O cinema corre nas veias de Petrus Cariry desde pequeno. Filho do grande Rosemberg Cariry, tem na irmã, Bárbara, uma das suas principais parceiras no fazer cinematográfico, pois é ela quem assume a produção da maioria dos seus trabalhos. Atacando em todas as frentes, atua com roteirista, diretor de fotografia, montador, produtor e, claro, diretor. Os três primeiros longas que assinou – O Grão (2007), Mãe e Filha (2011) e Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015) – ganharam o nome de “Trilogia da Morte”, e lhe renderam reconhecimentos por todo o Brasil e também no exterior. Agora, dá seu passo seguinte, explorando novas ideias e conceitos. O resultado é o drama O Barco, premiado no Brasil (Cine Ceará, Rio Fantastik, Encontro dos Sertões) e no exterior (Espanha), além de ter passado por eventos nos Estados Unidos, Alemanha e Itália, entre outros. Com estreia marcada nos cinemas para o próximo dia 05 de novembro, o cineasta conversou com a gente e falou mais sobre o projeto, suas referências e motivações. Confira!
Petrus, como surgiu a ideia de O Barco?
O Barco nasceu dentro de mim a partir da leitura de um conto do Carlos Emílio Corrêa Lima que está no livro Ofos (1984). Esse foi um dos livros da minha adolescência, quando tinha 17, 18 anos. Chamou bastante a minha atenção por falar desse barco misterioso que chega e muda uma comunidade, e dessa mulher que tinha 26 filhos, cada um batizado com uma letra. Ele ficou martelando na minha cabeça por anos. Quando tinha acabado de filmar a Trilogia da Morte, me veio de novo a vontade de adaptar essa história. Acontece que eram apenas quatro páginas, muitas descrições de imagens, sem diálogos. Um desafio muito grande. Mas decidi enfrentar, junto com o Firmino Holanda e o Rosemberg Cariry, meu pai. Nós três é que assinamos o roteiro. Achava que poderia ser visualmente muito interessante, e dramaturgicamente também. Essa coisa do jogo das palavras, dessa mulher que tenta decifrar o futuro a partir dos filhos. Também acrescentamos outros personagens – o cego, por exemplo, não estava no conto original. A Ana também não.
O Barco é um filme muito sensorial. Quão importante são os aspectos técnicos da produção?
Sempre procuro trabalhar com a mesma equipe, pessoas que confio bastante. Diretor de arte, cenógrafo, figurino, os roteiristas. Como acontece com o próprio elenco, é preciso ter uma relação de confiança muito grande. O roteiro, por mais que seja fechado, durante o processo costumo permitir várias aberturas e trocas. Não estão todas as possibilidades definidas, tem coisas que gosto de propor na hora da filmagem. Às vezes não passo de propósito algumas informações para o ator para deixá-lo no suspense. Mas longe de gerar tensões exacerbadas.
Dois elementos se destacam: a Fotografia e o Som. O quanto exigiram de ti?
O tempo que dedico à fotografia e à pós-produção, principalmente à mixagem de som, é muito importante. No caso de O Barco, o mar é um personagem. Ele aprisiona, uma hora está mais tranquilo, noutra castiga. Ele vibra, e os demais personagens sentem. Alguns elementos eletroacústicos tremem como ele, na mesma batida. Passei três meses mixando esse filme, analisando cada textura, corrigindo a cor. Fotografar, por outro lado, costuma ser mais fácil.
Quais são tuas principais referências?
Rembrandt é sempre uma referência – gosto muito de pintura. Quando as pessoas me dizem que as imagens dos meus filmes sem parecem com telas, acho que é isso mesmo. Fotografo dessa forma. Nesse, no entanto, teve um desafio maior, pois havia muito movimento de câmera. Também, com todos aqueles filhos. Mas veja só: se você pegar um filme contemporâneo, mas que seja uma história de época, irá perceber muita luz. As velas que aparecem estão só de enfeite. No nosso caso, não. As fontes primárias de luz eram os candeeiros. Tinha cena com apenas um ou dois deles. Imagina filmar assim? Tecnicamente é muito complicado.
Como era formada a equipe?
Era um número razoável de pessoas, digamos. Trinta ou quarenta indivíduos, para se ter uma ideia. Mas é sempre uma operação muito calculada, o foquista sofre. Optei por filmar usando apenas a luz da natureza. Muita coisa foi filmada com a luz da lua, também, com uma lente super aberta. Isso tudo para homenagear o Kubrick que há dentro de mim, fazer o meu Barry Lyndon (1975). Teve plano só com uma fonte de luz, uma coisa muito louca.
