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Veterano do cinema nacional, Murilo Grossi já fez de tudo um pouco: cinema, teatro e televisão. No entanto, um dos grandes diferenciais que ele defende com orgulho e o fato de estar fora do eixo Rio-São Paulo. Morador do Distrito Federal, é uma figura fundamental na produção audiovisual brasiliense, inclusive abrindo portas e dando apoio a muita gente de uma nova geração, que está começando agora a mostrar seus primeiros trabalhos. Como o diretor André Carvalheira, que estreou com o longa-metragem New Life S.A. (2018), que foi exibido – e premiado – no Festival de Brasília dois anos atrás, e somente agora chegou aos cinemas. Nele, Grossi aparece como Rubens, o principal antagonista da trama. Para saber mais sobre esse personagem, nós conversamos com o artista, que falou sobre suas inspirações, a vida na capital federal e o que esse filme representa. Confira!

 

Oi, Murilo. Tudo bem? Quem é o Rubens, teu personagem em New Life S.A.?
O filme é quase uma alegoria, penso eu. É uma obra que se debruça sobre todo um sistema de corrupção e mentiras, algo que está intrínseco em nossa sociedade. Tem vários aspectos a respeito dessa realidade que são abordados no longa. O envolvimento do sistema politico e judicial, as construtoras, as relações com os operários… enfim, todas as sacanagens desse universo. O Rubens é o dono de uma grande empreiteira, de uma construtora. É o típico cara que fica ensinando o genro, que é um arquiteto da empresa, conselhos do tipo “se não fizer sacanagem, nada sai”. Há um embate entre eles. Ao mesmo tempo, é muito apegado à filha, talvez por ser viúvo, e por isso sente necessidade de protegê-la. Acaba achando que o genro é um bosta. Enfim, é um cara bronco, um empresário como tantos outros por aí, que responde a essa imagem que a gente tem quase caricata dessa classe, bem sucedido e bem escroto, sem pudores com as jogadas. É uma vida tensa.

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Murilo Grossi, em Brasília

Há muitos Rubens por aí, não é mesmo? Como foi essa construção?
Procuramos, eu e o diretor, não fazê-lo mais complexo. Afinal, é um empresário, mas é um bom pai, preocupado com a filha. O que tentamos foi dar os dois lados. Não deixar caricato, mas também não tem como fugir de uma característica marcante. É um cara que gosta de mexer com armas, de dar tiros. Tem a ver com o momento atual em muitos aspectos. Por isso não foi necessário fazer pesquisa, ou laboratório. Depois de um certo tempo de atuação, não precisa ir muito longe pra chegar perto, você já vai direto ao assunto. O roteiro é sempre a minha bíblia. Mas uma que pode ser mexida quando necessário.

 

Tu é um ator que prefere se focar no roteiro ou costuma fazer pesquisas externas?
Nesse caso, não foi muito necessário. Eu sou de Brasília (risos). A gente convive com isso a vida inteira. Brasília é uma cidade muito nova, aqui não tem indústria. A grande empresa daqui é a que responde pelos empreendimentos imobiliários. Passou a ser uma coisa complicada. Tem muito rolo, corrupção. Convivemos a vida inteira com isso, e não só aqui, mas no Rio de Janeiro, em São Paulo… A ocupação da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, por exemplo, é uma das coisas mais absurdas que já aconteceu nesse país. E taí o resultado, um bairro horroroso, uma Miami mal acabada. É ofensivo visualmente, não tem nenhum planejamento urbano. Até tinha, feito pelo Lucio Costa, mas foi totalmente desrespeitado. Todas as grandes cidades brasileiras penam com isso. Ou seja, não é difícil compor esse personagem.

 

Murilo, tu é um dos atores brasilienses de maior repercussão nacional. Segue morando em Brasília?
É difícil, confesso. Óbvio, morei bom tempo no Rio, e em São Paulo também. Fiquei a vida toda entre essas três cidades. Passava temporadas longe, mas sempre com um pé aqui. Nunca saí totalmente. Morava lá, mas ficava voltando. E isso por uma necessidade de trabalho, evidentemente. Nunca me desvinculei de Brasília, até ficar aqui por completo. Agora, só saio pra trabalho. Tenho filhos, família aqui.

 

Como faz para conciliar a cidade com a profissão?
É complicado porque você fica fora do eixo. Muitas coisas acabam dependendo de estar próximo das outras pessoas. Quando chega a hora das escalações, lembram de quem está próximo, afinal. Tive que me esforçar bastante pra seguir na ativa e, com isso, não ficar isolado. Felizmente, fui bem sucedido nisso, e sou lembrado pela maioria. Tenho o que podemos chamar de uma carreira alternativa, acredito. Quem me chama, é que já trabalhou comigo, ou tem interesse específico no meu trabalho.

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Murilo Grossi, no Cine Brasília, apresentando o Festival de Brasília

Quais as maiores dificuldades que você encontrou nesse estilo de vida?
Para carioca ou paulista, pensar em Brasília é como imaginar Trinidad e Tobago, como se fosse um lugar longíssimo – e não é. Um voo entre uma cidade e outra é de uma hora, muito rápido. Mas existe muito preconceito com Brasília, essa é a verdade. O Rio de Janeiro, sobretudo, mas mesmo com São Paulo, existe uma pinimba, é muito esquisito. Isso dificultou um pouco, mas não me impediu.

