Valerie Pachner está vivendo um momento muito especial. Com apenas 33 anos, já trabalhou ao lado de alguns dos maiores diretores de todos os tempos, além de ter sido premiada por suas atuações na Áustria, na Alemanha e até no México. Agora, está em destaque no Brasil com o drama O Chão Sob Meus Pés (2019), exibido no Festival de Berlim e premiado nos Estados Unidos, entre outros lugares. O drama, que tinha previsão de ser lançado nos cinemas brasileiros em 2020, teve sua estreia adiada por causa da pandemia do COVID-19. Agora, está disponível com exclusividade na plataforma Supo Mungam Plus. E o melhor: o acesso a esse título é gratuito, mesmo aos não-assinantes! Imperdível! Pra saber mais sobre o filme, nós conversamos com exclusividade com Pachner, protagonista da história, que falou sobre esse projeto e outros, como sua estreia em Hollywood em uma franquia de muito sucesso. Confira a seguir!
Olá, Valerie. Quem é Lola, e qual foi a sua primeira impressão ao ler o roteiro?
O que senti foi de que era algo que não podia deixar passar, teria que fazer essa personagem. O que mais me chamou atenção foi o fato de que era alguém completamente consumida pela própria ambição. Essa necessidade de ter, de ser ou conquistar algo ou alguma coisa. Isso me atingiu em cheio, pois é algo comum de se ver, não apenas em grandes corporações, mas também no mundo das artes. Acontece com frequência entre os artistas. Esse pensamento de que você precisa atingir um certo status para que possa ser alguém, sabe? Para ser considerada bem-sucedida, você tem que engolir suas emoções e se dedicar ao máximo. É como se ignorasse partes dela própria, alterasse sua personalidade, em nome de algo que nem ela sabe ao certo o quê. Como se fosse necessário para garantir sua sobrevivência. Lola é uma mulher sensível, só que não se permite ser assim. Foi uma experiência assustadora descobri-la e, ao mesmo tempo, de grande conhecimento. Trata-se de um filme muito interessante que fala sobre um tipo de vida que pode estar próximo de nós. A gente sempre soube que esse tipo de pessoa existe, mas ter que se confrontar diretamente com ela foi revelador.
É uma mulher dividida, como se compartimentasse os sentimentos.
Sim, mas é uma obrigação que ela mesmo se impõe. Está nesse jogo para alcançar o sucesso, e não lhe importa o preço a ser pago. Foi isso que me atraiu nela, o que a tornou tão interessante de interpretar. Como se estivesse sempre se esforçando para manter um segredo, que a todo momento alguém pudesse desmascará-la. Acho que nem eu consigo entendê-la por completo.
Como é o teu processo de criação do personagem?
Costumo dar mergulhos profundos. Lembro, ainda durante as filmagens, de ter me apoiado na nossa diretora, a Marie Kreutzer. Quando gritava o “corta” no final do dia, costumava ter ataques de riso, quase descontrolados, pois só assim conseguia me livrar da Lola, entende? Nas primeiras vezes, Marie se assustava: “o que você está fazendo, sério que ela é tão ruim assim contigo?”. Mas aos poucos foi se acostumando (risos). E era algo que precisava fazer, pois o que Lola faz é terrível, e não queria levar aquele sentimento comigo.
Como O Chão Sob Meus Pés pode contribuir com a discussão a respeito da saúde mental de uma pessoa?
Acho que de muitas maneiras. Claro que a mais óbvia é quando alguém sofre de uma doença patológica, como a esquizofrenia, que é o caso de Conny, a irmã dela. Só de expor e permitir que se veja como a vida pode ser dura para aqueles nessas condições – e também os que estão ao lado desses – já representa um grande avanço. O fato de ser tão estigmatizada deixa tudo ainda pior. Não é algo que você possa falar a respeito com qualquer um. E os parentes também sofrem com tudo isso. É algo desafiador, devemos sempre ter em mente, e não tentar esquecer, como se fosse possível jogar pra debaixo do tapete, entende? Doenças, fraquezas e debilidades sempre farão parte da nossa sociedade. Não se pode tentar escondê-las. Temos que aceitar esse fato e aprender a lidar com ele. Pois isso nos torna mais fortes. É através dessa vulnerabilidade que nos tornamos resistentes.
Isso que torna Lola uma personagem com a qual o espectador consegue se identificar.
Exato, pois ela também é frágil. Não está doente, mas é só uma questão de diagnóstico, pois tem seus problemas com os quais lidar. E é isso que gosto nela, pois é uma mulher normal, igual a muitas outras. É totalmente funcional, está sempre em atividade. Claro que os dramas pessoais dela não são tão complicados quanto os da irmã, por exemplo. Nunca terá que se internar numa clínica, acredito. Mas também pesam, e precisa fazer algo a respeito. Você acaba sentindo pena dela, como se pedisse que parasse com tudo e respirasse um pouco. Afinal, precisa cuidar de si. Até seu corpo está dando sinais de que nem tudo está certo, que algo está lhe afetando. Mas não está atenta a isso. É por isso que tudo começa a dar errado para ela.
