Cineastas e sócios da Filmes de Plástico, proeminente produtora mineira sediada em Contagem, Gabriel e Maurílio Martins já haviam colaborado nos curtas-metragens Contagem (2010) e Dona Sônia Pediu uma Arma Para Seu Vizinho Alcides (2011), a partir dos quais o longa-metragem No Coração do Mundo (2019) se desdobrou. Novamente rodando em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte familiar a ambos – foi onde cresceram –, eles desenvolvem uma trama povoada de personagens às voltas com questões familiares, observadores de uma violência ora mediadora, ora entendida como aparente saída de uma vida de infortúnios materiais. No Coração do Mundo fez sua première mundial no prestigiado Festival de Roterdã e agora chega aos cinemas brasileiros pela Embaúba Filmes. Conversamos brevemente com Gabriel e Maurílio Martins para entender as particularidades do filme e suas opiniões acerca do atual panorama do cinema tupiniquim. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo.
O quão essencial foi rodar em Contagem, tendo em vista a organicidade de No Coração do Mundo?
Gabriel: Nos deixa bastante confortáveis o fato de conhecer os espaços e a gente. A imagem do bairro diante da câmera nos é familiar. Isso permite outras sensibilidades que levam à profundidade. Sem contar o trânsito com as pessoas, que se dá de forma natural, o que facilita do ponto de vista da produção. Estamos filmando no bairro há 10 anos, então essa relação já é bem mais afetiva e menos protocolar. O processo é familiar, o que é bem legal.
Maurílio: Conseguimos fazer qualquer tipo de filme, em qualquer lugar. O que muda tudo, radicalmente, é a vontade que temos, desde os primórdios da produtora, de colocar esses rostos na tela, de ressaltar essas vozes, de filmar a arquitetura periférica. Não representamos ninguém, sequer a nossa rua, pois ela é formada por um sem número de histórias e singularidades, mas apresentamos o lugar onde vivemos, aquela fachadas coloridas cobertas de pichações. A periferia é um local vibrante. Se essa apresentação é feita a partir de um espaço afetuoso, as coisas ficam bem mais fáceis. Para mim é gratificante. Tenho uma felicidade imensa ao colocar atrizes do calibre da Grace (Passô) e da Karine (Teles) convivendo com as pessoas com as quais cresci, fazendo essa interação gerar algo que está na tela como um filme de ficção. Essa proximidade move a Filme de Plástico, mas hoje fazemos isso por opção.
E qual foi o maior desafio ao retomar os personagens dos curtas?
G: Desde as primeiras linhas de roteiro, mas principalmente um ano antes de rodar – No Coração do Mundo começou a ser filmado em 2016 –, quando eu e Maurílio estávamos trabalhos cotidianamente no filme, acho que aprendemos muito sobre identidades. Já tínhamos esse pensamento nos curtas, mas, até pelo tempo, não pudemos explorar, por exemplo, as profissões e as relações familiares. A partir do momento que você tem duas horas, há como investigar a vida dos personagens. Atualmente temos olhares com mais experiência, o que aumenta a ousadia. É a primeira vez que fizemos tantas cena com steadicam e isso muda a forma como observamos espaços e corpos, assim possibilitando novas linguagens. Todos os personagens cresceram, não apenas de tamanho e duração em cena. Fomos entendendo o que poderia ser o bairro. Toda vez que íamos com a câmera para lá, havia uma descoberta diferente, por mais que conhecêssemos prévia e profundamente o local.
M: Tem uma história bem curiosa sobre isso. Estávamos filmando, talvez no dia mais cheio de todos. Quem nos contou esta foi o platô. Havia vans na porta da minha casa, toda aquela parafernália. Chegou um cara e perguntou o que era aquilo. Sabendo ser um filme, questionou se era do Helvécio Ratton, talvez por ter a relação imediata com um nome conhecido de Minas Gerais. Ele ficou impressionado ao saber que se tratava de um filme do Gabriel e do Maurílio. Os vizinhos estavam acostumados com o nosso processo dos curtas, com estruturas bem menores. Outra coisa legal é que algumas pessoas do bairro começaram a fazer cinema, aliás, um deles trabalha conosco.