 

Passou por situações que a distância influenciou no teu trabalho?
No ano passado, por exemplo, a Daniela Thomas montou Mãe Coragem, em São Paulo, com a Bete Coelho, e me ligou. No dia seguinte estava com elas, ensaiando, e fiquei por lá por quatro meses. Ou seja, os exemplos mostram como é fácil esse deslocamento, não é problema pra mim. Meus filhos estão maiores, o mais novo tem 18 anos. Tenho mais liberdade pra viajar, portanto. Acontece que fui eu que os criei, quando me separei da mãe deles, as crianças ficaram comigo. Fui pãe (risos). Porém, há uma postura de que se você não está na cidade, não faz parte. E não é assim. Mas, aos poucos, fui rompendo com isso.

 

Quais as maiores lições que tirou dessa dinâmica tão particular?
Veja bem, tenho 40 anos de profissão! Então, bem ou mal, você acaba construindo um mercado seu. Não estou na badalação do Rio ou de São Paulo, mas não deixo de estar também. Tenho muitos amigos, participo das coisas. Construí uma carreira paralela ao eixo. E, de certa maneira, a partir de um determinado momento virou uma opção de vida, uma postura política. Acho injusto esse olhar tão limitador. O Brasil é grande demais pra se resumir a duas cidades. No ministério do Gilberto Gil, durante o governo Lula, houve um incentivo fantástico à produção cultural por todo o país. Isso é um fato, não é questão de opinião desse ou daquele. Todos os estados brasileiros estavam produzindo cinema, teatro, audiovisual. Foi uma conquista como nunca antes. E eu sou de Brasília, tenho que me firmar como daqui. Defendo-a como capital também. É importante ficar marcar essa posição.

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Murilo Grossi, em cena de New Life S.A.

Como é a atual cena cinematográfica brasiliense?
Eu sou da primeira geração. Nasci em 1964, e nos anos 1980 começamos a produzir o conteúdo brasiliense. Se tornou muito conhecido pelo rock, que era bom mesmo, mas não se resumia a apenas isso. Havia teatro, cinema, todos os tipos de música. Uma formação de atores muito boa surgiu nessa época. Sempre foi tida como uma cidade de atores excelentes, e isso por causa da nossa formação. Fomos nós que começamos a fazer cinema por aqui. Tínhamos nossos mestres, como o Nelson Pereira dos Santos, que foi um dos primeiros professores da UNB. A Tizuka Yamasaki, o Vladimir Carvalho… Depois veio uma série de cineastas, como o José Eduardo Belmonte, e uma geração de diretores se seguiu. Agora, estamos na segunda e terceira geração, com o Iberê Carvalho, por exemplo. Tem muita gente filmando.

 

Como você fez parte de todos esses movimentos?
Eu sou daquela turma lá de trás. Passei dez anos seguidos tendo filmes no Festival de Brasília. A maioria, no entanto, eram produções de fora daqui. Mas foi uma coincidência, acho. Fazia muito cinema, e durante anos estava nos festivais, tanto em longas, como em curtas. Sou muito ligado ao Festival de Brasília, é a minha formação cinematográfica. Quando comecei a fazer cinema, no início dos anos 1990, logo entrei para o festival. Tanto na tela, ou como apresentador. Com isso, acabei virando referência. Essa moçada mais nova tem uma relação ótima com a gente. De companheirismo, de admiração. Sempre que possível, me chamam, e fico feliz em participar. Sou um militante de Brasília. Espero viver para ver o dia que essa cidade será de fato a capital do país.

 

Recém passamos por mais uma eleição. O que você acha que um filme como New Life S.A. tem a dizer ao Brasil de hoje?
Ah, tem tudo a dizer. O filme é um tapa na cara. Ele tem um estilo um tanto Antonioni, que acho fantástico. É um chute na boca do estômago. É preciso que as pessoas se liguem, afinal é isso que o Brasil precisa hoje. Não adianta ficar tergiversando, não. Quem votou na direita foi o povo. A esquerda tem que parar de reclamar, de inventar moda, e voltar a fazer trabalho de base. A gente está perdendo pra uma coisa muito pobre, muito ruim. É um atraso medieval. E isso porque não está presente. Abriram mão, se desmobilizaram. Esse filme faz parte disso, de algo que é importantíssimo pro país. Estamos falando da ética, da cidadania, da civilidade. Diretrizes que não temos mais, foram abandonadas.

 

Foram esses sentimentos que o motivaram a participar do filme?
Esse filme é uma maravilha. Uma verdadeira epifania. A gente se vê por completo dentro dele. Houve uma inversão de valores, e o resultado é um negócio que assusta. Estávamos passando por um caminho civilizatório, democrático, e de repente inverteu tudo. Foi a sanha de uma elite atrasada, ignorante, escravocrata, que não aceita que o país, que o estado brasileiro, seja para todos. É um grupo que quer se apropriar do estado, e ponto final. Fizeram uma confusão tão grande na cabeça do cidadão médio, que ele acha até bom. É uma contradição completa.

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Murilo Grossi, no Festival de Brasília

Como fazer que New Life S.A. encontre esse público?
É uma questão midiática, de comunicação. O que falta é senso crítico na população. Um filme como o New Life S.A. é importantíssimo por trazer essa reflexão, reproduzir essa falta de civilidade, de ética. Precisa ser muito exibido. Até o fato de ter linguagem, que através de uma certa alegoria, como disse antes, consiga ir muito mais fundo. Isso facilita, se torna mais contundente. Acho extremamente necessário nesse momento estarmos diante de uma história como essa. Agora, sabe-se lá como iremos encontrar esse espectador. Resta torcer para que as pessoas descubram o filme, pois ele está aí, à disposição de todos.

(Entrevista feita por telefone em dezembro de 2020)

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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