Uma parte importante da identidade de Lola é a orientação sexual dela. Como foi para você desenvolver esse lado?
Não sei se você sabe, mas, inicialmente, o papel de Elise, a minha chefe, que é interpretada por Mavie Hörbiger, era de um homem. No roteiro, havia sido escrito como um personagem masculino. O que aconteceu foi que a diretora não conseguiu encontrar um ator que se ajustasse a esse tipo. Nenhum ator aceitou ser coadjuvante de uma mulher nessa história. Então, no último minuto, quando as filmagens já tinham data para começar, Marie decidiu testar como Mavie funcionaria em cena, ao meu lado. E quando se deu conta, tudo pareceu fazer mais sentido. Tanto foi que nem chegou a mudar os diálogos – a única alteração foi o nome. E todo mundo concordou: tinha que ser ela. Pra mim, não fez a menor diferença. Mavie, de fato, era quem melhor se encaixou como parceira de Lola. E o sexo dela não importa. Foi até melhor. A comunidade LGBTQIA+ abraçou o filme de uma maneira que nem imaginávamos que seria possível. Afinal, o registro do relacionamento das duas é absolutamente normal, não está no centro da questão. É só mais um detalhe, mais uma camada da personalidade dela.
Vamos falar agora sobre outro relacionamento dela, com a irmã, que é cheio de altos e baixos. Como foi o trabalho com Pia Hierzegger?
Ah, amo ela. O engraçado entre nós foi que nos sentimos como irmãs desde o primeiro dia. Criamos um laço forte. Quer dizer, não sei se ela chegou a se sentir assim, mas eu me sentia. Sentia uma confiança muito grande. Por outro lado, ela era agressiva, dona de um comportamento surpreendente. Realmente foi possível sentir essa coisa de amor e ódio. O que é algo comum quando você tem alguém nessa situação na família, pois, por mais que você goste, é desgastante. São sentimentos conflitantes.
O Chão Sob Meus Pés é dirigido por Marie Kreutzer. Existe alguma diferença para você ser dirigida por uma mulher ou por um homem?
Existe, sim. Mas, mais do que isso, é um debate importante pelo qual estamos passando. Com certeza é diferente pra mim trabalhar com uma diretora, pois há questões que entre mulheres o entendimento se dá facilitado. Porém, no trabalho em si, no dia a dia, o fazer cinematográfico, isso pouco importa. É um ser humano, que está dirigindo. Ponto. É difícil para mim dizer isso, pois não quero ser mal-entendida. Não tenho intenção alguma em menosprezar nenhum gênero. Claro que é importante que mais mulheres estejam também atrás das câmeras. A necessidade de mudança é real. No entanto, preciso admitir que, para mim, enquanto artista, não me importo com o sexo da pessoa que está na direção. Desde que haja conexão, farei o meu trabalho. Por outro lado, num contexto mais amplo, acho incrível que estejam se abrindo mais oportunidades para diretoras. Essas vozes precisam ser ouvidas, e é urgente que se contem mais histórias sobre mulheres, e que sejam narradas por pessoas não cis, não brancas, não heterossexuais.
Qual foi o maior desafio que enfrentou durante a realização de O Chão Sob Meus Pés?
Acho que foi ter que lidar com essa dureza, que é a principal característica da personagem. Tanto emocionalmente, como também fisicamente, foi bastante exaustivo. Como falei antes, todo dia, ao término das filmagens, sentia esse peso em mim. E enfrentar isso no dia a dia, sem folga, foi complicado. Lembro de amigos comentarem o quanto eu estava mudada, até na minha aparência. A tensão era grande.
O Chão Sob Meus Pés foi selecionado para o Festival de Berlim, e você foi premiada como Melhor Atriz por esse desempenho na Alemanha. Você acreditava que o filme, e o seu trabalho, pudessem alcançar esse reconhecimento?
Não. Mas também, preciso dizer, nunca espero por isso quando faço um filme. Não foi só nesse caso. Não tenho como hábito ficar pensando no que irá acontecer após terminar a minha parte, que são as filmagens. Não penso em festivais, nem quando será a data de estreia. Minha única preocupação é estar presente para o personagem e ter uma boa compreensão da história. Como a audiência irá reagir não me diz respeito. É só eu e o que preciso fazer, e nada mais (risos). Acho que isso me permite mais liberdade de composição. Se você decide pensar em tudo, acaba ficando preso nos detalhes, e não conseguirá se concentrar. Se você segue a sua verdade e se mantém fiel à sua arte, estará no caminho certo. É impossível agradar a todos. Por isso, é melhor ficar atento ao que você pensa e ao seu modo de agir. É isso que faço. E tudo que acontece depois, é maravilhoso, mas não tão importante quanto o que vivi no set.
