Apesar de ser um dos mais premiados cineastas brasileiros, Luiz Bolognesi está estreando apenas agora como diretor de longa-metragem. A animação Uma História de Amor e Fúria é uma obra bastante ousada, completamente fora dos padrões do que habitualmente se está acostumado a fazer no Brasil. Afinal, trata-se de um desenho animado feito de modo tradicional, sem efeitos em 3D nem uma trilha sonora que pontue a trama, e também sem recorrer a personagens engraçadinhos ou ao uso do humor. Mesmo assim, atraiu um elenco de dubladores do primeiro time, está sendo selecionado para os mais importantes festivais do gênero ao redor do mundo e chega agora às telas cercado de uma grande expectativa. Mais conhecido até então pelo seu trabalho como roteirista e produtor, Bolognesi forma, ao lado da esposa Laís Bodanzky, uma das duplas mais comprometidas do cinema nacional. Ele já foi premiado nos festivais de Brasília, Havana, Recife, pela Associação de Críticos de Arte de São Paulo, no Grande Prêmio Brasil de Cinema e também aqui no nosso Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, seja pelos roteiros de filmes como Bicho de Sete Cabeças (2001), Querô (2007), Chega de Saudade (2007), As Melhores Coisas do Mundo (2010) ou por sua experiência anterior como realizador, com o documentário em média-metragem Cine Mambembe (1999). E foi sobre tudo isso, sobre este desafio atual e sobre seus próximos projetos que o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Luiz, tudo bem? Quase uma década depois, o Uma História de Amor e Fúria finalmente entrando em cartaz. Como está o coração?
Estou tranquilo. Já se passou tanto tempo desde o surgimento do projeto que hoje é como um filho, mas já ficando adolescente, crescido o suficiente para andar com as próprias pernas. E a caminhada até esse ponto tem sido muito boa. Estou muito contente com a recepção que o filme tem recebido desde públicos iniciais, em sessões comentadas e festivais. E principalmente da imprensa, que tem sido muito generosa conosco. Afinal estamos propondo um olhar novo sobre a história do Brasil e sobre o nosso próprio cinema, mas partindo de uma produção muito pequena, humilde.
De onde surgiu a inspiração para compor a trama de Uma História de Amor e Fúria? Foi preciso muita pesquisa?
A inspiração veio logo após o término de Bicho de Sete Cabeças, ou seja, em 2001, quando refletia sobre o que iria fazer a seguir. O projeto nasceu como desenho animado, desde o princípio era assim que pensávamos em fazer. Sempre gostei de histórias em quadrinhos, desde a adolescência, lia muito graphic novels. Então resgatei essa paixão e disse pra mim mesmo: “vou fazer uma animação”. Isso deixou muita gente desconsertada, mas quando estávamos fazendo o Bicho… todo mundo era contra, e mesmo assim lançamos o filme e foi muito legal. Ele aconteceu, foi bem recebido, pelo público e pela crítica. Isso significava alguma coisa, foi o que me fez sentir confiante para esse novo desafio. Mas essa graphic novel precisava ter a cara do Brasil. Por isso foi necessária uma grande pesquisa, ficamos de 2001 a 2004, 3 anos envolvidos em pesquisas e com a elaboração do roteiro. Tive que montar ainda um grupo de cinco pessoas, entre historiadores e mestrandos, para definir a linha desta trama tão abrangente. Teve muita pesquisa, um baita de um projeto formatado. E sempre busquei a animação clássica, acho muito pobre a animação digital – ainda acho que Branca de Neve e os Sete Anões (1937) dá de 10 no Shrek (2001) – me refiro em relação à animação, é claro, e não ao roteiro.
Foi muito difícil definir os quatro episódios históricos onde a história iria se passar?
