproximamos destas pessoas sem jamais deixar de transparecer a dureza que é o sistema carcerário. É preciso refletir sobre as prisões, algo que nós, enquanto sociedade civil, temos pouquíssimo interesse em saber como funciona. É um lugar silenciado de maneira ativa. A violência está presente pela própria instituição, e pela estrutura falha dos acessos dessa população vulnerável: todos são egressos de camadas menos favorecidas em termos financeiros e de instrução. Assim, podemos ver o fio da navalha em que vivem o tempo todo. Não reproduzimos a violência glamourizada dos filmes e séries de dramaturgia. Mesmo assim, ainda me senti num lugar de violência, porém de outro tipo – não é a violência de gangues e facções. Elas também estavam presentes, mas este não era o foco do filme. O sistema do cárcere se abre a múltiplas leituras.
O filme demonstra pudor no contato com estas pessoas. Elas estão abertas a revelarem apenas o que desejam sobre os motivos de suas prisões.
Do ponto de vista ético, sempre existe a busca por respeitar os limites e o nosso compromisso com cada um deles, com muita generosidade. Depois de várias conversas longas, quando se estabeleceu uma relação mútua de confiança e respeito, a gente sabia que não estava ali para expô-los. A gente estava interessado no que os torna humanos, em quais elementos permitem a nossa identificação. Não queríamos observar “o presidiário”, “o preso” por tal crime. Era fundamental retrabalhar diariamente este processo de confiança. Por exemplo, a Neuza teve o seu primeiro pedido de saída temporária negada, e ela deu um gelo na gente neste momento.
Era compreensível a frustração dela: todos querem sair durante o Círio de Nazaré. Foi um trabalho constante para envolvê-los e demonstrar segurança. Eles tiveram a generosidade de mostrarem suas famílias, e transparecemos a mesma tranquilidade e respeito em relação aos familiares. A confiança de um fortalece a do outro, através de coisas muito simples: por exemplo, levamos a Dita, irmã do Everaldo, junto do carro da produção quando ela não tinha condições de ir à cadeia sozinha. Aos poucos, as pessoas se sentem à vontade conosco. Nós estávamos fazendo exatamente isso: observando. A gente não sabia que filme seria, nem como ele acabaria. Mas tínhamos a consciência de que, uma vez conquistado esse laço com eles, havia a riqueza de quatro histórias de vida muito diversas.
Como a religião influencia a ideia de redenção dos presos, e o próprio sistema carcerário?
Esta é uma questão muito forte. Não tenho dados específicos, mas talvez o Estado do Pará e os arredores de Belém, com cidades-satélites, tenham a relação mais forte com o catolicismo em todo o Brasil, principalmente graças ao Círio. Além disso, a Igreja faz um trabalho muito forte nesta região, em especial nas camadas populares e nos presídios. O Círio constitui um evento muito importante para eles, reforçado pelo dispositivo da saída temporária – é juntar a fome com a vontade de comer. O que já era importante adquire uma importância maior: os detentos até modificam seu comportamento em função da possibilidade da saída temporária.
Nós estávamos presentes no dia em que foi divulgada a lista do indulto, e as pessoas que tiveram a saída negada não ficaram nada felizes. Por um lado, a fragilidade de cada uma daquelas vidas é imensa: eles se agarram na fé. É obvio que a possibilidade de ser enxergado por Nossa Senhora de Nazaré, dando a eles a bênção de sair, ou qualquer outro tipo de bênção, possui um valor fundamental. A mãe da Raíssa, mulher de fortíssima religiosidade, sempre pede graça à Nazinha, por exemplo. Quando a filha saiu, ela a levou para o Círio. A religiosidade está muito presente no cárcere também.
Por que decidiu encerrar a Trilogia do Silenciamento com o tema do cárcere?
Num momento anterior, eu estava muito mais interessado no que nos faz acreditar que somos únicos. Esta era uma questão identitária, uma busca pelo Brasil, pela dança brasileira, pela Amazônia. Neste período, fiz filmes mais solares. Mas agora enfrentamos a negação do real, a radicalização da anticiência: chegamos a paroxismos inacreditáveis. Da última década para cá, comecei a me identificar com razões históricas, e se voltarmos no tempo, continuaremos a encontrar conflitos que nos trouxeram à situação em que estamos hoje. Isso vem desde a ditadura militar, e mesmo antes do golpe. As consequências deste passado se fazem presentes no dia a dia.
