Produtor e diretor de cinema, Yen Tan nasceu na Malásia, em 1975. Antes de completar 20 anos, no entanto, se mudou para os Estados Unidos, com o objetivo de continuar com seus estudos. Só mais tarde o envolvimento com o cinema entrou em sua vida. Realizador de cinco longas-metragens e de quase uma dezena de curtas, foi indicado ao Film Independent Spirit Award e teve algumas de suas obras selecionadas para os festivais de Sundance (EUA) e Veneza (Itália), entre outros. É reconhecido como uma das mais importantes vozes do cinema LGBT atual, tendo sido premiado nos festivais de temática gay & lésbica de Barcelona, Los Angeles, Filadélfia e Portland, entre outros. Muitas dessas conquistas foram para a sua mais recente obra, o drama O Ano de 1985, que está em cartaz nos cinemas brasileiros. Aproveitando essa oportunidade, conversamos com exclusividade com o cineasta, que falou um pouco mais sobre seu processo criativo. Confira!
Olá, Yen. Você nasceu na Malásia. Como se deu o seu envolvimento com o cinema norte-americano?
Sim, nasci e fui criado na Malásia. No entanto, me mudei para os Estados Unidos quando tinha 19 anos. E vim para estudar, para poder entrar em uma universidade. No entanto, minha opção inicial não foi Cinema, e sim, Jornalismo. Mas isso se deu por causa das minhas origens. Lá na Malásia não havia a opção de estudar Cinema, por isso nunca havia pensado a respeito – ainda que o Cinema sempre tivesse sido parte da minha vida, algo pelo qual sempre me interessei. A minha família, que me apoiou para que me mudasse para cá, esperava que me formasse em algo que pudesse me garantir um emprego. Por isso o Jornalismo, entende? Se voltasse para casa com um diploma de Cinema, sei lá o que poderia acontecer (risos). Estudar Jornalismo era ‘a coisa certa a ser feita’. Tive que fazer, tanto por mim, quanto pelos meus pais. O Cinema veio depois.
Hoje em dia você se considera um cineasta, um roteirista ou um jornalista?
Olha, quando penso em mim, penso como um cineasta, antes de qualquer coisa. Principalmente porque escrevo e dirijo os meus próprios filmes. No entanto, o que realmente faço com a minha vida, o que ocupa a maior parte dos meus dias e como pago as minhas contas é como designer gráfico. Levar uma vida, nos Estados Unidos, ainda mais dentro do cinema independente, é muito difícil.
Mas o cinema era uma paixão, mesmo quando estava na Malásia?
Sim, certeza. Sempre foi algo pelo qual me sentia atraído. E mesmo quando morava na Malásia, meus interesses eram voltados a algo mais alternativo, não muito convencional. Quando percebi, nos Estados Unidos, que de fato poderia fazer algo nesse âmbito, mesmo com muito pouco dinheiro, fiquei muito motivado.
O Ano de 1985 foi um curta-metragem de mesmo nome que você dirigiu dois anos antes. Como essa ideia lhe surgiu e como foi esse processo de transformar o curta em longa?
Foi bastante natural. Também não posso dizer que fiz o curta pensando em transformá-lo em um longa, pois não foi nada disso. Primeiro veio um, e depois o outro. Somente quando o curta já estava pronto é que me dei conta que havia mais a respeito daquele universo que valia a pena ser contado. Comecei a escrever uma primeira versão do roteiro, que abordasse o que queria, realmente, dizer a esse respeito. Só quando estava tudo escrito é que tive certeza que teria que ser um longa, e não um outro curta, por exemplo.
O que o levou a escolher o ano específico de 1985 para situar essa história?
A escolha dessa data vem de um lugar mais pessoal. Em 1985 eu tinha 10 anos. E, quando paro e penso a respeito, creio que foi o ano em que pela primeira vez me dei conta de que era gay. Lembro que, ao menos naquela época, ser gay era a mesma coisa que ter AIDS. Com aquela idade, as duas coisas pareciam ser a mesma. Posso dizer, portanto, que não foi uma perspectiva muito saudável sobre a minha sexualidade. Homossexualidade significava morte. Foi por isso, antes de qualquer outra coisa, que acabei escolhendo este ano como título do filme. Mas também por ter sido um período muito significativo. Em 1985 começava, finalmente, a se falar sobre a AIDS na grande mídia. Foi quando o ator Rock Hudson, que era muito conhecido, morreu de AIDS. Foi no meio de 1985 que o presidente Ronald Reagan usou a palavra ‘AIDS’ pela primeira vez, em um discurso público. Antes disso, a epidemia não era nem reconhecida. Foi, também, quando os primeiros testes de HIV começaram a surgir. Ou seja, um ano muito icônico para o tema, e merecia ser melhor explorado como identidade de uma época.