Quando o projeto começou, eu já havia definido que seriam três momentos do passado e um do futuro. Isso foi fundamental. Selecionamos ao todo 43 episódios muito ricos da história do Brasil, e fomos aprofundando-os aos poucos. Destes saíram os três que estão no filme. São aqueles que tinham um caráter bom para a dramaturgia, de proporções épicas, com batalhas grandiosas, traições inesperadas, viradas de clímax. E era importante também escolher episódios que contribuíram para mudar a história do país e que foram fundamentais para a construção do Brasil que temos hoje. Primeiro foram os índios e a chegada dos portugueses, depois veio essa revolução no Maranhão, que foi um grande movimento popular mas que é pouco explorado pela literatura oficial. O que percebemos, no entanto, é que foi ali que nasceu o exército e o próprio cangaço, foram suas primeiras manifestações. E, na minha opinião, essa foi um tipo de revolta que ainda hoje se vê nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo. Daí vinha a atualidade, foi na Balaiada que encontramos. Por fim, ficamos muito em dúvida entre as revoluções de 1930 e a de 1964. A balança pesou para a ditadura porque as feridas ainda estão abertas, é algo recente, que segue tendo ressonância hoje. Por isso os anos 30 ficaram de fora, afinal hoje temos uma presidente que foi guerrilheira, que jogou bomba, que participou da luta armada. Se isso acontecesse nos Estados Unidos, seriam feitos 20 filmes a respeito. É muito atual, não poderíamos ignorar. E por fim tentamos bancar os adivinhos, com prognósticos de um futuro que pode ser possível ou não. Só a animação nos permitiria fazer isso.
Algo curioso é que o título internacional é Rio 2096: A Story of Love and Fury, o que já reforça o segmento no futuro e a presença do Rio de Janeiro. Mas um dos episódios se passa no Maranhão…
O nome estrangeiro foi dado pelos gringos que viram o filme, nunca foi uma preocupação nossa esse foco exclusivo sobre o Rio de Janeiro. Só que internacionalmente um nome como esse é mais forte, pois o Rio de Janeiro é o grande símbolo mundial da América Latina – mais que São Paulo, mais que Buenos Aires. E tem mais: o segundo episódio realmente se passa longe, no Maranhão, mas o destino daquele personagem só é resolvido no Rio, ou seja, tudo acaba confluindo. O filme está tendo uma ótima carreira internacional, com uma repercussão muito forte com os americanos. Para se ter uma ideia, já fomos convidados para uma exibição do filme em junho em pleno Central Park, em Nova York! Estivemos há algumas semanas no Festival Internacional de Animação da Holanda, fomos muito bem recebidos, e agora em abril vamos para um outro festival na Alemanha, e sempre participando das mostras principais, competitivas. O público estrangeiro enlouquece quando vê o filme – já está sendo chamado de a biografia não-autorizada do Rio de Janeiro, e como a cidade e o país está em muita evidência internacionalmente, todo mundo se impressiona. É um filme brasileiro, mas também universal, pois fala de resistência, e isso é importante a qualquer hora e lugar.
Após participar dos roteiros e da produção de filmes muito celebrados, como Bicho de Sete Cabeças e As Melhores Coisas do Mundo, como foi encarar esse desafio como realizador?
Foi muito diferente, nossa. Você é que tá na cabeça de todas as decisões, né? Quando você faz o roteiro, há uma troca com o diretor e a decisão final, em última instância, é dele, então não há tanta responsabilidade. Em todo caso sempre posso culpá-lo se algo deu errado (risos). Mas dessa vez isso não existiu. Eu não sei trabalhar sob pressão, então não sei se saberia ser um bom diretor de set. Por isso que a animação foi ideal, pois foram 6 anos de desenvolvimento, tudo com muita calma, era mais tranquilo. E o povo do desenho animado é mais unido, não era só mais um trabalho a ser feito, era o longa das nossas vidas! De qualquer forma senti falta dessa troca com o diretor, pois havia assumido tudo. E me acostumei com essa dialética. A solução foi formar um grupo de trabalho, com a assistente de direção, a diretora de arte, o diretor de animação, o coordenador do departamento de composição, o cara do storyboard, a montadora e eu, ou seja, sete pessoas. Esse grupo foi o diretor do filme. Todo mundo buscando soluções em conjunto.
