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A cineasta chilena Camila José Donoso é frequentemente citada como uma das principais realizadoras da chamada nova geração latino-americana. Nascida em 1988, vem chamando a atenção do meio cinematográfico com curtas e longas-metragens empenhados em revelar a falta de definição nas fronteiras entre ficção e documentário. É deliberadamente um gesto constante de borrar essas delimitações já tão difíceis de determinar. Quando alguém se sabe perscrutado por uma câmera de cinema, é possível manter íntegro um corpo cotidiano ou inevitável imediatamente construir um equivalente cênico? Essa conversa vai longe. E Camila, com seu trabalho instigante, nos ajuda a torna-la ainda mais complexa e empolgante. Em Nona: Se Me Molham, Eu os Queimo (2019), tratado pela divulgação como sua primeira ficção, ela utiliza como protagonista a própria avó numa história que mistura tempos, texturas, quadros, dimensões e uma série de outros elementos que se entrelaçam para novamente perguntar: o que é a verdade? Camila gentilmente nos atendeu para este Papo de Cinema por telefone sobre o filme que chega aos cinemas brasileiros no dia 18 de fevereiro pela Vitrine Filmes. Confira!

 

A divulgação do filme diz que essa é sua primeira ficção. Mas, até mesmo por seus curtas e longas anteriores, você não parece muito preocupada com fronteiras, senão como possibilidade demonstrar o quanto as divisas são difusas. Essa investigação é uma premissa para você?
Sim, realmente para mim os filmes, assim como os corpos, não têm gêneros. Quando me proponho a fazer um filme, não penso necessariamente nele como sendo documental ou ficcional. Na verdade, para mim tudo que filmo acaba sendo ficção. Não me percebo filmando estritamente de maneira documental. Claro, grande parte dos meus personagens existe, há nas tramas um retrato de suas vidas. Nona é um pouco a culminância dos meus trabalhos anteriores, por conta da exploração que faço com diferentes câmeras e registros, bem como a utilização de materiais caseiros. A mistura efetivamente me interessa mais do que identificar se os filmes são ficção e documentário.

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O quanto facilita/dificulta trabalhar com alguém próximo como a sua avó? Quais são as dores e as delícias desse processo?
Foi um aprendizado enorme, inclusive para compreender meu papel de diretora, pois ali eu era também neta e atriz. Se transformou num jogo instigante fazer esse filme. Somente vejo coisas positivas nessa interação com a minha avó. Parti de uma investigação prévia sobre ela, atenta à sua forma de falar, à questão da oralidade, à forma como ela conta suas vivências e histórias. Esse escrutínio familiar nutre muito o filme. Jogo propositalmente com a distância das pessoas, aqui às vezes muito próxima da Nona, às vezes distante dela. Também é parte do filme entender que minha avó se coloca num papel criativo de pensar-se através de um filme, de compreender-se como atriz.

 

O filme resvala em questões referentes a um passado doloroso de ditadura, mas nunca de fato adentra nessa discussão como um processo de exorcismo escancarado. Te parecia mais importante fabular sobre isso do que necessariamente discutir abertamente a questão?
Por meio da história da minha avó, achei interessante entender como era ser mulher e dona de casa durante a ditadura militar. De certa forma, se tratava se resgatar essa herança de uma resistência sobre a qual se fala pouco. Quando pensamos nesses termos de resistência, prevalecem as figuras dos revolucionários que foram às ruas. Mas, olhamos pouco às que resistiram dentro das casas, numa ideia micropolítica, no contexto em que essas personagens viviam. Me pareceu instigante ver essa resistência de muitas donas de casa, como minha avó, que não figuram na história oficial, pois são marginalizadas. Por isso a imagem da mulher ensinando como se faz um Coquetel molotov como se estivesse passando uma receita culinária. E, depois, quando ela lança o molotov, é como um gesto novo.

 

A sua abordagem da protagonista é nada ortodoxa. Sua intenção parece ser a de revelar várias facetas ao mesmo tempo de uma mulher que não pode ser definida por este ou aquele comportamento. Realmente não dava para ser convencional diante de alguém tão singular?
Antes mesmo de fazer cinema, sabia que minha avó era uma personagem enorme. Diariamente, a via performar, inclusive como parte dessa parcela da população adormecida pela ditadura. Quando comecei a estudar cinema, já tinha a noção de que faria algo com ela, sobre as histórias dela. Minha avó atuou no meu primeiro longa-metragem, o Naomi Campbell (2013), e ali descobri uma grande atriz, com ampla capacidade de interpretar. Tive a felicidade de, por meio do cinema, permitir que ela tivesse uma velhice gostosa, feliz, num âmbito que a deixou expandir ao máximo sua radicalidade e o seu modo de ser. O filme é também uma reivindicação nesse sentido.

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Como se deu a escolha do Eduardo Moscovis para fazer um personagem que, embora não tenha uma fala sequer, é responsável por um gesto essencial ao filme?
A verdade é que foi uma decisão tomada por conta dele ser um ator famoso da telenovela brasileira (risos). Me parecia um gesto importante que ele fosse o amante da personagem da minha avó. Ter alguém conhecido como amante de minha avó estabelecia certo jogo simbólico, no qual eu poderia brincar um pouco com os estereótipos da telenovela. Foi muito bonita a participação do Eduardo. Certamente foi uma ótima decisão inclui-lo no filme.

 

Embora jovem, você foi homenageada no Olhar de Cinema de 2019. Como foi essa experiência de estar no Brasil e ter seu trabalho colocado numa perspectiva conjunta?
Não sei ainda, na verdade (risos). Isso simplesmente aconteceu. Os organizadores decidiram fazer essa homenagem a mim. Foi uma enorme surpresa. Não sabia que eles conheciam meu trabalho. Foi algo maravilhoso. Eu tinha essa relação de coprodução com o brasil, me interesso muito pelo movimento de mulheres negras que está crescendo no seu país e tenho afinidades políticas com vários movimentos que estão ganhando protagonismo.

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O que você pode nos contar sobre Gótico Tropical, seu próximo filme?
Posso te contar que é filmado na fronteira entre Chile, Peru e Bolívia, e que aborda o tema do branqueamento do Chile. Estou trabalhando com coletivo de mulheres afro-feministas. A pandemia tem complicado as coisas, mas um grupo de antropólogas negras está gravando depoimentos de suas avós. Me parece essencial que elas filmem as próprias avós. Vamos ver como as coisas andam.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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