Mário Abbade é um jornalista experiente, crítico que já presidiu a ACCRJ (Associação dos Críticos de Cinema do Rio de Janeiro) e fez parte de inúmeros júris (inclusive internacionais), além de ter sido curador de várias mostras. Numa delas se aproximou da obra de Neville D’Almeida, sendo instigado pelo controverso cineasta a realizar Neville D’Almeida: Cronista da Beleza e do Caos, filme que está chegando às telonas depois de passar por festivais estrangeiros e brasileiros. Mário, que cursou jornalismo e publicidade na PUC/Rio e fez mestrado em educação na UCP (Universidade Católica de Petrópolis), aceitou o desafio e se pegou investigando a trajetória de um sujeito marginalizado, censurado como nenhum outro durante os anos de chumbo, mas ainda hoje impedido de exercer plenamente sua arte pelos ditames mercadológicos e pelas engrenagens de incentivo. Conversamos com Mário Abbade por telefone para saber mais sobre a gênese, o processo e a recepção de Neville D’Almeida: Cronista da Beleza e do Caos. Este Papo de Cinema você confere a seguir.
O que te levou a documentar a trajetória do Neville D’Almeida?
Faço curadoria de muitas mostras, aliás desde 2007. Sempre estou em busca de cineastas que me atraiam por algum motivo específico. O que me chamou a atenção no Neville, de cara, é que ele não entregava um trabalho novo há algum tempo. Por que esse sujeito não filma, se gerou algumas das maiores bilheterias do Brasil? Cheguei até o Neville e propus a realização de uma mostra. Inscrevi no edital do CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), sugerindo que fosse no Rio de Janeiro, até porque o Neville, mesmo mineiro, adotou a cidade e seus filmes são praticamente todos na capital fluminense. Para minha surpresa, o CCBB Rio não teve interesse naquela mostra. A mesma foi requisitada pelo CCBB Brasília. Se tornou um sucesso. Exibimos longas e curtas inéditos. Ele estava há 20 anos sem lançar filmes comercialmente, mas continuava filmando, editando, trabalhando de maneira independente.
E isso abriu uma porta, então…
O Neville gostou do trabalho. Afirmou que fui um dos únicos que prometeu e cumpriu coisas a ele. Propôs que eu fizesse um documentário sobre sua obra. Aceitei com enorme prazer a sugestão, mas avisei que seria difícil, inclusive financeiramente. Assinamos um contrato bom para ambos os lados, que previa uma preferência de três anos. Percebi no processo que esse grande artista continua sendo vítima de censura, não mais a da ditadura militar, mas a dos editais, uma censura inclusive mercadológica. Quis descobrir, inclusive, o porquê o Neville é tão marginalizado.
E como se deu esse processo?
Não conseguimos patrocínio, as pessoas mal recebiam a gente. Recorremos ao Cavi Borges, o grande produtor de guerrilha do Brasil. Graças a ele o filme existe. Aplausos, então, para o Cavi e o Canal Brasil, outro parceiro valioso. Com muita humildade e pouco dinheiro, iniciamos as entrevistas. O preconceito voltou quando o documentário ficou pronto. Na fase de inscrições em festivais, me deparei com coisas estranhas, do tipo ofertas para exibição em sessões à tarde, praticamente escondidas do público. Nunca tive a arrogância de querer que meu filme passasse somente em competição, mas senti nesse posicionamento uma falta de respeito com o Neville. Comecei a inscrever o documentário no exterior. Tive a enorme surpresa de ser selecionado para Roterdã, sem ajuda, sem ação entre amigos, sem quem indicasse, um indício de que o filme tem alguma força. E no dia em que foi divulgada a seleção internacional, as coisas mudaram por aqui. Recebemos ligações, fomos enxergados de outra forma no Brasil.
Neville tem fama de ser um homem relativamente difícil. Como foi esse trato direto com ele? Houve alguma restrição imposta pelo teu protagonista?
Quando anunciei a produção, pessoas me desaconselharam. Neville brigou com muita gente. Me disseram que ele poderia, inclusive, questionar o contrato. Mas o nosso acordo foi bem amarrado, conversamos bastante antes da assinatura. Da minha parte, disse que apenas aceitaria se tivesse direito ao corte final e liberdade total. Ele sabia disso desde o começo e concordou. Curioso, há uma parte no documentário na qual o Neville menciona que foi desaconselhado a levar o Nelson Rodrigues para o set de filmagem, mas que ele achava um absurdo deixar o gênio distante do processo. Lembrei muito daquilo, pois me senti da mesma forma. O Neville não atrapalhou em nada. Ao todo, tivemos oito sessões de conversa, em dias diferentes. Ele nos recebeu sempre muito bem, disposto e brincalhão. Neville apenas viu o filme após a seleção para Roterdã e adorou, mesmo não gostando de várias coisas, não concordando com certas contradições, inclusive algumas que acabo evidenciando no filme.
