Daniela Gontijo Alves Pinto, conhecida nacionalmente como Daniela Thomas, é a legítima artista multimídia que muito se ouve falar, mas raramente se encontra com tanta competência. Realizadora, dramaturga, iluminadora, cenógrafa, roteirista e figurinista, ela começou a se destacar no teatro ainda nos anos 1980. Na década seguinte, conquistou a tela grande com um dos primeiros grandes filmes da fase que ficou conhecida como Retomada: Terra Estrangeira (1995), que assinou ao lado de Walter Salles. Nos anos seguintes foram mais três longas ao lado do amigo, e um em parceria com Felipe Hirsch. Faltava ainda aquele para ser exclusivo dela, e essa jornada solitária se deu com Vazante (2017), que teve sua primeira exibição no Festival de Berlim, e no mesmo ano gerou controvérsia ao passar pelo Festival de Brasília. A vontade de seguir à frente dos seus próprios projetos continuou em alta, e poucos meses depois estava de volta com outra obra polêmica: O Banquete, selecionada para o Festival de Gramado, mas que na véspera de sua exibição preferiu se retirar da mostra. A decisão, que deixou muita gente confusa, poderá ser avaliada a partir dessa semana, quando o filme entra finalmente em cartaz por todo o país. E foi sobre esse novo trabalho que a cineasta conversou com exclusividade com a gente. Confira!
Olá, Daniela. O texto de O Banquete nasceu para o teatro, certo? Como foi esse processo de adaptá-lo para o cinema?
Sim, há mais de vinte anos. Mas não queria montar O Banquete num palco italiano, e acabei inventando uma maneira tão complicada de fazê-lo que acabei inviabilizando a produção. Quando o meu amigo/produtor, Beto Amaral, leu o texto, ele achou que já era cinema. Então foi tudo muito tranquilo. Tive a excepcional ajuda dos atores, que, nas duas semanas de ensaios, refizeram praticamente todo o diálogo e me deram uma infinidade de ideias e reflexões sobre o tema.
Você tem uma longa carreira no cinema de parceria com outros cineastas, como Walter Salles e Felipe Hirsch. Como está sendo esse momento de desenvolver trabalhos mais autorais, como Vazante (2017) e O Banquete (2018)?
Um sonho. Foi maravilhoso fazer cinema com esses dois mestres. Aprendi absolutamente tudo o que sei com eles. Mas tem uma hora que é preciso assumir todos os riscos – e acho que deixei pra muito tarde esse momento, porque quero fazer muitos filmes ainda! Tomara que eu tenha energia.
Você chegou a afirmar que O Banquete “é um filme construído pelo seu fascínio pelos atores”. Como foi a escolha do elenco?
Sim, é verdade. O Banquete é um filme construído pelo meu fascínio pelos atores. Sabe a décima vez que você assiste ao mesmo filme do Cassavetes? E se pergunta se já não está na hora de arriscar enfrentar esse desafio? O cinema no rosto do seu ator? Foi o que eu fiz. O casting já foi metade do caminho, né? Atores incríveis que se dispuseram a enfrentar enormes desafios. Tiveram que abandonar as vaidades logo de cara e fazer mergulhos profundos em seus personagens. Minha proposta de filmagem era centrada em planos-sequência de quase uma hora, sem intervalos, sem correções. A câmera em constante movimento do Inti Briones poderia focar qualquer um dos atores, a qualquer momento. E no fundo da sala, um espelho de fora a fora, não permitia a qualquer um deles a mínima desconcentração: todos os dias eram de intensidade máxima.
O que era importante que os atores entregassem ao filme?
Combinamos que o foco central da narrativa estaria nas reações dos personagens, e não nas falas, como é comum. Filmamos com cuidado os silêncios, os olhares críticos, as risadas. Dessa maneira, as nuances das performances puderam sobressair, acredito. E a entrega dos atores já veio desde o ensaio, quando o filme foi desconstruído pelas vivências de cada um deles e os diálogos reconstruídos por todos. Foi uma experiência extraordinária para todos nós, acredito.
O Banquete é fruto, também, de uma parceria com Beto Amaral, que assina contigo a produção do filme. Como se dá o trabalho entre vocês?
O Beto é uma coisa linda que me aconteceu. Quem nos apresentou foi o Felipe Hirsch, e juntos fizemos o Insolação, em 2009. Quando terminamos de montar o filme, ele chegou pra mim e disse: “agora quero produzir um filme seu. O que você tem na gaveta?” E mostrei a ele o Vazante e O Banquete. Ele leu e disse: quero filmar os dois! Foi maravilhoso.
Mas como se dá a divisão de trabalho entre vocês?
Ele, muito tenaz, fez o duro caminho da viabilização financeira de ambos. Se esforçou de todas as maneiras possíveis para viabilizar os meus filmes com todas as idiossincrasias que imaginei: no Vazante, por exemplo, fazendo uma extensa pesquisa histórica e dos quilombos da região, ou fazendo uma longa preparação no local das filmagens, criando ateliês de confecção de figurinos também no local, entre muitos outros detalhes. Um apaixonado pelos projetos.Além disso, quando cheguei num impasse com o roteiro do Vazante, ele se ofereceu para me ajudar. Eu topei, desconfiada, e ele criou os personagens do líder dos africanos e da Feliciana, a escrava sexual do patrão e acabamos escrevendo o roteiro final juntos. Um super parceiro.
Ainda que a trama se passe no início dos anos 1990, a ação de O Banquete parece dialogar fortemente com o momento político e social do Brasil de hoje. Isso é intencional?
Não é intencional, mas acho que estamos vivendo um paradoxo. Ainda que as inúmeras denúncias de assédio estejam nos fazendo repensar as relações entre os sexos, o que fica evidente é a potência do tema. Sexo e poder estão na ordem do dia. É só lembrar a gravação do Trump durante a campanha, bravatando sobre como tinha a mulher que quisesse, quando quisesse, “by her cunt”. O mesmo candidato que derrotou a mulher mais graficamente traída dos últimos tempos, Hillary Clinton. E lembrar também que Harvey Weinstein, por exemplo, o inquestionável rei de Hollywood desde os anos 1990, esteve imbricado por todo esse tempo – molestando e estuprando por aí, sem que nada transparecesse – na vida e na carreira das maiores estrelas do cinema mundial. Há também as denúncias de assédio por aqui, somando-se a cada dia. Sexo e poder. Poder e sexo.
Como você vê esse paralelo entre o filme e a realidade de hoje?
Quando comecei a escrever O Banquete, há mais de vinte anos, a sensação de círculo vicioso das relações entre os sexos era frustrante e parecia algo incontornável. Acredito que as coisas mudaram e que a hegemonia do desejo andro-euro-cêntrico, que nos trouxe de Medeia até aqui, está desmontando. A própria ideia de uma humanidade binária está sendo desafiada. Sinto que os conceitos sobre gênero e orientação sexual estão mudando numa velocidade incrível. É um momento muito poderoso.
(Entrevista feita por email em setembro de 2018)
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