Você está num momento especial da sua carreira, tendo participado também dos premiados Egon Schiele: Morte e a Donzela (2016), que lhe valeu o prêmio de Melhor Atriz na Áustria, e Uma Vida Oculta (2019), do aclamado Terrence Malick.
Ter participado destes três filmes foi realmente incrível, não posso negar. Sou muito feliz e grata por ter tido essas oportunidades. E ter trabalhado com esses diretores maravilhosos, foi inesquecível. Acho também que tive sorte. Nesse momento, no entanto, minha felicidade se resume a algumas semanas de folga, pois realmente estava muito cansada (risos). O sentimento é que tudo aconteceu muito rápido. Nunca foi minha intenção fazer cinema. Sou uma atriz do teatro, foi onde comecei. Fiz quatro anos de escola de teatro, e passei mais quatro atuando apenas nos palcos. Nunca imaginei que estaria envolvida com filmes. Era insegura, não me achava bonita o suficiente. Sei lá, muitas coisas passam pela nossa cabeça. Mas o cinema aconteceu, meio que ao acaso.
Quais são agora teus próximos passos?
A questão é que tudo é muito lento, esses trabalhos, por exemplo, faz anos que fiz, e só agora estão sendo exibidos. Então, levei tempo até entender o que tinha acontecido. O desafio, agora, é encontrar o equilíbrio entre o que quero fazer, projetos que tenham algum significado artístico relevante, e também aproveitar as coisas interessantes que estão aparecendo pelo caminho. Até agora, disse “não” para algumas séries, mas não por causa do projeto, mas porque não queria ficar comprometida com uma mesma coisa por muito tempo. Aprecio a minha liberdade. E adoro fazer filmes. Esse cenário de oportunidades está mudando rapidamente. Mas tem muita coisa curiosa, menores, que também me interessam. Estou empolgada com tudo que pode acontecer.
Você tem outros longas, já filmados, que ainda não estrearam?
Sim. Posso dizer agora, estou no próximo King’s Man: A Origem (2021), que já devia ter estreado, mas por causa da pandemia segue no aguardo. A data original era setembro de 2020, mas agora, ninguém sabe nada ao certo.
Como foi ter participado de King’s Man: A Origem? Você já era fã da franquia?
Sim, adoro os dois filmes anteriores. Foi interessante ter participado desse filme. Uma experiência completamente diferente de tudo que já havia feito antes. Ter entrado nesse mundo, algo completamente distante do que conhecia, foi especial. Há muita pós-produção, efeitos especiais, e os diálogos são rápidos. Tudo num outro ritmo. É uma realidade artificial, mas no seu jeito próprio de ser. E isso também foi um grande desafio. Adorei ter feito parte, era quase como estar dentro de uma história em quadrinhos. Há muito humor, também. Aproveitei bem tudo que me foi ofertado.
Você já esteve no Brasil?
Por mais incrível que possa parecer: sim! E adorei! Foi em 2011, se não me engano. Fui com duas amigas, e nos divertimos muito. A maior parte do tempo ficamos no Rio de Janeiro, bem turistas, só conhecendo o lugar. Eu costumava viajar bastante, sempre gostei de conhecer lugares novos. Lembro que, nessa ocasião, passei uma semana em Buenos Aires, na Argentina, e depois fui para o Rio de Janeiro. Minha maior curiosidade era conhecer o Augusto Boal e a companhia de teatro dele. Era um teatro muito político, e isso me atraía. Cheguei a ir até lá, participei de alguns workshops, e a vontade que tinha era de ficar para sempre. O Rio é um lugar maravilhoso. Não queria mais voltar. Lembro de ter visitado Santa Tereza, e foi mágico. Era uma casa gigantesca, com biblioteca, sala de dança, chegaram a me oferecer um quarto. Era barato, por muito pouco não fiquei. Foi uma das melhores experiências da minha vida. Nos anos seguintes, volta e meia me vinha o pensamento: “se isso que estou fazendo agora não der certo, ainda posso voltar ao Brasil”.
Como você imagina que O Chão Sob Seus Pés será recebido pelos brasileiros?
Adoro o Brasil, mas não conheço o país tão a fundo assim. Mas não penso que as diferenças possam ser tão grandes de como foi em outros lugares do mundo. Acredito que possa ser mais ou menos como foi na Inglaterra, ou nos Estados Unidos. As pessoas têm realmente gostado do nosso filme. Por outro lado, sabemos que não é uma história para todo mundo. Muita gente tem sido tocada pelos temas que abordamos nessa história, a questão da saúde mental, ou como a comunidade LGBTQIA+ tem abraçado o que fizemos. Então, espero que gostem.
(Entrevista feita via zoom, entre Brasil e Áustria, em junho de 2020)