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Lançado pela Sereia Distribuidora, O Barco (2018) é uma viagem sensorial por uma ilha isolada em que personagens fazem parte de uma mitologia bastante própria, embora de raízes clássicas e reconhecíveis. Baseado num conto escrito pelo também cearense Carlos Emílio Corrêa Lima, o cineasta Petrus Cariry encarou as dificuldades impostas pela adaptação que parecia daquelas “infilmáveis”, tendo êxito enorme ao transformar sentimentos e sensações em imagens. Embora seja uma produção visualmente suntuosa, cujo rigor está a serviço da criação de um mundo denso, assim, o fator humano nunca sai de foco. Por isso, o elenco escalado é de suma importância, inclusive os intérpretes com os quais Petrus tinha afinidade prévia. Verônica Cavalcanti e Everaldo Pontes trabalharam com o diretor na parte derradeira da Trilogia da Morte, Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015). Ela havia estrelado seu longa-metragem de estreia, O Grão (2007), assim sendo-lhe familiar. “Do meu ponto de vista, O Barco propõe um mergulho nessas águas, ora ensolaradas ora nebulosas e sombrias, assim como o próprio movimento da vida. O que isso suscita no espectador vai depender da profundidade do mergulho”, afirmou Verônica.

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A PARCERIA DE OUTROS CARNAVAIS
Petrus Cariry sabe muito bem como é valoroso esse “trabalho em família”. Filho do grande cineasta Rosemberg Cariry, irmão da produtora Bárbara Cariry, ele se acostumou a colaborar com pessoas que, aos poucos, com o tempo, se tornam parte do time semelhante à trupe nascida sob o mesmo teto. Com Verônica e Everaldo não é diferente.

“Ao ler o roteiro pela primeira vez, me senti povoada por imagens. Eram descrições muito potentes, poéticas, carregadas de mistério. A figura da mãe me encantou de cara. A guardiã das palavras escritas e enterradas, palavras que ela tão pouco conhecia, mas que entendia ser a possibilidade de decifrar os perigos. A que cuida, alimenta, protege. Me encantou e me assustou o desafio de trabalhar essa personagem. Sou muito grata por ter tido a oportunidade de trabalhar em três filmes de Petrus. Todos eles são muito importantes para o meu amadurecimento enquanto atriz. O Grão, meu primeiro trabalho com ele, narra a estória de uma avó enferma que prepara o neto para o momento de sua morte. Todas as noites, ele adormece embalado por estórias contadas pela avó, na tentativa de fazê-lo compreender a necessidade de sua partida. Isso em um cenário de extrema pobreza e escassez de bens materiais, não de afetos. Foi um trabalho que me marcou bastante. Depois veio Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois e em seguida O Barco. Eu amo trabalhar com os mesmos diretores. Talvez porque venho do teatro, do trabalho permanente coletivo, da formação de grupo. Integro há 10 anos O Coletivo de Teatro Alfenim/PB. Quando trabalho com os mesmos diretores, sinto maior cumplicidade, quebra de protocolos de adaptação e sensação de crescer juntos. É assim que me sinto”, disse Verônica à reportagem do Papo de Cinema.

“Essa parceria com o Petrus vem de outra parceria, a minha com Rosemberg Cariry. Petrus me descobriu fotografando os filmes do pai: Siri-ará (2008), Notícias do Fim do Mundo (2019) e Os Pobres Diabos (2013), daí veio o primeiro com Petrus, Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois, um trabalho brilhante e maduro de direção de atores. Foi mágico e desafiante, sem falar do aprendizado, a construção, ao lado de Petrus, Bárbara Cariry e Sabrina Greve, daquele outro tipo de velho. Acho que a grande e saudável vantagem de trabalhar com os Cariry (Rosemberg, Petrus, Bárbara e Teta) é a nossa amizade nordestina de luta por um cinema verdadeiro, alternativo e independente de modismos e mercado. É uma honra estar presente e contribuir com o amadurecimento estético e conceitual desse cinema. O processo de discussões, ensaios e filmagem do Petrus é um dos mais ricos e férteis do nosso cinema, sua abertura para as contribuições do elenco é rara e isso é, verdadeiramente, o grande desafio e a alma da parceria”, disse Everaldo.