Este não é o primeiro filme que aborda questões LGBT que você dirige. O quão importante é para você seguir trabalhando com essa temática?
Penso que os filmes que faço não respondem a uma agenda política. Os faço porque são pessoais para mim. Por isso que todos os filmes que fiz até hoje se passam dentro do universo LGBT, de uma forma ou de outra. E, no final, a única coisa que conta é se me importo com eles ou não, com as histórias que estou narrando e com esses personagens. Eles precisam me dizer alguma coisa, antes de mais nada.
O elenco de O Ano de 1985 é outro destaque. É difícil apontar quem está melhor. Escreveste a história com eles em mente?
Não chego a escrever minhas histórias com algum ator em mente. O que normalmente acontece é, assim que o roteiro está pronto, ele começa a circular, passa por diversas agências de talentos, e muitos testes são feitos, de ambas as partes. Tanto para descobrir quem estaria interessado em interpretar esses personagens e, destes, os que vão de encontro com o que estou procurando. É uma questão a respeito de quem responde ao material, sabe? Filmes como O Ano de 1985 são muito baratos, então não temos o privilégio de dizer “quero esse ou aquele ator”. Temos que partir daqueles que estão disponíveis.
Como foi o seu trabalho com os atores? Houve ensaios?
Também pelo fato de ser uma produção muito enxuta, não tivemos tempo para ensaios. Conversei com muita gente, a maioria da mesma forma como estamos falando agora, pelo computador, seja por Skype ou facetime. Depois que estava tudo acertado, nos encontrávamos um dia ou dois antes das filmagens, e esse era todo o tempo que tínhamos para um rápido ensaio com as câmeras, apenas para questões de posicionamento e tal. Quando pensava que estava funcionando, filmávamos. Foi bastante rápido. Nada de ensaios, ensaios e ensaios, e depois filmar. Pelo contrário, foi tudo sendo feito quase que ao mesmo tempo. E mesmo o que fizemos, não chegava a ser um ensaio de verdade. Era quase uma leitura das cenas, apenas, de um modo mais monótono, apenas para se familiarizar com o contexto narrativo. Quando era para valer, já estava sendo filmado. O bom do digital é que podemos fazer vários takes da mesma cena (risos). Mas, basicamente tudo o que você vê no filme é composto pelo primeiro ou segundo take.
Esse é o primeiro trabalho de Cory Michael Smith como protagonista. O que há nele que fez você escolhê-lo para esse filme?
Até chegar no Cory, falei com muitos atores. O que senti, no entanto, é que ele foi o único que realmente entendeu o personagem. Não apenas na superfície, mas também numa leitura mais profunda. Ele se conectou com o Adrian de uma maneira muito pessoal, e pensou muito a respeito dele. Eu estava um pouco familiarizado com ele, havia visto alguns dos seus trabalhos anteriores, e isso me deu confiança de que ele poderia, sim, ter um bom desempenho.
O Ano de 1985 lembra, em vários aspectos, o canadense É Apenas o Fim do Mundo (2016), de Xavier Dolan. Você concorda com essa comparação?
Sim, concordo. No entanto, é importante nos situar no tempo. Quando esse filme foi lançado, estávamos no processo de escolha de elenco, com alguns atores até definidos. Primeiros encontros, leituras iniciais, tudo estava acontecendo. Quando ouvi falar sobre ele, pensei: “um outro filme exatamente igual ao meu está sendo lançado”. Claro que bateu um desespero. Porém, quando finalmente consegui assisti-lo, já tinha até filmado O Ano de 1985. E sim, os dois filmes são similares, mas não são iguais. Tudo bem, ambos possuem um personagem principal que está voltando para casa, com algo muito importante para contar para sua família sobre o que está acontecendo com ele. Mas, além disso, não há nada em comum.
É como se fossem dois lados de uma mesma moeda, lado A e lado B.
Exatamente. Até gosto desse filme, preciso confessar. Lembro de ter lido críticas bem controversas, uns amando, outros odiando. No entanto, quando o vi, lembro de ter pensado: “não é nada mal”. Acho que afirmar que são dois lados de uma mesma moeda é um modo muito preciso de descrevê-los. O Ano de 1985 pode partir de um mesmo ponto, mas sua narrativa segue caminhos distintos. Até o modo como cada filme escolhe para representar estes personagens parte de lugares distintos. Naquele tudo é mais verbal, se diz muita coisa, enquanto que o meu é mais sutil, é o não dito, as coisas ficam apenas subentendidas.
Quais são suas principais referências cinematográficas?