Tens vontade de trabalhar também com ficção live action, ou seja, com atores?
Tenho vontade, sim, mas não em curto prazo. Não está no meu horizonte imediato. Gostei desse projeto. Mas meus próximos trabalhos serão como roteirista, para a Laís e para o Daniel Rezende (N.E.: montador indicado ao Oscar por Cidade de Deus, 2002), que vai estrear como diretor. Não posso adiantar muito, quem deve falar sobre eles, na verdade, são os realizadores, mas em linhas gerais o primeiro irá se chamar Como Nossos Pais, será dirigido pela Laís e será sobre a nossa geração, de 40 anos, com dramas e sentimentos típicos dessa fase da vida, com um humor que fale com a idade em que se é pai e filho ao mesmo tempo. É provável que as filmagens sejam ainda neste ano. E o do Daniel – que neste momento está lá no Canadá trabalhando no RoboCop do José Padilha – deverá se chamar Vida de Palhaço, e muito em linhas gerais será sobre os bastidores da televisão nos anos 1980.
Uma História de Amor e Fúrianão apresenta concessões típicas do gênero animado, como canções ou humor. Foi uma decisão consciente? Qual o público que vocês visam?
Fiz o filme para falar com adolescentes e público universitário. Não pensei em crianças, obviamente, e acredito mesmo que é preciso já ter um entendimento das coisas para absorver de um modo bacana tudo o que queremos dizer com essa história. Esse era o meu principal desejo. A minha esperança é falar com os jovens e adolescentes. Assim que estrear não sei mais o que irá acontecer, é impossível adivinhar. Ninguém está acostumado com desenho animado brasileiro adulto. Então, temos que ver. O que sabemos é que, depois que assistem, a reação é incrível. Não sei se comprarão o ingresso, pois somos pequenos, a competição é enorme. Mas bate muito forte em quem assiste.
Como foi a seleção do elenco de dubladores?
Tanto o Selton Mello e a Camila Pitanga, quanto o Rodrigo Santoro – que é nosso parceiro, fez o Bicho de Sete Cabeças com a gente, nos conhecemos há anos – não entraram apenas como dubladores. Era deles a cara destes personagens. Primeiro eles foram definidos, depois é que veio a criação. Gravamos as vozes com eles antes, e depois desenhamos em cima daquelas gravações. E eles gravaram sozinhos, sem contracenar com mais ninguém, apenas no estúdio. Não havia trejeitos, fantasias, máscaras de apoio, nada. Só a voz. Por isso fui atrás dos melhores, dos mais densos dessa idade, aqueles que, na minha opinião, conseguiriam dar conta dessa tarefa tão árdua. E a minha sorte foi que os três embarcaram conosco de imediato – o Selton é até co-produtor ao nosso lado. Eles realmente aceitaram de cara. Foram as primeiras opções, nunca chegamos a considerar mais ninguém, e em nenhum momento houve qualquer tipo de arrependimento. Estamos muito satisfeitos.
Chegando agora aos cinemas, o que você espera do público que for assistir a Uma História de Amor e Fúria?
É um filme pequeno, meio cult movie, mas o distribuidor está apostando, acha que pode ser maior. Eu pensava em umas 20 cópias, e vai ser distribuído em 60 no total. Ou seja, eles são ambiciosos. O meu distribuidor é meio romântico, então combina comigo, pois ele acredita e vai atrás. Acho que vai ser muito difícil, o público brasileiro é muito conservador, tudo intimida o meu espectador a comprar este ingresso. Mas o Bicho de Sete Cabeças, que estreou com apenas 50 cópias, também parecia que não iria sobreviver, que ia sair em uma semana, e acabou ficando sete meses em cartaz. Então é assim, a gente acredita e vai atrás. Fizemos o nosso melhor, cabe ao público agora decidir por si.
(Entrevista feita por telefone desde o Rio de Janeiro no dia 04 de abril de 2013)
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