Pode-se dizer que Grace Passô tem uma carreira relativamente curta no cinema. Curta, porém absolutamente marcante. Há pouco indicada ao Prêmio Guarani de Melhor Atriz por Praça Paris (2018) – papel pelo qual também concorre ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro –, ela foi homenageada no Festival de Tiradentes 2019, onde apresentou a sua estreia como diretora (Vaga Carne, 2019). Vencedora do troféu de Melhor Atriz em 2018 por Temporada, Grace volta agora às telas como a Selma de No Coração do Mundo (2019), dos cineastas Gabriel e Maurilio Martins. Sua personagem é uma mulher determinada que lança mão de um estratagema ilícito para ganhar dinheiro e dar uma vida mais digna à família. Na iminência da estreia dessa nova colaboração com a produtora mineira Filmes de Plástico, Grace nos atendeu gentilmente para este Papo de Cinema por telefone, em que conversamos sobre as especificidades do trabalho, bem como o momento que a arte vive no Brasil. Confira.
Que tipo de particularidades surgem ao trabalhar com amigos, com parceiros contumazes, como a galera da Filmes de Plástico com a qual você já colaborou antes?
Sinto que temos um vocabulário em comum, inclusive para conversar sobre a composição das personagens, a fim de entender como representa-las e compreender a dimensão que elas têm na narrativa do filme. Obviamente temos as nossas diferenças artísticas, mas sinto desejos mútuos, por exemplo, de desenhar e compor mulheres que se multiplicam diariamente, que fazem muita coisa ao mesmo tempo e acabam sustentando emocional e pragmaticamente as famílias. Esse vocabulário está relacionado com os espaços da cidade, as referências musicais, diversas coisas. Isso traz uma sensação de familiaridade, a possibilidade de buscar inspiração em fontes parecidas.
A Selma é uma figura resoluta, forte, mas também afetuosa. Como foi construir essa personagem? Que tipo de elementos você trouxe a ela?
Já no roteiro a Selma era uma personagem repleta de informações. Apaixonei-me imediatamente por essa composição prévia. Ela sempre foi muito vibrante, entra com bastante determinação na narrativa. Não era uma personagem cheia de mistérios. Como sempre, fui tentando entender como defender esse ser, o que é um pouco o trabalho da atuação. Preocupei-me em defender a violência que advém desse desejo de mudança da Selma. Identifiquei-me bastante com isso. Ela é uma mulher com uma gana gigantesca de evasão. Isso é bem reconhecível.
O filme aborda questões de ordem social, mas privilegia as pessoas, não fazendo delas símbolos de teses, por exemplo. Essa sensibilidade lhe parece essencial para a força do resultado?
Sim, sem dúvida. Os personagens não são olhados como meras peças dotadas de funções sociais, mas a partir das dimensões de suas subjetividades. Eles têm construções complexas, com poéticas muito fortes. Isto é o cerne do filme: o modo como essas pessoas são compostas e apresentadas.
Para você, a familiaridade com o ambiente, em se tratando de filmagem em cenários naturais, traz ganhos à sensação de organicidade que transborda em No Coração do Mundo?
Nesse filme falamos de lugares conhecidos, de nós mesmos. Há toda uma poética criada a partir da gente, das nossas famílias, dos nossos círculos de amizades. Nossos pontos de partida são referências muito próximas à criação artística. Sinto que esse é um trabalho de grande consistência, principalmente porque existe nele uma memória afetiva agregada. É um esforço técnico, de elaboração de linguagem e, ao mesmo tempo, é sobre nós mesmos.
Sua estreia na direção de cinema se deu com Vaga Carne (em parceria com Ricardo Alves Jr.). Que tipo de mudança essa nova experiência traz para o seu trabalho como atriz?
Boa pergunta. Para mim a atuação está umbilicalmente ligada à concepção. Atuo melhor quando entendo o projeto por inteiro, quando participo da construção do discurso, quando tomo parte efetivamente da elaboração. Sou uma atriz muito performática, permaneço ligada ao desejo da obra. Com o Vaga Carne pude me aproximar das outras etapas, mais especificamente da artesania cinematográfica.
Você acaba de ser indicada ao Prêmio Guarani do Cinema Brasileiro na categoria Melhor Atriz por Praça Paris. O que representa esse reconhecimento?
Não sabia. Nossa, representa muita coisa. As minhas escolhas, ao longo da vida como atriz, sempre são muito difíceis, então esse reconhecimento me dá a sensação de que é possível construir um caminho, com densidade, mesmo na arte, ou seja, nesse lugar tão difícil de entrar e trabalhar. Tenho a sensação de que essas formas de resistir aos padrões têm vida, existindo para criar espaços, alguns aos quais, inclusive, não tive acesso anteriormente.
Como você encara as recentes falas do presidente Jair Bolsonaro sobre o fim da ANCINE e a, na opinião dele, necessidade de um filtro estatal para a produção do nosso cinema?
As falas do Bolsonaro e das forças que o circundam são tão patéticas que me dão preguiça até de critica-las. Elas não são dignas do meu tempo e do meu esforço. É triste esse senhor estar aí. Bolsonaro é apenas uma das peças produzindo discursos conservadores no país. O que acho importante lembrar é que se o Bolsonaro está aí, com tanta pujança, é porque se coloca como resposta a poderes contrários que existem. Ele faz uma força danada para tentar parar determinadas potências, como as militâncias, a relevância da mulher e da negritude brasileira, a capacidade da pobreza reverter sua situação social. Importante pensar que existe oposição. Nisso que temos de nos concentrar. Acredito profundamente que quando as pessoas têm acesso ao cinema, ao teatro, em suma, a todas as manifestações artísticas, elas conhecem a importância disso. A arte é uma coisa insubstituível. Passamos por um momento caótico de retrocesso. Porém, a força da arte é a do mistério da existência. Intuo que, no fundo, as pessoas sabem disso. Nem tudo se mede com dinheiro e com as competências do capitalismo, como nos quer fazer acreditar esse governo.
(Entrevista concedida por telefone em julho de 2019)