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Everaldo Pontes no Cine Ceará – Foto: Rogério Resende


OS PERSONAGENS: ESMERINA E CEGO
Verônica interpreta em O Barco a mãe que vive às voltas com as letras, na tentativa de fazê-las, juntas, ressignificando-se em grupo, ganhar simbologias e potências. A mulher é aquela que observa com cuidado a aspiração do filho primogênito, A (Rômulo Braga), de evadir do território e encontrar-se noutras paragens.

“A preparação para o personagem Esmerina teve início com o estudo do roteiro e, posteriormente, na própria locação de filmagem, uma semana antes do início das gravações, quando ficamos hospedados a poucos metros da locação, o que me possibilitou ter um contato constante com o universo da estória e da personagem; a casa, os utensílios, a natureza. Foram dias de aguçar os sentidos para observação e escuta. Uma necessidade de me sentir acolhida pela natureza daquele lugar. Pelas águas, areia, falésias, vento… Eu sentia que somente ela, a natureza, poderia me preparar para fazer parte daquela estória”, disse Verônica.

Everaldo Pontes, que incorpora um sujeito claramente decalcado do profeta Tirésias, o arauto da cidade de Tebas. É o cego que prenuncia as tormentas, aquele que observa a agitação do local, bem como as dos personagens.

“Acho que o personagem já rondava o meu corpo. O meu tipo físico já trazia informações sobre aquele velho conhecedor do passado e do futuro da vida daquela gente praieira. A preparação aconteceu nos poucos ensaios e discussões que tivemos antes das filmagens e, principalmente, no momento das gravações. Petrus é um diretor que sabe “esperar” o tempo do ator e isso é maravilhoso, ajuda e determina muito a verdade na construção do personagem. O que mais me chamou a atenção no personagem e que foi o meu maior desafio, foi a sua capacidade/experiência no trato do universo do sobre-natural, sua relação com os fenômenos da natureza, a sua percepção dos ventos, das marés em relação à natureza humana. O seu comportamento, a sua simplicidade fora do comum e o seu jeito de lidar com os fatos da história. Muito difícil de trazer para o meu corpo e para o universo particular do meu olhar. Foi tão forte o processo que aconteceu um fato inesperado na minha experiência como ator: depois da gravação do pesadelo do personagem, nesta noite eu tive um pesadelo real, tão grande, com gritos e batidas na parede do quarto, que devo ter acordado quase todos os outros hóspedes  da pousada onde estávamos”, afirmou Everaldo.

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Verônica Cavalcanti, Nanego Lira, Petrus Cariry e Bárbara Cariry – Foto: Beto-Skeff

 

CINE-POESIA

Rimando com o lirismo das imagens evocativas de O Barco, terminamos esta entrevista em ritmo de homenagem, com a poesia de Everaldo Pontes, de escritura iniciada durante as filmagens e encerrada há pouco, ao balanço das memórias, inclusive porque o ator nos revela que ainda não assistiu ao filme. “Sempre soube que ir demais ao cinema nos deixa com vontade de fazer poesia!! É o que acontece comigo. Não vi ainda O Barco, mas, invocando a pouca memória que ainda me resta, vou terminar aqui o texto/poesia que comecei quando estávamos filmando”:

 

Das plataformas memoriais de Petrus
O barco surge como uma espaçonave
Do tempo
Do mar
Do vento
De um velho que vê tudo
De uma fábula praieira
Vigor na invocação das lendas
Nas metáforas visuais da noite
Na liberdade dos personagens
Cinema de cor, de velas
O barco da liberdade e da perdição
Atmosferas contemplativas
A solidão dos rostos
Olhares que falam
O desconforto da liberdade
O sabor dos aforismos hipocondríacos
Além da praia
Além do barco
Além do tempo.

 

(Nossos agradecimentos a Diego Benevides, sem o qual essa matéria não seria possível)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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