O filme está prestes a chegar ao público brasileiro, mas antes foi exibido no Festival de Roterdã. Como o espectador estrangeiro recebeu o filme?
G: Foi muito interessante essa receptividade. Existe uma demanda internacional grande no sentido de entender como esse Brasil da telona se encaixa no Brasil de agora. Com tudo que vem sendo veiculado globalmente sobre a nossa situação política isso acaba gerando curiosidade. O público de Roterdã se interessou pelas singularidades do bairro. E o filme foi bastante visto por lá, teve cinco sessões e todas elas lotadas. Os espectadores questionaram a respeito da trilha sonora. Percebemos um interesse por esse Brasil que não está comumente no nosso cinema.
Vocês demonstram uma vontade de se comunicar, de fazer um cinema acessível, mas não simplista, com ampla capacidade de dialogar com o público…
G: Antes de tudo é um desejo. Acredito que todo artista o tenha. Para a gente é uma vontade muito forte, tanto que estamos trabalhando junto com a distribuição para garantir que No Coração do Mundo seja visto. Mas não há essa cobrança enquanto fazemos o filme, acredito que não conseguiríamos realizar algo com a pressão de ser bem-sucedido comercialmente. Não fizemos concessões, tampouco alimentamos outra pretensão senão a de realizar um bom trabalho. Somos influenciados por coisas muito diferentes, de exemplares da Sessão da Tarde a outros quase inacessíveis. Talvez essa comunicação tenha a ver com algo natural que o ritmo do filme pede.
M: Do mesmo modo que o filme tem essa miríade de personagens, possui grandes referências e elas vão se espalhando. Citamos Porta da Esperança (extinto programa apresentado Silvio Santos), colocamos piadas internas, mencionamos explicitamente o Carlão (o cineasta Carlos Reichenbach) e até colocamos uma cena pensando em O Matador de Ovelhas (1978), do Charles Brunett. O filme se aproveita desse amálgama de coisas.
Como se deu a escolha das músicas, especialmente Love By Grace e Mordida de Amor, que pontuam momentos muito importantes?
M: Em Belo Horizonte as mensagens ao vivo viraram uma febre no início dos anos 2000. Love By Grace era muito tocada nessa época por causa da novela (Laços de Família 2000-2001). Ouvíamos todo dia essa canção nos carros. Já Mordida de Amor eu amo, mesmo. Um dia brincamos que faríamos uma cena de ação com tiroteio e essa música tocaria. Desde a primeira versão do roteiro há a nota de que Mordida de Amor seria executada. Porém, a interrupção dela com o tiro foi uma sacada do Gabriel na montagem.
G: O Maurílio defendida Mordida de Amor desde o início. Curioso, a cena era bem diferente do que ficou. Sobre a trilha, boa parte dela é original. Todas as músicas instrumentais foram compostas para o filme. Usamos desde música independente brasileira até referências pop. Esse processo até acabou gerando uma banda de verdade.
Como vocês encaram as recentes falas do presidente Jair Bolsonaro sobre o fim da ANCINE e a, na opinião dele, necessidade de um filtro estatal para a produção do nosso cinema?
G: Antes de tudo, é muito ruim que tenhamos de gastar tempo refletindo sobre essas coisas. Para começo de conversa, a opinião presidencial é equivocada do ponto de vista da informação. É uma pessoa falando de algo que não conhece. Há uma orientação para que a desinformação continue, inclusive com a mobilização da opinião pública por meio de mentiras. O que nos deixa mais tristes é a irresponsabilidade de tudo, porque Bolsonaro está colocando em risco a integridade de um setor que vivia um processo de crescimento, não apenas de tamanho. É lamentável que a gente precise trazer à tona isso. Se trata de uma imaturidade enorme para um governante.
(Entrevista concedida por telefone em julho de 2019)
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