Uma das vozes mais atuantes do cinema LGBTQIAPN+ feito no Brasil hoje em dia, Lufe Steffen está longe de ser um novato. Realizador de diversos curtas e de dois documentários em longa-metragem que abordam o tema, é também professor de cursos e oficinas e autor de livros que refletem a influência dessa questão na produção cinematográfica nacional. Mesmo assim, está agora se revelando um estreante, por mais que seja com um projeto que levou décadas para ficar pronto. Nós Somos o Amanhã é seu primeiro longa de ficção, e foi responsável por uma das sessões mais emblemáticas durante o 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no melhor estilo “ame ou odeie”. Musical autobiográfico – ele interpreta o protagonista quando adolescente, mesmo sendo um homem de quase cinquenta anos – e repleto de referências aos anos 1980, o filme agradou aqueles que abraçaram a proposta, ao mesmo tempo em que causou controvérsia junto aos que não acreditaram em muitas de suas escolhas. Foi sobre isso e suas motivações enquanto cineasta que o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, no dia seguinte à sessão, direto do Distrito Federal. Confira!
Você comentou que Nós Somos o Amanhã é resultado de uma jornada de mais de vinte anos. Como nasceu esse filme?
São vinte e um anos ao todo. A primeira versão do roteiro escrevi em 2002. Claro, era bastante diferente do que está hoje na tela, mas era a sementinha, a ideia original. E não fiquei, obviamente, todo esse tempo fazendo esse filme. Realizei outros projetos ao longo dos anos. Até porque sabia que, naquela época, não tinha condições para fazer do jeito que sonhava. Naquele momento havia dirigido cinco curtas, então tinha alguma experiência como cineasta. Mas esse seria um projeto maior, precisaria de mais fôlego para torná-lo realidade. E volta e meia voltava a ele, lia de novo, mexia em algumas coisas, mas continuava lá, na gaveta. Foi só em 2015 que, pensando nele, cheguei à conclusão de que seria mais fácil fazer como peça de teatro. E transformei o texto. Afinal, se a montagem desse certo, conseguiríamos o dinheiro para fazer o filme, ao menos foi o que pensei. Só que acabei desistindo.
Então não teve a peça?
Não, foi só uma vontade que não deu em nada. Outros projetos acabaram surgindo e meio que atropelaram a ideia. Nem fiz mais nada, só o novo texto e pronto. Alguns amigos, que são do meio teatral, até chegaram a ler essa adaptação, teve quem achasse interessante, mas vinha sempre a dúvida: como tornar aquilo real? Tanto que não foi em diante. Acontece que no ano seguinte lancei o São Paulo em Hi-Fi (2013), que finalmente chegou aos cinemas, num circuito comercial, e posso dizer que foi um case de sucesso. Aquilo me estimulou. Então, em 2017, pensei: “agora vou fazer aquele filme”. E pensando para o cinema, tanto que fui escrever uma nova versão do roteiro.
Quantas versões o roteiro de Nós Somos o Amanhã teve ao todo?
Então, vamos ver. Teve a de 2002, quando tudo começou. Veja bem, todas estão registradas na Biblioteca Nacional, só não lembro ao certo quantas foram. Em 2004 e em 2008 também, depois em 2010. Em 2015 teve essa para o teatro, e em 2017 quando retomei, pensando no cinema. E em 2018 teve mais uma. Ou seja, seis ou sete versões. Aconteceu que, quando achei que estava pronto, mandei para um edital e fomos contemplados. Entrou uma grana, mas muito pouco. Era para filmar, mas não foi o suficiente. Daí fizemos uma campanha no Catarse, pessoas fizeram doações, foi um Deus nos acuda para conseguir o suficiente. E quando decidimos que, sim, dava pra filmar, fui lá e fiz mais uma versão. A que vale, portanto, é a de 2018.
Uma coisa que percebi, quando você fala do filme, é que parece estar na defensiva, como se Nós Somos o Amanhã precisasse ser defendido. Isso procede, ou é apenas uma impressão?