Nazinha Olhai por Nós reflete apenas uma das fases desta negação e deste silêncio ao qual estamos submetidos. A ditadura militar foi muito eficaz nesse processo de silenciamento. Embora as pautas de racismo, questões de gênero e violência tenham conquistado discussão ampla na sociedade civil, ainda que precisem se aprofundar bastante, o sistema prisional ainda é um tema pouco explorado porque não queremos olhar para isso. Este filme se tornou uma trilogia, mas isso não impede que no futuro eu faça outro filme conversando com estas feridas históricas. Mesmo assim, acredito que está bom por agora. No futuro, vou investigar outros caminhos de produção e direção de documentário. Não me pergunte quais, porque ainda não sei. Posso ampliar meu lugar, mudar um pouco de ângulos. Quem sabe aparece alguma história na nossa frente que termine por dialogar com o silenciamento.
As imagens de aglomeração, tanto na prisão quanto no Círio, se tornam ainda mais fortes em contexto de distanciamento social.
Nesse momento em que há uma necessidade de separação e distanciamento social, o Círio de Nazaré e os eventos semelhantes representam tudo, menos o distanciamento social. A catarse dos eventos religiosos depende de as pessoas estarem juntas. É um movimento de uma intensidade religiosa impressionante: são 2,5 milhões de pessoas reunidas durante quatro dias pela cidade inteira. As duas procissões são as mais intensas, e apresentamos também o sistema prisional, onde há evidente superlotação. Não estamos falando de uma prisão norueguesa, com espaços definidos para cada preso: eles estão realmente aglomerados. É preocupante.
Eu soube mês passado, porque somos procurados pelas famílias dos personagens, sobre a situação atual do Júlio. Conforme ficou definido pelo juiz, ele tem que ir todos os fins de semana para o albergue, apesar de trabalhar durante a semana. Mesmo assim, ficou preso em regime fechado desde abril até agosto de 2020, porque estavam preocupados com a pandemia. Ou seja, ele estava começando novas perspectivas de vida, mas se vê de novo restrito ao regime fechado. Por lei, ele tem direito ao regime albergado, mas a Covid-19 impôs que fosse preso de novo. A pandemia trouxe um impacto profundo na vida dele. Sabemos por meio de advogados militantes que a situação nas prisões piorou bastante no último ano e meio por causa da precariedade do sistema prisional, que ficou sem direção devido à pandemia.
Em meio às dificuldades do brasileiro em 2020, como vê a possibilidade de viabilizar e distribuir um documentário autoral como Nazinha Olhai por Nós?
Para levar o filme o público, o caminho principal passa pelos festivais. Vamos fazer um lançamento em cinema também, entre o final de janeiro e o começo de fevereiro – ainda estamos estudando a melhor estratégia com a distribuidora. Avaliamos nossa estratégia todas as semanas, porque nunca sabemos se os cinemas vão fechar ou não. Espero que dê certo com o circuito exibidor: mesmo que existam restrições de segurança ao público, é importante levar o filme à tela grande. Por conta do som e da questão propriamente sensorial, este é um filme que funciona bem na tela grande.
Em termos de produção, é bastante preocupante o apagão que o governo tenta produzir na Ancine. A sociedade civil tem que reagir. É uma luta difícil, mas temos conseguido dar alguns passos para frente diante dos passos para trás do governo. Além disso, o aumento muito grande de consumo de audiovisual demonstra que o streaming passou a ser a bola da vez, o foco de interesse dos realizadores. Basta acompanhar o que ocorre com os americanos: grandes documentaristas e diretores têm produzido conteúdo para o streaming. No Brasil, isso também tem acontecido, ainda que em escala menor. Em sua premissa, o Fundo Setorial do Audiovisual era mais democrático, possibilitando explorar uma diversidade de temas, não apenas um tema como o de Nazinha, mas questões menos comerciais. Eram filmes de nicho mesmo, que possibilitaram obras importantíssimas por meio do FSA, sem qualquer restrição de gênero. Tivemos obras originais, inventivas graças a este recurso.
No entanto, vestindo o chapéu de quem tem que vender assinatura de streaming, sei que muitos destes projetos não visavam o público geral. Não sei se teremos uma centralização temática, mas vamos trabalhar para ampliar as possibilidades de viabilizar projetos. Esta diversidade e esta democratização são importantes. Posso ver um filme de Fortaleza, de um grande diretor cearense, enquanto vejo um filme de uma grande diretora do Acre, por exemplo – tudo isso ocorreu enquanto eu pesquisava e filmava Nazinha. Conheci ótimos cineastas do Pará com trabalhos consistentes durante este período, mas talvez eles se confrontem a um afunilamento temático agora. Não posso afirmar ainda, mas se olhar de longe, corremos o risco de enfrentar este problema.
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