Geralmente, sou mais atraído pelo cinema estrangeiro. Se você me perguntar quais são meus filmes favoritos, provavelmente irei citar mais filmes estrangeiros do que norte-americanos. No entanto, quando estou filmando, penso mais em mim mesmo, não quero copiar o estilo de outra pessoa. Sei o que gosto nos outros, mas, ao mesmo tempo, preciso filtrar essas referências para que possa sentir que elas estão vindo através de mim. Precisa fazer sentido para mim. Com O Ano de 1985, meu interesse era em contar uma história que não fosse óbvia, que não fosse tudo preto ou branco. No entanto, quando você o assiste, percebe que ele foi feito em preto e branco (risos). Controle: A História de Ian Curtis (2007), sobre a origem do Joy Division, tem um visual que me agrada muito. Nebraska (2013), do Alexander Payne, que por acaso foi feito nos Estados Unidos, também filmado em preto e branco e tem muita coisa ali que me agrada.
Por quê você escolheu filmar O Ano de 1985 em preto e branco?
Primeiro, acho que, quando pensamos em temática LGBT, ninguém pensa em preto e branco. Então, seria um ponto a se diferenciar. Mas também havia essa vontade de ser respeitoso com as vítimas da AIDS e com os sobreviventes. Imagino que as pessoas diretamente envolvidas com a epidemia, durante os anos 1980, passaram por um período muito horrível. Deve ter sido muito difícil tudo aquilo. Não foi esse universo colorido que imaginamos. Então, o preto e branco tem essa qualidade de fazer tudo parecer mais distante. Acho que era a opção certa para contar esse tipo de história.
É praticamente impossível ficar indiferente a O Ano de 1985. Você esperava essa resposta emocional tão intensa?
Olha, posso dizer “sim” e “não”. Sim porque enquanto filmávamos, até mesmo os atores se mostraram bastante comovidos com a história. Mas, ao mesmo tempo, você nunca sabe como as pessoas irão responder ao que você está contando. É sempre como jogar os dados e esperar para ver o que acontece. Às vezes, tudo pode se voltar contra você, então não dá pra prever. Acho também que O Ano de 1985, além de qualquer outra coisa, é um filme meio azarão, daqueles que ninguém parece dar muita importância. Afinal, é um longa em preto e branco, sobre a epidemia da AIDS, com muitas coisas que não apelam ao grande público. Sabe, quem quer ver um filme sobre isso? Principalmente no que diz respeito às plateias nos Estados Unidos. Eu não tinha nenhuma expectativa sobre como as pessoas iriam responder ao que estava contando.
Quando você percebeu, portanto, que havia feito a coisa certa?
Encontrei espectadores muito abertos, emocionalmente falando. Posso dizer quando a audiência está se conectando com meu filme, ainda mais quando consigo conversar com os espectadores após às sessões. Por tudo isso, sou muito grato por essa resposta. Sinto que, ainda mais nos tempos em que estamos vivendo, as pessoas estão com cada vez menos empatia, principalmente em relação àqueles menos afortunados. Por causa da internet e das redes sociais, estamos mais conectados uns com os outros como nunca antes, e, mesmo assim, nos sentimos mais isolados. Penso que um filme como O Ano de 1985 pode oferecer um pouco dessa empatia que está faltando. Pode não ser exatamente o que estava procurando quando comecei a fazê-lo, mas é um excelente resultado. Significa muito para mim, ainda mais nos dias de hoje.
Você conhece o Brasil e o cinema brasileiro? O que sabe a respeito?
Nunca estive no Brasil, infelizmente. No entanto, sou fã do cinema brasileiro. Gosto muito dos filmes do diretor que fez Aquarius (2016), Kleber Mendonça Filho. Ele é um dos meus cineastas favoritos. Adoro O Som ao Redor (2012), mas, infelizmente, não assisti a nada que ele tenha feito antes. Algo curioso é que o novo trabalho dele, Bacurau (2019), que estará no Festival de Cannes, conta com dois atores de Austin, Texas, que são meus amigos. Então, soube por eles desse filme, o que me deixou muito excitado a respeito. Estou muito curioso.
Você sabia que O Ano de 1985 estreou nos cinemas brasileiros no mesmo dia que Vingadores: Ultimato?
(risos) Pois é, fiquei sabendo. E não só aí, mas na Austrália aconteceu a mesma coisa. Mas não me preocupo nem um pouco, tenho certeza que vamos ganhar essa batalha (risos).
Como você espera que o público brasileiro receba O Ano de 1985?
Essa é uma pergunta que eu gostaria de fazer a você. Acho esse filme, por um lado, tão americano, dentro de um contexto de família norte-americana, que me pergunto se ele fará sentido para o público brasileiro. Se culturalmente é relevante, entende? Por outro lado, não penso que todo mundo quer ver o novo filme dos Vingadores. Eu, por exemplo, nunca assisti a nenhum desses filmes da Marvel. Imagino – e torço – que haja muita gente por aí que talvez tenha interesse em conferir um outro tipo de cinema. E é com esses que espero conseguir algum tipo de conexão.
(Entrevista feita via Skype em Brasil e Estados Unidos em abril de 2019)
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