O cineasta paraibano Paulo Caldas, o mesmo do cultuado nordestern Baile Perfumado (1996), volta agora ao circuito comercial de cinema com a sua nova realização. O Circo Voltou (2021) chegou nesta quinta-feira, 30, às telonas depois de um percurso que começou com as filmagens um pouco antes do alastramento da Covid-19. Como nos conta nesta entrevista exclusiva, o artista teve um contato profundo com a trupe do Circo Spadoni, viajando durante cerca de três meses com ela entre a cidade de São Paulo e Major Isidoro, localizada no sertão alagoano. O filme se nega a olhar o circo como um fantasma do passado, a isso preferindo observar a sua continuidade, algo representado pela criança que vivencia essa realidade nômade com muito entusiasmo e pretende perpetuar o legado de seu pai que, por sua vez, também continuava uma tradição familiar. Sem mais delongas, confira esse nosso bate-papo exclusivo em que Paulo Caldas fala do processo, da importância da montagem e de como encarar os desafios inerentes a um documentário construído durante uma viagem atravessada por imprevistos de várias ordens.
Como surgiu o seu interesse por esse assunto e, especificamente, como se deu o encontro com a trupe do Circo Spadone?
A ideia de fazer um filme tendo como tema o circo vinha de um tempo…acho que é desejo de muitos cineastas, pois o circo possui elementos bastante cinematográficos. Os produtores Juliana Lira e Alberto Gonçalves me procuraram e disseram que tinham a ideia de fazer um filme sobre a vida do José Wilson, o proprietário do Spadoni. Conhecia ele de nome, principalmente por conta da Escola Circo Picadeiro. Imediatamente me interessei pelo projeto e fui conhecer o Zé. Nessa primeira conversa, ele mencionou esse sonho de voltar a Major Isidoro e se apresentar em sua cidade natal, onde o tio dele fundou o Circo Spadone. O sonho se transformou na intenção de fazer o filme desse jeito. Achamos incrível a oportunidade de fazer um road movie acompanhando essa viagem.
Fazer um documentário na estrada é estar ainda mais a mercê de contratempos e imprevistos, do que a realidade oferece de subsídios ao filme. Como foi lidar com os acasos nesse projeto?
Nunca tinha feito um road movie. Diferentemente da maioria dos filmes desse tipo, no nosso não tínhamos somente um carro, mas um comboio com carretas. Somando a trupe e a equipe dava mais de 50 pessoas. Dormíamos cada dia num hotel diferente e demoramos três semanas para chegar a Alagoas. Andávamos cerca de 300 quilômetros por dia, levando em consideração a necessidade de filme, e fazíamos apenas uma refeição por dia. Nos preparamos para ter as câmeras na estrada em todos os veículos. Nosso planejamento era para justamente estarmos aptos a deixar as coisas acontecerem. Optamos por fazer um filme não clássico, sem aquela lógica de depoimentos, pois queríamos captar a naturalidade deles. No entanto, acreditamos em algo que se comprovou: eles, como artistas circenses, são também atrizes e atores, nesse caso se autorepresentando. Rodamos no fim de 2019, ou seja, antes da pandemia da Covid-19, então mostramos um Brasil que não existe mais. Tivemos a imensa sorte de viabilizar o filme. Passamos quase dois anos montando, pois tínhamos muitas câmeras, duas equipes completas de documentário, uma dirigida por mim e a outra pela Bárbara Cunha. Claro, geramos um material enorme.
E como foi a seleção e a costura dos vários vieses que identificamos no filme? Tem ali uma jornada pessoal, a narrativa da continuidade, as histórias íntimas, a conexão com quilombolas e indígenas. Como foi transformar tudo isso num único filme e não perder o foco?
O processo de montagem foi muito difícil. O filme foi encontrado durante a montagem. Propus ao Ari Arauto, o montador do longa-metragem, que viajasse conosco. É incomum que um montador acompanhe as filmagens. Como ele é muito organizado, propus que fizesse o logger*, pois se trata de um profissional realmente bastante organizado, quase um psicopata da organização (risos). Foi uma experiência interessantíssima para a gente, pois, de certa forma, ele se tornou quase um roteirista. Aliás, a troca dele com os roteiristas era constante. A trupe do circo e do cinema se tornaram uma só. Dentro disso, o Ari teve uma condição que poucos montadores têm. Aí veio a pandemia, eu morando em São Paulo e ele no Recife. Talvez demoramos mais na montagem por conta dessa dinâmica remota. Quase no fim da pandemia, fui à Recife, alugamos um apartamento lá e ficamos um mês trancados montando o documentário. Aí chegamos a essa organização que, acreditamos, dá peso aos personagens e ao circo.
E aquele dispositivo animado para ilustrar as histórias do pai contadas ao filho?
Eu tinha muita vontade de fazer isso em filmes anteriores. Agora estou pensando em fazer um filme inteiramente animado. Há algumas ideias que talvez aconteçam nesse sentido. Mas, essa primeira experiência era para dar conta do imaginário. As histórias eram muito difíceis de mostrar, por exemplo, o ataque da pantera ou o lobisomem. Foi muito interessante misturar linguagens.
Estamos muito acostumados a abordagens do circo como um fantasma decadente do passado. E você refuta completamente essa atitude. Isso era algo previsto desde o início?
Sim, o próprio Pedrinho representa essa continuação do circo familiar. A Alessandra, companheira do José Wilson, é de família circense. Claro que poderíamos abordar a grave situação do circo. Antes mesmo da pandemia, o governo Bolsonaro fez uma perseguição enorme aos setores culturais. Dentro desse panorama, o circo é o mais prejudicado sempre, tratado de modo menos lisonjeiro com relação a verbas e tudo mais. O José Wilson é um militante dessa área que enfrenta muitas dificuldades de organização. Para acessar verbas públicas, é preciso preencher editais e qual é o endereço do circo? E durante a pandemia o circo foi prejudicado porque não podia fazer espetáculo, ou seja, estava interditado o que eles fazem para ganhar a vida. Porém, meu desejo era recuperar a possibilidade da continuidade do circo, do futuro dele. Por isso o título O Circo Voltou. Queria convidar as pessoas irem ao circo.
E como se deram aqueles encontros com as comunidades quilombolas e indígena?
Aquelas são comunidades de resistência nas quais o circo nunca havia chegado. Foi algo tão emocionante para a equipe. Acredito que nem mesmo o pessoal da trupe do circo imagina como isso foi emocionante para a equipe de filmagem. Nós chegamos antes, almoçamos com eles, teve toda uma preparação. No caso da comunidade quilombola, fomos antes numa viagem de pré-produção para conhecer as pessoas e conversar. Nossa ideia é que houvesse uma integração pela resistência. Era importante sinalizar a importância do circo como única diversão que ainda chega a determinadas localidades do país. Há milhares de circos no país e não podemos perder essa cultura.
*Nota da redação: profissional responsável por catalogar e indexar os materiais filmados.