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O Conto das Três Irmãs :: “O filme tem semelhança com os contos de fada, como Cinderela”, explica o diretor Emin Alper

Publicado por
Bruno Carmelo

Quando estreou no Festival de Berlim, O Conto das Três Irmãs (2019) provocou discussões acaloradas entre o público que mergulhou nesta fábula sobre a condição feminina e os espectadores que não apreciaram a poesia do filme tão singular. Agora, os brasileiros têm a oportunidade de verem por conta própria o belo cinema do diretor Emin Alper, já que o drama integra o Festival de Pré-Estreias do Espaço Itaú Play.

O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o cineasta turco sobre a história de três irmãs de um pequeno vilarejo, todas enviadas à cidade para trabalharem como uma espécie de empregadas domésticas de famílias ricas, recebendo comida e abrigo ao invés do salário. No entanto, elas são devolvidas, uma por uma, enquanto mantêm o sonho de um futuro melhor. Conforme as estações passam na cidadezinha isolada do mundo, descobrimos o que cada uma delas precisou enfrentar na cidade grande.

 

Emin Alper e as atrizes de O Conto das Três Irmãs durante o Festival de Berlim

 

O que te motivou a contar esta história pelo ponto de vista das irmãs?
Primeiro, eu preciso lembrar a existência das foster girls, o que não possui tradução exata em nenhuma outra língua. Na Turquia, existe a tradição de famílias ricas levarem garotas dos vilarejos mais pobres para a cidade grande, como uma espécie de empregadas domésticas. Elas não são exatamente adotadas pela família, porque não possuem o status de filha. As meninas acabam trabalhando como governantas, ou algo semelhante: elas cuidam das crianças, cozinham e limpam a casa. É uma empregada doméstica não assalariada. Esta tradição era comum na Turquia, numa época pré-capitalista, mas está desaparecendo agora. Quando eu era criança, eu tinha uma “irmã empregada” na minha casa. Sempre achei comovente esta situação, porque elas se encontram num espaço intermediário: as foster girls acreditam ter uma situação melhor na cidade, mas não são aceitas como membros da família, tornando-se familiares de segunda classe. Ao mesmo tempo, a vida no campo seria ainda pior. É uma situação de limbo, que sempre me emocionou muito. Sempre quis contar a história delas, e agora, no meu terceiro longa-metragem, decidi escrever um roteiro a respeito.

 

Onde traçou o limite entre o realismo social e a fantasia?
A primeira versão do roteiro era muito mais realista. Mas então percebi que o filme dependeria demais dos diálogos, e decidi acrescentar um pouco de atmosfera. Afinal, a premissa tinha algumas semelhanças com os contos de fada, como Cinderela. Na história da Cinderela, também existe um relacionamento desigual entre irmãs. Ela também é tratada como um membro inferior da família, apesar de sonhar com um futuro melhor. Então encontrei as locações muito especiais no alto das montanhas, e a atmosfera ficou cada vez mais clara, assim como a poesia da história. Acrescentei alguns elementos, como a mulher do vilarejo que dá cambalhotas, além de outros símbolos poéticos.

 

 

Como a condição feminina mudou dos anos 1980 até hoje?
A situação das mulheres está mudando drasticamente. Posso falar pelas minhas lembranças. A Turquia não atravessa um bom momento politicamente: estamos regredindo bastante em termos de direitos, mas para as mulheres, não sou tão pessimista. Elas têm entrado cada vez mais na vida pública, no mercado de trabalho, e começam a receber um nível de instrução mais próximo daquela dos homens. Ainda é preciso evoluir muito neste sentido, mas elas estão um pouco mais livres em relação aos maridos. A taxa de divórcios aumentou bastante, e acredito que isso seja sinal de independência feminina. Infelizmente, nos últimos anos, a Turquia tem registrado uma taxa alta de feminicídios, em reação à autonomia das mulheres. Existe uma tentativa masculina de controle sobre os corpos femininos, que se reflete nos assassinatos.

 

Como escolheu as três atrizes principais, e de que modo as preparou para os papéis principais?
Organizamos um processo bastante longo de testes. Gravamos os testes de muitas meninas, e me encontrei com muitas delas. As meninas mais novas não eram profissionais: Helin Kandemir, que selecionamos para a irmã mais nova, nunca tinha atuado na vida. Ece Yüksel, que interpreta a irmã do meio, tinha um pouco de experiência. A mais profissional era Cemre Ebuzziya, a irmã mais velha. Por causa dessas diferenças, eu tive que fazer muitos testes, e quando definimos o elenco, fizemos muitos ensaios. A dinâmica entre as três irmãs era fundamental para mim, então ensaiamos muito com elas juntas, o tempo inteiro. Só começamos a filmar quando achei que estavam prontas.