Pode ser que seja, sim, mas não é consciente. Primeiro, pelo fato de ser um musical. Tanto é que, em cena, em mais de uma ocasião colocamos uma metalinguagem, com avisos de que “sim, esse é um filme musical”. Desde o começo, quando falava que queria contar essa história, e nesse formato, muita gente olhava pra mim e dizia: “mas musical, tem certeza?”. Há preconceito contra esse gênero. Sempre senti resistência por parte de algumas pessoas. O Musical e o Terror são os dois estilos que mais brincam com a suspensão da credibilidade, ou o espectador embarca, ou não. O resto é mais palatável, mas estes são bem específicos. Tem quem, simplesmente, não veja musicais. E ponto. Por isso que trato de alertar: “olha, é um musical, estão avisados, depois não me culpem” (risos).
Mas você acha que esse é um filme que se defende com as próprias pernas?
Acho que sim. É algo que tem ficado mais claro para mim com o tempo. Algumas pessoas vão gostar, outras vão odiar, e tudo bem. Espero que não fiquem indiferente a ele. Vai ser um “ame ou odeie”, tenho essa impressão. Mas sei lá, também. Pode ser que alguém diga: “nossa, acabei dormindo”, mas acho difícil.
Uma opinião que volta e meia se repete é a de que tal filme é “digno”, ou seja, é OK, sem assumir muitos riscos nem decepções. Por esse lado, Nós Somos o Amanhã seria totalmente “indigno”, concorda?
Ainda bem. Nesse sentido, fico feliz que seja assim. Muito obrigado, fico lisonjeado ao ouvir isso. Já me disseram: “você teve muita coragem de fazer exatamente do seu jeito”. É legal ouvir esse tipo de retorno.
Não apenas isso, mas coragem também em trazê-lo para o Festival de Brasília, que é uma das maiores vitrines do cinema nacional em todo o país.
Mas não foi bem assim, nós apenas o inscrevemos. O festival é que nos selecionou. Tudo bem, poderíamos não ter feito a inscrição. Mas é uma responsabilidade compartilhada. A Descoloniza Filmes, nossa distribuidora, pensou conosco como seria essa passagem pelos festivais. Para onde iríamos mandar? Primeiro, temos que tentar os grandes. Nós vemos qualidades no filme, ninguém vai passar vergonha. Merece ser visto. Não precisa ficar restrito ao nicho. Mas, claro, também mandamos para festivais de temática LGBTQIAPN+ e investimos ainda nos de cinema fantástico que, surpreendentemente, estão nos dando um bom retorno. Como o de Manaus, onde será nossa próxima exibição.
Então vir ao Festival de Brasília estava nos planos de vocês desde o começo?
Acontece que não entramos em muitos eventos e mostras, tivemos várias recusas. E, de repente, o Festival de Brasília resolveu apostar na gente. Foi uma surpresa. Que legal, né? Fiquei feliz. Afinal, trata-se de um festival muito político, e nós temos também esse caráter, porém por um outro caminho, de um jeito mais enviesado. A curadoria de Brasília, felizmente, não pensou assim, mas tem quem ache que musicais são alienados, e não é por aí. Veja títulos de sucesso, como Cabaret (1972), Hair (1979), Evita (1996), todos assumidamente politizados. Exemplos não faltam. Mas, no mainstream, a referência acaba sendo esses mais festivos, frívolos mesmo. Mas que amo, como Grease: Nos Tempos da Brilhantina (1978).
Era uma preocupação ficar nesse meio termo, entre o discurso ativista e a simples comemoração?
Quando bolei a história, a ideia era falar da infância e dessa questão pesada do bullying. Queria exorcizar esses traumas, era algo que estava sufocado em mim. Agora, com o filme pronto, é que estou sentindo que as coisas estão indo embora. Era o que eu precisava, enquanto pessoa. Quase como uma análise. Ao mesmo tempo, desde o começo sabia que teria que ser em chave de musical. Primeiro, por ser a minha infância. Queria usar essas músicas. E, depois, porque acredito que o musical suavizaria um pouco o futuro.
Uma das decisões mais ousadas é colocar você e outros adultos, em cena, como crianças. Teve quem chamasse de “filme-Chaves” (1972-1983).
Sim, tenho ouvido isso. E acho um elogio. O Chaves é da cultura pop, e o filme quer fazer parte desse universo também. Assim como The Rocky Horror Picture Show (1975). Um musical trash que, de repente, funciona. Ou Barbarella (1968), que também adoro. Que é muito sofisticado visualmente, acho que não estamos no mesmo nível (risos). Mas tem essa coisa do escracho, do bizarro, de você olhar e pensar: “o que é isso que estou vendo?”. Tem uma coisa do cinema camp. John Waters foi uma referência muito forte.