Como organizar todas as influências?
Isso acontece durante a escrita do roteiro. Quando estou escrevendo, já vou pensando na decupagem. Tenho todos os planos na cabeça. Lógico, a realidade sempre mostra algo diferente, traz outras opções, mas muita coisa já vem pronta. Chego a sonhar com o filme, com os planos. Como também vou fotografar, só depende de mim. Não tenho com quem mais discutir. É comigo mesmo, e pronto. No máximo, também com a Bárbara Cariry, minha irmã e produtora, com quem me permito fazer algumas trocas. No caso de O Barco, sonhei muito com os planos do filme. É um processo que acaba ficando rápido, a ideia já vem pronta. Ao mesmo tempo, me deixa exaurido. Todo filme, quando termina, digo que não vou mais fotografar. (risos)
A equipe técnica é a mesma de um filme para o outro?
A maioria, sim. É como uma espécie de família. Seguimos trabalhando juntos, já confiamos bastante uns nos outros. Às vezes, é um projeto que tem um pouquinho mais de dinheiro, outras não tem, mas tenho certeza que topam o que a gente propor. E como já nos conhecemos, temos intimidade. Mas faço questão de enlouquecer sozinho (risos), sei que não preciso passar os perrengues para os atores, por exemplo. Nesse filme, acumulo as funções de direção, fotografia e roteiro. É bastante coisa. Mas não tenho porque sobrecarregar os outros. Então, quando estou no meu quarto, é que fico pirando. Quando sinto que tá pronto, vou dividir com eles. Saio do hotel com o filme pré-montado. Tudo na minha cabeça. Um filme permite tantas possibilidades que vou mais ou menos organizando pra não me perder.
O Barco teve uma longa carreira por festivais. Como você tem percebido a recepção ao filme?
Pois é, foi um filme que circulou bastante. Mas acontece que a gente não tem como estar em todos os lugares. Quando foi selecionado para um festival na Espanha, por exemplo, foi na mesma época do Cine Ceará, então a gente precisou escolher. Mas é sempre muito interessante as reações que provoca nas pessoas. Teve gente que viu a Ana como se fosse uma sereia, outros ficaram fascinados pelo jogo das palavras… é muito bacana.
A Ana é como se fosse uma Sherazade, não?
Sim, com certeza. Exatamente isso. Ela vem das Mil e Uma Noites. Tem até uma referência clara no filme quanto a isso. No final se diz que ela teria continuado “por noites, e noites, e noites…”. É uma noite sem fim.
Como é terminar um filme?
É um ato de abandono. A montagem acaba virando um processo sem fim. Ele começa enorme, com tudo que foi filmado. E vou esculpindo as arestas. É exatamente assim, como uma escultura. Só que chega num ponto que, se for além, começa a deformar. Então, é a hora de abandonar. Sou obsessivo quando estou trabalhando. Preciso de alguém que se aproxime e me diga: “olha, acho que já deu”. Até porque tem outras coisas esperando para serem feitas, né? Tenho outros projetos para tocar. Então, tem que largar. Senão, vira um processo sem fim. Você pode passar o resto da vida mixando aquele filme. E às vezes, fica girando em torno do próprio rabo.
Você pensou de imediato no Rômulo Braga para viver o protagonista?
Já havia trabalhado com ele em um curta do Marcelo Ikeda, O Homem que Virou Armário (2015). E gostei muito dele nesse filme, é um ator muito concentrado. Vi que tinha exatamente o que precisava para esse personagem. Por isso, foi minha primeira opção. Quando comentei com ele, não sei se levou muito à sério, tem um jeito desconfiado (risos). Mas tinha gostado, sabia que tinha que ser ele. Tempos depois, quando fomos filmar, o chamei de novo e veio. A experiência foi ótima.
E depois de O Barco, quais os próximos passos do Petrus Cariry?
Esse filme já demorou demais para sair, devia ter sido lançado há tempos. Tenho um documentário pronto, o A Jangada de Welles (2020), que veio quando decidi retomar um média-metragem que havia feito anos atrás. Tem muitas entrevistas daquela época, mas coisa nova também. Acho que ficou bacana. E quero fazer mais. Fiz a fotografia de um outro longa, o Currais (2019), e tem também o novo longa do meu pai. Tem bastante coisa aí.
(Entrevista feita ao vivo em Fortaleza, CE)
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