 

 

O filme surpreende pela iluminação e a direção de arte, mas nunca existe uma câmera fazendo movimentos mirabolantes e chamando atenção para si mesma, por exemplo.
Para mim, as longas cenas de diálogo precisavam de uma iluminação muito especial. Algumas cenas chegam a dez minutos de duração, sem qualquer tipo de ação. Como os personagens não se movem, eu pensava que seria bobagem mover a câmera para criar uma impressão artificial de ação. Quis manter a câmera estável para personagens estáveis. Então o único elemento estabelecendo o clima era a luz. Por isso, a fogueira era crucial, como na cena em que os homens estão sentados à beira da fogueira, ou quando as garotas conversam dentro de casa. Para as cenas externas, tentamos encontrar a melhor locação capaz de captar a vista ao fundo, e tentamos usar a luz da noite, que permite ver a silhueta das montanhas. Havia uma atmosfera mágica. Para o inverno, a neve criou uma atmosfera particular, e tivemos sorte porque, nas cenas finais, apareceu uma névoa que não esperávamos, e que nos ajudou bastante em termos de clima.

 

O filme é centrado na vontade de fugir, mas a câmera não abandona o vilarejo, nem revelar flashbacks das meninas trabalhando.
Sempre quis manter a cidade como um lugar imaginário. Não queria destruir o imaginário que o espectador criaria para si mesmo. Então este se torna um lugar desconhecido onde todos querem ir, mas que permanece na nossa mente, assim como está na mente das personagens. Além disso, o fato de não mostrar a cidade permite criar a sensação de claustrofobia, de estar preso naquele local. A câmera nunca se distancia do vilarejo, o que favorece a ideia de estar preso entre as montanhas.

 

O Conto das Três Irmãs

 

Acredita que os elementos tipicamente turcos foram compreendidos pelo público estrangeiro, como no Festival de Berlim?
As respostas foram mistas. Os espectadores turcos foram muito mais receptivos ao filme. Na Turquia, as opiniões foram majoritariamente positivas. É claro que sempre existirão críticas negativas de pessoas que não gostam do filme. Em Berlim, a reação foi bem diversificada. Parte da plateia e dos críticos mergulhou completamente na história, mesmo sem entender as dezenas de referências culturais tipicamente turcas. Mas senti que eles captaram exatamente o que eu queria transmitir. Outra parte não construiu uma relação com o filme de modo algum, e não conseguiu entrar na história. Eles ficaram indiferentes, distantes daquele contexto.

 

No Festival de Sarajevo, você disse que esta é uma produção de baixo orçamento, e que precisou limitar os dias de filmagem. Que condições de produção existem na Turquia para projetos como O Conto das Três Irmãs?
Não sei como funcionam as coisas no Brasil, mas na Turquia, existe um financiamento público. Para os filmes independentes e de arte, o Ministério da Cultura aloca recursos. Quase todos os filmes de arte na Turquia são financiados pelo governo. Infelizmente, não consegui nenhum dinheiro do Ministério da Cultura para O Conto das Três Irmãs. Embora os meus filmes anteriores tenham conquistado uma boa bilheteria e bom resultado nos festivais, fui bloqueado por motivos políticos. Talvez você esteja a par das tensões políticas na Turquia. Nos últimos anos, tem sido cada vez mais difícil fazer um filme em oposição às ideias do governo. Quando apresentei o projeto de O Conto das Três Irmãs, eu estava na lista negra. Mesmo que a história não seja particularmente nociva ao governo, eu já era considerado persona non grata. Por isso, foi difícil encontrar o dinheiro: é sempre difícil convencer os investidores a financiarem filmes de arte. Mas finalmente encontramos um investidor para parte do orçamento, e depois conseguimos fundos europeus da Grécia, Alemanha e Holanda. No final, a Eurimage entrou no projeto e conseguimos fechar o orçamento. Mas o caminho tradicional passaria pelo Ministério da Cultura, para só então recorrer aos fundos europeus.

 

Acredita que isso prejudicará os seus próximos projetos?
Felizmente, para o próximo filme, a situação mudou. O sucesso de O Conto das Três Irmãs levou o governo turco a aprovar o financiamento do meu próximo longa-metragem. Então o novo filme terá financiamento estatal de novo. Dentro de algumas semanas já começamos as filmagens. A intenção era ter filmado nestes dois últimos meses, mas por causa do coronavírus, tivemos que atrasar a produção.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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