Mas, além disso, você decidiu se colocar à frente de tudo isso. Você é a cara do filme.
Desde a primeira versão foi pensado dessa forma. Hoje em dia nem faço mais nada como ator, esse filme foi uma exceção, porém tenho formação de intérprete. Por isso que pensei que deveria fazer o protagonista, para ficar uma coisa mais forte e performática. Por conta disso, todo mundo teria que ser adulto também. Se fosse só eu, ao lado de um monte de criança, aí, sim, seria grotesco.
Teve um esforço de convencimento do elenco? Ou todo mundo embarcou nessa visão de imediato?
As pessoas embarcaram. Fizemos audições, então quem se apresentava já sabia como seria. Claro, algumas foram convidadas, como a Claudia Ohana. Mas as ‘crianças’ vieram todas por meio de testes de elenco. Foi engraçado, ninguém questionou. Durante os ensaios podia surgir uma dúvida ou outra, do tipo “é isso mesmo?”, mas foi de boa. Por outro lado, não queria que caísse no deboche. Era importante que esses atores tivessem um ar juvenil. Um aspecto meio adolescente.
Você falou da Claudia Ohana, e tem também o Silvero Pereira. Os dois são os grandes destaques. Como você os trouxe para o filme?
O Silvero o conheço há muito tempo, por amigos em comum, desde o tempo em que ele morava em Fortaleza, do trabalho que fazia com As Travestidas. Sempre achei o que ele fazia muito importante, antes mesmo dele se tornar famoso nacionalmente. No entanto, como o roteiro teve mil versões, nunca pensei quem faria o que. Porém, de uns cinco ou seis anos para cá, comecei a pensar nele. Um dia, quando ele estava em São Paulo, fui assisti-lo no teatro e fiz o convite. Pediu para ler o roteiro e topou de primeira. Foi ótimo. A participação dele foi incrível.
E com a Claudia Ohana, o processo foi mais ou menos parecido?
Eu não a conhecia até então, mas tínhamos um amigo em comum. Ele quem fez essa ponte entre nós. Mandamos o roteiro, e ficou super feliz com o nosso convite. A partir do momento em que cheguei a essa versão final, a que acabou sendo filmada, tanto o Silvero quanto a Ohana foram as minhas escolhas iniciais para esses papeis. Queria muito os dois. Quanto ao Silvero, era importante também que fosse ele pois é visto como um símbolo da militância LGBTQIAPN+. Também é legal para o filme. Um cara assumido, de sucesso, reconhecido em todo o país. Foi ótimo tê-lo conosco.
Também impressiona as músicas. Como você conseguiu todas essas canções?
Ué, pagando. Não existe essa coisa de liberar os direitos. Não consumiu metade do nosso orçamento, mas posso dizer que não foi barato. Acontece que estava acostumado com essa questão de direitos das músicas, pois meus dois longas anteriores, ambos documentários sobre a noite paulistana, tiveram muito isso de ir fazer um registro em uma festa, uma balada, e ter música tocando ao fundo. Se estão dançando Madonna, queria mostrar isso. Então tivemos que legalizar tudo. Muitas delas conseguimos, pois nos cobraram preços razoáveis, mas outras tivemos que trocar na pós-produção, pois eram muito caras. Teve quem cedeu sem cobrar nada, mas esses foram raros. Agora, com o Nós Somos o Amanhã, não tinha como trocar. As músicas ajudam a contar a história. Esse foi um dos motivos, também, na demora para o filme ser finalizado. Cada dinheirinho que entrava, mais para o final, ia para pagar esses direitos. E só agora, com tudo certo, é que podemos circular.
Teve alguma canção específica que você queria, mas não conseguiu?