Numa passagem durante os créditos, o Neville menciona pessoas que não quiseram dar depoimentos sobre ele. Foram muitas? Você pode citar algumas delas?
Todas as protagonistas dos grandes filmes do Neville são mulheres. A força motriz dos longas-metragens dele são as atrizes. As únicas que falaram foram a Denise Dumont, a Maria Gladys, a Bruna Linzmeyer, a Regina Casé e a Sura Berditchevsky. Mas, sem exceção, as demais foram convidadas, em várias oportunidades e com diversas flexibilizações, tais como dar depoimentos via Skype, filmados por celular, etc. Umas disseram que não queriam estar atreladas novamente ao Neville, outras deram uma enrolada e ficou por isso mesmo. E o Neville estava ciente disso. Acho esquisito, porque são coisas antigas, mas tem gente ainda bastante magoada. Quem não falou é, absolutamente, porque não quis. Todas as pessoas que entrevistei aparecem. Ninguém foi descartado. Para mim era uma questão de respeito com os entrevistados.
O filme expõe muito bem as diversas facetas da carreira de Neville. Como se chegou a esse equilíbrio? Como se deu esse trabalho de montagem?
Ao todo, havia 80 horas de material bruto. A Fernanda Teixeira merece todas as bênçãos possíveis, porque destrinchou essa bronca previamente, fez uma decupagem que nunca vi igual. Ela sabia exatamente onde cada assunto estava. Um trabalho impressionante. Junto da Fernanda, eu e o Leonardo Luiz Ferreira acabamos montando, mas a participação dela é tão definitiva que não me senti bem em nos creditar. O grafismo, as brincadeiras, foi fruto da contribuição do Christian Caselli. Nós tínhamos um corte de duas horas. Como estávamos “viciados”, chamamos o Paulo Henrique Fontenelle para limar uns 15 min. Aliás, ele não cobrou, fez na pura amizade. Foi o responsável pelo polimento. É um filme bastante coletivo, de fato.
O documentário passou por alguns festivais internacionais, inclusive ganhando prêmios. Como as plateias estrangeiras se relacionaram com o Neville e a sua verve singular?
Acho que o documentário se comunica bem lá fora porque não conto a história propriamente do Neville, mas utilizo a figura dele para fazer um painel do cinema brasileiro. Falamos de censura, da questão do artista com a crítica, mencionamos a briga entre Cinema Novo e Cinema Marginal, etc. Tomei um susto na primeira exibição internacional, em Roterdã. Foi de manhã, numa sessão para a imprensa. Era uma sala IMAX (risos). Foi muito gratificante ver o rosto do Neville daquele tamanho, naquela tela. Nunca mais na minha vida (risos). Achei legal que a imprensa ora riu, ora ficou séria, exatamente nos momentos em que desejávamos. Depois dessa exibição, houve a do público. Pela resposta deles, entendi que a linguagem tinha ficado universal. Terminadas as projeções, as pessoas perguntavam ao ponto da gente estourar o tempo estipulado. Esticávamos as conversas no hall do cinema.
Há algo que você gostaria muito de ter incluído no filme e não conseguiu?
Cara, há, sim. Gostaria muito de ter os filmes que se perderam. Queria ao menos exibir um pedaço deles. Se fossem encontrados agora, certamente reeditaria o documentário para inclui-los. No meu novo projeto, sobre o cineasta Ivan Cardoso, cuja montagem deve ser finalizada em cerca de três semanas, felizmente posso contar com isso, porque o Ivan fazia o que ele chamava de “filme do filme”, ou seja, o making off, algo hoje em dia tão normal. Ele gravou os bastidores de Surucucu Catiripapo (1972, considerado perdido), do Neville. Isso estará no filme do Ivan. Não tinha pensado nessa comunicação. Se eu falar o contrário adiante é mentira (risos). Foi tudo, realmente, por acaso. Serão filmes bem diferentes. O longa do Ivan é mais de arquivo. Ele filmou basicamente tudo o que estava acontecendo nessa época. É impressionante. Vai ser um filme mais de brincadeira com a imagem. Praticamente apenas o Ivan fala. Aparecem também entrevistas feitas por ele na época. Estou te dizendo isso em primeira mão.
(Entrevista concedida por telefone em julho de 2019)
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