Sérgio de Carvalho não imaginava que triunfaria num dos principais festivais de cinema do Brasil com a sua primeira ficção de longa-metragem, também o primeiro longa acreano. No entanto, Noites Alienígenas (2022) levou para o Acre não apenas o Kikito de Melhor Filme (prêmio máximo do evento), mas também os de Ator (Gabriel Knoxx), Atriz Coadjuvante (Joana Gatis), Ator Coadjuvante (Chico Diaz) e Melhor Filme pelo Júri da Crítica do Festival de Gramado. Portanto, um êxito enorme para uma produção de baixo orçamento que apresenta uma fusão entre cidade e floresta numa localidade onde não faltam resistência, esperança e juventude no universo da cultura periférica de Rio Branco, cidade amazônica onde impera uma espécie de realismo mágico. Para compreender um pouco mais a respeito desse verdadeiro sucesso que está chegando nesta quinta-feira, 23, às telonas do Acre, e a partir do dia 30 às dos demais estados brasileiros, conversamos com Sérgio de Carvalho, ele também responsável pelo Pachamama, evento cuja missão há mais de 10 anos é visibilizar filmes latino. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo.
Historicamente, o cinema brasileiro permaneceu concentrado no eixo Rio-São Paulo. Você dimensionou o peso da vitória do seu filme em Gramado para quebrar um pouco essa ideia?
Ter sido selecionado para o Festival de Gramado já foi furar uma bolha: um filme de baixo orçamento e levando em consideração todo o custo de produção amazônico, região que não tem uma tradição de produção cinematográfica para salas de cinema. Estar em Gramado era muita coisa, tanto que não cheguei lá com espirito competitivo. Depois que recebemos tantos prêmios, comecei a receber mensagens de realizadores do Norte, da região amazônica toda, que estavam se sentindo representados por nosso êxito. Que responsabilidade, que papel o filme está cumprindo, até como resultado de uma política pública de descentralização interrompida e fragilizada nos últimos anos. Esse edital que ganhamos não foi lançado pela Ancine com visão mercadológica, foi promovido pelo Ministério da Cultura e pela Secretaria do Audiovisual, não utilizava critérios que às vezes inviabilizam a concorrência da gente aqui do Norte. Por sorte, A Vitrine Filmes (nota da edição: distribuidora do filme) entrou antes de Gramado e nos deu segurança nesse universo novo para a nossa região. Sinto que nesse sentido nosso filme tem uma responsabilidade.
Habilmente, o filme mistura questões universais com particularidades da região amazônica. Ao mesmo tempo, sobressai o elenco super jovem, mas também a presença de um Chico Diaz como apoio. Mesclar era mesmo a estratégia principal?
Acredito que sim. Durante o processo, conversava muito com a Lorena Ortiz, minha diretora assistente, sobre a concepção do filme. Tínhamos uma produção de baixo orçamento, no Acre, contemplada por um edital que nem existia mais e não estávamos pensando num compromisso com o mercado. Queríamos fazer o filme. Isso tudo nos trouxe a liberdade para realizar exatamente o que desejávamos. Algumas escolhas foram arriscadas. Trabalhamos com vários atores que tinham zero experiência em atuação. Me coloco como um diretor inexperiente. Tinha feito um curta de ficção na faculdade, um documentário e só. Acreditávamos muito nas nossas decisões e escolhas. Por exemplo, o filme tem vários planos-sequências e éramos aconselhados a ter os chamados planos de cobertura. Assumimos riscos artísticos, mas eles estavam balizados pela competência dos membros da nossa equipe: o André Sampaio na montagem, o Pedro Von Krüger, um grande parceiro da produção que cuidou da fotografia, entre outros.
E como foi o trabalho com o Gabriel Knoxx e Adanilo Reis, atores jovens e não tão experientes convocados a co-protagonizar um longa-metragem de cara?
Estava preocupado, pois trabalhamos com um núcleo jovem feito de atores inexperientes. E essa preocupação era ainda maior com relação ao personagem do indígena dependente químico. Cheguei à conclusão de que não poderia ter nessa alguém tão inexperiente, pois talvez isso seria até irresponsabilidade minha. Fiquei buscando um ator indígena, mais ou menos naquela faixa etária, quando meu diretor de produção, o Clemilson Farias, indicou o Adanilo. Na nossa primeira conversa ficou muito claro que o papel seria dele. A dedicação do Adanilo foi absurda. Não queríamos retratar um dependente químico caricatural, pois nossa intenção era enfatizar a marginalização e a doença. Encontrar esse tom foi difícil. Lutamos muito para não errar a mão nessa representação. O Adanilo fez uma dieta rigorosa e teve um trabalho corporal desafiador. Já com relação ao Gabriel, abrimos uma chamada grande no Acre para teste de elenco, algo relativamente novo por aqui. Quando o Gabriel chegou, eu não queria mais fazer teste nenhum (risos). Ele carregava muita verdade desde o teste. É um ator muito instintivo e disciplinado.
Você acredita que a responsabilidade do filme aumenta pelo fato de chegar aos cinemas depois de ter sido o grande vencedor do Festival de Gramado de 2021?
Aumenta a responsabilidade e o frio na barriga (risos). Quando estamos no circuito de festivais, há um perfil de público específico. Se bem que passamos por eventos populares. Fiquei impressionado no Festival de Gostoso, com cerca de 600 pessoas na sessão. Mas, claro, esse público é mais dedicado, o de cinéfilos. Nosso termômetro diante de uma plateia mais heterogêna foi bom com a pré-estreia aqui em Rio Branco. Duas salas completamente lotadas de pessoas que nos presentaram com reações lindas. Porém, evidentemente tenho a noção de que vencer Gramado colocou outra responsabilidade nas costas do filme.
Em que medida a sua atuação como um dos responsáveis pelo festival Pachamama é fundamental para orientar o seu olhar como diretor e roteirista, enfim, como criador cinematográfico?
Completamente, especialmente porque estamos falando de um evento focado em cinema latino-americano. Uma das motivações do Pachamama era a promoção de encontros entre os realizadores vizinhos ao Acre, sobretudo Bolívia e Peru. Quando observávamos de longe o eixo Rio-São Paulo, nos deparávamos com outros modelos de produção, muito distantes de nós que estamos aqui começando. Realizadores de Bolívia e Peru tinham realidades bem mais parecidas com as nossas. Esses mais de 10 anos de Pachamama foram fundamentais para o meu olhar sobre o cinema. O evento nasceu durante uma viagem minha à Bolívia, na qual me deparei com um monte de filmes locais à venda nos camelôs. Fiz faculdade de cinema, estudei para caramba os filmes europeus e norte-americanos, bem menos os brasileiros e quase nada dos oriundos do restante da América Latina. Era uma lacuna na minha formação. E com alegria sinto que nesses mais de 10 anos o olhar de uma geração foi sensibilizado para esses filmes latinos.
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