Teve uma, apenas, que era muito cara. Veja, é assim que funciona, não tem isso também de não conseguir. Tudo tem seu preço. Ou paga, ou abre mão e vai atrás de outra. Isso de ceder, “ah, vamos dar de graça”, é muito difícil de acontecer. Então, tem que ter o dinheiro. Claro, dá pra chorar, às vezes baixam um pouquinho, o que sempre ajuda. Outra coisa é que nós regravamos as canções com as nossas próprias vozes. E isso é padrão, cada música tem um preço para ser usada no original, mas a regravação sai pela metade. Também colaborou para conseguirmos fechar a conta. A única que aparece no filme com a voz mesmo da cantora é uma da Rita Lee, e isso porque o personagem tinha que dublar. No resto, foi tudo por nossa conta.
O filme tem limitações orçamentárias, como você tem comentado. E isso é assumido em cena, não se percebe um esforço para disfarçar. Você abraçam as condições que tiveram e fazem disso uma escolha estética.
O fato de várias passagens do filme serem feitas como se fosse num teatro tem a ver com isso. Como disse, sempre pensei em ter adultos fazendo personagens que eram crianças, e isso ganha força por meio do jogo teatral. No palco tudo é possível. Mas minha ideia inicial era ser o mais realista possível, apesar com essa concessão. Porém, quando finalmente partimos para as filmagens, tanto tempo depois, e mesmo assim não havia dinheiro para fazer do jeito que havia imaginado, refleti: já tem essa estranheza dos atores adultos, então que tal irmos além? Vamos usar isso a nosso favor. Dogville (2003) foi uma referência. E foi legal, também, pois isso nos permitiu estilizar os cenários. A direção de arte queria fazer tudo de modo literal, e tive que dizer: “não temos dinheiro para recriar tudo, então temos que ser criativos”. A ideia era usar a falta de recursos também como linguagem.
Você não se preocupa em estar falando com um público específico, apenas com quem reconhece essas referências dos anos 1980?
Queria fazer um filme para mim. Então tinha que ser desse jeito, nessa época. Mas, claro, não poderia ficar só ao redor do meu umbigo. Acredito que, ao falar da minha história, chego em outras pessoas, seja pelo meu personagem, ou por algum outro. Muita gente veio me dizer após a sessão em Brasília: “nossa, lembrei da minha escola”, por exemplo. As pessoas ficaram emocionadas, foi legal. Por outro lado, há várias camadas de público que o filme pode, ou não, atingir. Tem a geração anos 1980, com essa memória afetiva. Vejo também um público jovem, que não passou por isso, mas cultua de uma certa forma esses ícones. Tem o público LGBT, também, principalmente o mais velho. O mais jovem, tenho minhas dúvidas se irá embarcar. Mas são escolhas. O filme atira um pouco para todos os lados, e pode surpreender.
Um fato é o que você comentou: este é um filme do qual é difícil sair indiferente.
Não tem como agradar a todo mundo. Então, o que importa é que o filme tá na pista. Se vão abraçar ou não, isso depende de cada um. Acho que no cinema de hoje, e nas artes em geral, muitos artistas estão um pouco mimados, no sentido de que querem ser unânimes. E não dá pra ser assim. Alguém sempre irá tacar pedra. Se ficar preocupado com isso, você não faz nada. É derivado também das redes sociais, essa coisa de que ou você concorda comigo, ou te odeio. A relação entre artistas e críticos está tendo muitos atritos também por isso, os artistas querendo ser aceitos, e os críticos só na base do gosta ou não gosta.
Nós Somos o Amanhã tem potencial para ser cultuado no futuro. Essa possibilidade passou pela sua cabeça?
Com certeza. De não entenderem agora e o descobrirem daqui há alguns anos? Claro. Foi muito falado. Inclusive, tem quem convidei para participar da equipe, e que, ao ler o roteiro, deu desculpas que, para mim, ficou claro que era porque ou não acreditavam, ou não tinham entendido (risos). Você percebia. “O roteiro é meio estranho, mas você tem que fazer, de repente vira cult”. Nossa, ouvi muito isso. Até durante as filmagens. “Mesmo que não faça sucesso agora, um dia irão descobri-lo”. E fico honrado com essa percepção. O tempo vai mostrar. E, pelo fato dessas referências aos anos 1980, não acho que fica datado, está naquela época, sabe? E só por termos ido até o final, ter conseguido fazer, já foi uma vitória. Estamos felizes com o filme. Teve muitos momentos, durante esse processo acidentado, que pensei que nunca ficaria pronto. Então, que mais posso querer?
Entrevista feita ao vivo em Brasília em dezembro de 2023